sábado, 6 de janeiro de 2007

Pavana[1] para tiranos defuntos
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Los reyes de la baraja
Federico García Lorca

Si tu madre quiere un rey,la baraja tiene cuatro:rey de oros, rey de copas,rey de espadas, rey de bastos.Corre que te pillo,corre que te agarro,mira que te llenola cara de barro.
(...)
[2]

Dois homens acabam de sair da vida para entrar na História: Augusto Pinochet e Sadam Hussein. Em comum, além de morrerem no mesmo mês, a chegada ao poder via golpes de Estado, com apoio de governos dos EUA. No caso de Pinochet, depois da queda e morte de Allende, presidente legitimamente eleito, foi apontado como representante do Exército no governo em mais um típico caso de tutela militar explícita na América Latina. Consolidada sua posição, em um ano era “proclamado” Presidente da República.
O apoio norte-americano a Pinochet teve por fundamento a noção de que seria preferível dar suporte a ditadores de direita que a regimes comunistas. A justificativa, conhecida como “ditaduras de duplos padrões”, era defendida por Jane Kirkpatrick, então embaixadora dos Estados Unidos na ONU
[3]. Kirkpatrick argumentava que regimes de direita seriam menos danosos para os EUA. Assim, durante 17 anos, Pinochet perseguiu, torturou e matou qualquer um que fizesse oposição ou até mesmo alguma objeção ao seu governo – especialmente aqueles ligados ao Partidos Comunista, organizações de esquerda ou lideranças de movimentos sociais – contando com a anuência norte-americana. Usar decote, cabelos compridos, saias curtas, ou vestir vermelho também poderia ser motivo para que um cidadão ou cidadã fosse definido como subversivo ou “mulher que não é de família”, tornando-se candidato à tortura e à execução. A macabra contabilidade de seu governo indica, até este momento, cerca de 3000[4] chilenos massacrados.
A imposição de padrões de comportamento e pensamento não era a única característica do carrasco chileno: a internacionalização da economia chilena foi um fato, talvez dos mais importantes deste período. A redução do papel do Estado também. Atualmente o Chile é o único país da América Latina cuja previdência social está totalmente privatizada, a ponto de servir como referência para o projeto de reforma da previdência dos EUA. Baseado em contas individuais obrigatórias e na administração privada, gera graves conseqüências para a população mais velha, hoje em dia. Por outro lado a economia chilena tem indicativos econômicos que apontam para o dobro do índice de crescimento dos demais países da região. O caráter deste crescimento econômico, no entanto, é discutível, porque não se traduziu em real distribuição de riquezas para todos os chilenos. Portanto, não se trata de coincidência: a imposição de modelo econômico baseado nos parâmetros de Bretton Woods exigiu a adoção de um regime onde a participação política fosse reduzida à sua expressão mais simples. Ou até mesmo que não houvesse nenhuma expressão de luta social.
Mesmo assim ainda há quem o pranteie: em editorial o Washington Post afirmou que “apesar dos milhares de mortos, torturados e exilados deixados pelo mandato de Pinochet, é difícil não se dar conta, entretanto, que o maligno ditador deixou atrás de si o país mais bem-sucedido da América Latina" (sic). Mas esta idéia de país bem sucedido deve ser relativizada, pois não se pode garantir que os descendentes dos mortos e desaparecidos nos porões da ditadura Pinochet, os milhares de idosos chilenos que carecem de amparo e de aposentadoria ou mesmo os milhares de trabalhadores chilenos desempregados se considerem bem sucedidos...
As farsas da História às vezes se repetem. Outra destas repetições foi a ascensão de Sadam Hussein, mais um fiel escudeiro dos EUA que caiu em desgraça. Em 1979, após a renúncia do presidente Ahmed Hassan al-Bakr, Sadam assumiu o poder
[5]: em 6 meses já declarava guerra contra o Irã, atacava curdos e xiitas. Somente na região de Halabja morreram mais de 50.000 curdos, vítimas das armas químicas. Em 1982, 148 xiitas foram mortos em Dujail depois do fracasso da tentativa de assassinar o ex-líder do Iraque.
Transformado em personna non gratta, Sadam foi aprisionado e julgado por seus crimes após a ocupação do Iraque pelos norte-americanos e seus aliados, em 2003. O julgamento durou em torno de 2 anos e foi definido como “um show interminável”
[6] por Gerry Simpson, professor de direito internacional da London School of Economics. Tal julgamento culminou na execução, realizada na calada da noite, em forma e data criticada pela comunidade internacional e até por adversários, pois, foi enforcado em data não recomendável pelo Islam.
Mas se o Iraque não era exatamente uma potência militar nem detinha conhecimento suficiente para produzir este tipo de arma, como explicar a existência deste tipo de tecnologia em mãos iraquianas? A hipótese é que, se elas existiram na moderna Mesopotâmia, não caíram do céu como maná bíblico. Só podem ter sido fornecidas por algum país aliado... Providência que se assemelha aos “consultores” fornecidos pela Escola das Américas ao Chile, país que não detinha nenhuma expertise em interrogatórios e torturas. Elementar, meu caro Sadam!!!!!
A mutação de Sadam de aliado em inimigo teve seu toque feminino: ao invés de Jane Kirkpatrick, a Secretária de Estado norte-americana Condolezza Rice desde janeiro de 2001 e um dos falcões a serviço da Doutrina Bush. Outro ponto em comum entre o chileno e o iraquiano: a forte religiosidade, cada um em sua fé, mas que contrastava com a falta de piedade e a crueldade de suas atitudes em relação aos inimigos. O interessante é que também acreditavam na fidelidade de seu principal padrinho e aliado e na conseqüente impunidade para seus crimes. A tal ponto era forte esta fé que não tiveram escrúpulos em enriquecer a si e a seus familiares de forma ilícita, depositando somas inacreditáveis em bancos fora de seus países (apesar das eternas declarações de nacionalismo fervoroso e explícito). Outra coincidência entre ambos era o horror que tinham a comunistas. Sadam, ao chegar ao poder, tratou imediatamente de eliminar todos os membros do Partido Comunista Iraquiano. Eliminação física, é claro. Elementar, meu caro Pinochet!!!!
Na morte a diferença: enquanto Pinochet foi poupado, na medida do possível, de julgamento e ou qualquer forma de punição por seus crimes, vindo a morrer de causas naturais, Sadam foi aprisionado, julgado e condenado por seus antigos aliados – hoje inimigos. Não teve direito a tribunal internacional, a exemplo de outros carrascos como Slobodan Milošević, que foi detido e julgado pelo Tribunal Penal de Haia, tendo sido, segundo fontes
[7], envenenado na prisão, morrendo em março de 2006, o que interrompeu seu julgamento e impediu sua condenação.
A morte dos dois déspotas, por si, não traz rupturas, porque sabemos que a História não é feita da iniciativa de um indivíduo. Em verdade, tanto Pinochet quando Sadam representavam grupos de interesses. Como legítimos representantes destes grupos, agiram, com maior ou menor perversidade, de acordo com a demanda do momento. Embora mortos, os interesses aos quais representavam permanecem vivos e atuantes. Mas, seja qual for a forma como morreram – de morte morrida ou matada – e sem entrar no debate sobre a adoção da pena de morte (que ambos praticaram com afinco contra seus adversários), nós, que ainda ficamos mais um tempo neste vale de risos e lágrimas, temos certeza de que a História não os absolverá.

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