domingo, 4 de janeiro de 2009

A ditadura do mito do socialismo ditador

Há muito tempo, se convencionou dizer que socialismo é sinônimo de ditadura. De trocar emprego, saúde, educação, por partido único, censura, pouca liberdade, sindicatos controlados pelo Estado. O pior é que costumam invocar Marx, Engels e Lênin para justificar tal entendimento. Principalmente, a idéia de “ditadura do proletariado”, que os três teóricos defenderam. No entanto, nenhum deles defendeu a “ditadura do proletariado” com o significado de regime autoritário.
Para começar a dar conta dessa polêmica, é preciso lembrar o que significa o Estado para os marxistas. Antes de Marx e Engels, praticamente todo os teóricos políticos clássicos viam o Estado como um elemento positivo. Algo que existia porque, do contrário, o egoísmo dos seres humanos destruiria qualquer possibilidade de convívio social. Seria um freio à “guerra dos homens contra os homens”. Portanto, fazia sentido ficar discutindo se uma forma de governo era melhor que outra, qual forma era mais justa, qual era mais injusta etc.
O Estado como necessidade social
A formulação de Engels e Marx partia de uma idéia oposta. O Estado surgiu como uma necessidade social, sim. Mas, essa necessidade tinha como raiz a dominação de uma parte da sociedade sobre a outra. Ou seja, do surgimento da sociedade dividida em classes. Dividida entre quem trabalha e quem administra. Quem pensa e quem executa. Quem é explorado e quem explora. Mas, essa situação foi criada na medida em que a produção de bens da comunidade aumentou de tal maneira, que permitiu que a divisão de trabalho beneficiasse mais uns do que outros.
O que era apenas uma função administrativa tornou-se uma função política. O crescimento da produção, por exemplo, permitiu que alguns se afastassem do trabalho direto e se dedicassem ao controle e administração do que era produzido. Isso também levou a que uma parte da sociedade adquirisse poder suficiente para dominar o restante. Os mecanismos de controle podiam ser tanto o domínio da escrita e da aritmética, como a formação de uma força militar. Esta última pode ter surgido sob o pretexto de defender os estoques de bens da comunidade. Mas, logo essa proteção estendeu-se para os próprios guardiões dos bens. Estava formado o Estado, com um corpo de funcionários e um corpo militar. A partir daí esse corpo também monopolizaria as funções de fazer leis e julgar quem as descumpre. Na verdade, todas essas funções já eram desempenhadas pelo conjunto da comunidade. O Estado surge do monopólio que uma parte da sociedade consegue estabelecer no desempenho dessas funções.
O que acabamos de descrever é um resumo muito rápido de elementos presentes no livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de Engels, publicado em 1884. Trata-se da idéia de que o Estado é um instrumento de dominação. Portanto, diferente de Platão, Aristóteles, Kant, Hegel e outros pensadores, o Estado era para Marx e Engels um elemento negativo. Não adiantava ficar discutindo formas de governo, se o essencial era o caráter dele era o de dominação em qualquer de suas manifestações.
Que o Estado é um instrumento de dominação. Que é algo que deve desaparecer. Com tudo isso, os anarquistas, em geral, também concordam. Mas, enxergam no Estado a origem da dominação e não um sintoma de uma doença. Acham que eliminando o sintoma, a doença desaparecerá. Mas, a origem da doença está nas relações sociais. A existência do Estado é o resultado do desenvolvimento das relações sociais e do crescente domínio do ser humano sobre as forças da natureza. E somente o próprio desenvolvimento das relações sociais será capaz de dar uma resposta a essa situação.
Por isso, a fase de transição entre o Estado burguês e a sociedade sem classes não é só um pretexto para que alguns continuem a governar. Ao contrário, a causa maior da existência do Estado precisa desaparecer, antes que ele mesmo desapareça. As classes devem desaparecer para que o Estado já não tenha mais razão para existir. E isso exige a fase de transição a que Lênin chamou de socialismo.
Ditadura como conteúdo de classe, não como forma de governo
Do ponto de vista político, Marx e Engels chamaram essa fase de “ditadura do proletariado”. Ou seja, ditadura dos trabalhadores. O problema é que muita gente identifica a palavra “ditadura” com fim das liberdades, censura, tortura e morte. E tem razão. No século 20, é assim que ficaram conhecidos regimes como os de Stalin, Mussolini, Hitler, Pinochet, os governos militares no Brasil e na Argentina etc. Mas, a palavra ditadura já teve muitos sentidos ao longo da história. Na Roma Antiga, por exemplo, era uma forma prevista na constituição política. Um ditador poderia ser nomeado em um estado de emergência, numa guerra ou numa revolta contra o as instituições e assim por diante. De fato, o que entendemos por “ditadura” hoje, era chamado de “despotismo” ou “tirania”, antigamente.
De qualquer maneira, quando Marx e Engels começaram a usar a palavra ditadura eles se referiam à dominação burguesa em geral. Não estavam falando sobre a forma de governo, mas sobre o conteúdo de classe. Para eles, o parlamentarismo inglês, o presidencialismo dos Estados Unidos ou a ditadura paraguaia eram a mesma coisa. Se em algumas delas havia eleições e liberdade de imprensa e em outras não, pouco alterava o fato de que todas elas eram formas da dominação burguesa. Por outro lado, isso significa que ditadura do proletariado não é o mesmo que fim das liberdades, censura, prisão e fuzilamentos. Quando Marx falava de ditadura do proletariado, falava sobre quem mandava. Ou seja, os trabalhadores. Não falava sobre como deveriam mandar. Essa resposta, ele não tinha pronta e acabada.
Tanto Marx quanto Engels sempre deram poucas indicações a respeito da organização do Estado futuro dos trabalhadores. Não gostavam de bancar os profetas e cartomantes. Mas quando surgiu a Comuna de Paris, em 1871, adotaram-na como modelo de ditadura do proletariado. Em seu livro O Partido e a Internacional, de 1875 , Marx e Engels afirmaram: “Querem saber em que consiste essa ditadura [do proletariado]? Vejam a Comuna de Paris, que foi uma ditadura do proletariado” E o que é que eles admiravam tanto nessa experiência de governo popular que durou apenas 72 dias? Em seu livro “Guerra Civil na França”, Marx destaca as características da Comuna que aprovava. Vejamos algumas delas:
- Eleições de todos os membros da Comuna através do voto direto e universal, inclusive para mulheres;
- Todos os representantes eleitos são passíveis de responsabilização e seus mandatos são revogáveis a qualquer momento;
- Salários de trabalhadores para todos os funcionários e deputados;
- Polícia sob controle da Comuna;
- Todos os juízes são eleitos, sujeitos à punição e seus mandatos são revogáveis a qualquer momento;
- A Comuna é um corpo de trabalhadores, não parlamentar, sendo executivo e legislativo ao mesmo tempo.
- Abolição do exército permanente e do funcionalismo público permanente.
Ou seja, trata-se de uma república democrática. Não uma república democrática burguesa, mas uma república democrática em que a classe dominante seria a classe trabalhadora. Não se trata de negar as liberdades burguesas, mas de mostrar como elas são apenas formais. De cumprir as promessas de liberdade da burguesia através da democracia operária. Com a classe trabalhadora no poder, controlando as instituições.
A cozinheira que pode ser estadista
Tudo isso significa ir tirando as funções do Estado e transferindo-as para a comunidade. Aquela mesma comunidade que perdeu o direito de governar a si mesma há milhares de anos. Lênin dedicou um capítulo de “Estado e Revolução” a comentar as páginas de Marx sobre a Comuna de Paris. Segundo ele, trata-se de uma democracia “exercida integral e coerentemente”, de modo a transformar a “democracia burguesa” em “democracia proletária”, e a mudar o “Estado”, entendido como força especial para a repressão de uma classe determinada, em “algo que não é mais exatamente o Estado”. Daí o famoso exemplo que Lênin usou, de que numa sociedade assim, até uma cozinheira poderia desempenhar funções de estadista. Também foi nesse livro que Lênin disse que “a transição do capitalismo para o comunismo, sem dúvida, não pode deixar de produzir grande número e variedade de formas políticas”, mas “sua essência será inevitavelmente uma só: a ditadura do proletariado”.
Como sabemos, não foi nada disso que aconteceu na ex-União Soviética. O Estado se fortaleceu ao invés de desaparecer. A sociedade foi esmagada pelo peso de corpo burocrático estatal. A censura, a repressão, a exploração e a opressão permaneceram e se fortaleceram. Alguém poderia alegar que a o risco de que isso acontecesse já estava implícita na admissão leninista de que o socialismo comportaria uma “variedade de formas políticas”. O “socialismo” ditador seria apenas a forma política que acabou prevalecendo. E qualquer tentativa de fazer o mesmo em qualquer outro lugar e época acabaria necessariamente da mesma forma. Viva o capitalismo, então! Ou, pelo menos, viva a social-democracia!
Não é bem assim. É importante lembrar que a base da dominação burguesa é a exploração capitalista. É econômica. Portanto, se depois de destruído o Estado burguês, a exploração econômica continuar a se fortalecer, o novo Estado irá se transformar em outro instrumento de dominação. Por isso, é fundamental que o novo Estado surgido da destruição do antigo inicie imediatamente mudanças econômicas no sentido de mudar as relações econômicas. É preciso inverter a relação. A política precisa começar a mandar na economia. O controle social dos trabalhadores tem que mandar na produção.
O problema é que na União Soviética isso não chegou a acontecer. Socialização começou a ser entendida como estatização da indústria, da agricultura, do comércio e dos bancos. Na verdade, isso transformou aqueles que controlavam o novo Estado em novos exploradores. A economia continuou a mandar na sociedade. E, desta vez, não eram os burgueses tradicionais, mas uma nova camada dirigente que se beneficiava da exploração e do domínio sobre a sociedade. Não se tratava, portanto, de socialismo, mas de uma forma específica de capitalismo, com outro tipo de dominação. Era o que chamamos de Capitalismo de Estado Burocrático.
Afinal, socialismo não é o mesmo que estatização. É sinônimo de controle democrático dos trabalhadores sobre a estrutura produtiva. Nesse caso, a experiência cooperativista é importante. No capitalismo, as cooperativas tendem a falir ou a se tornar empresas disfarçadas. Isso acontece devido à pressão da concorrência dos empresários privados. Numa sociedade em que existem apenas empresas socializadas, essa pressão desaparece. Claro que para isso é preciso que a socialização seja feita em nível mundial. Do contrário, a concorrência virá de empresas de outros países, que permanecem capitalistas. É por isso que a idéia stalinista de que é possível existir socialismo em um só país, ou em alguns deles, é só uma forma de esconder a continuidade da exploração e da repressão da classe trabalhadora. A contra-revolução stalinista começou pelo controle do aparelho partidário-estatal, mas ela se consolidou efetivamente com o Primeiro Plano Qüinqüenal, quando se coloca em marcha o processo de acumulação de capital.
Desfecho da Revolução Russa afetou todos as outras revoluções
Como a revolução mundial não aconteceu, a União Soviética viu-se cercada e quem estava no poder aproveitou para manter e ampliar as relações de exploração. Aprofundar a industrialização, explorar os camponeses retomar o conservadorismo. O machismo, a perseguição a homossexuais, o racismo contra judeus voltaram com tudo. Foi até criado um novo nacionalismo baseado no amor à pátria socialista. Além disso, Lênin, Trotsky e outros revolucionários também cometeram erros que colaboraram para o desastroso resultado final do processo revolucionário que começou em 1905, na Rússia. Mas, erros serão sempre cometidos. O problema é as conseqüências menores ou maiores que eles acarretam. E isso só é possível medir conforme as condições objetivas. Na medida em que elas se tornam mais adversas, as conseqüências dos erros se ampliam e podem se transformar em verdadeiras tragédias.
De qualquer maneira, as lições que temos que tirar desse processo não podem abrir mão de contribuições como as de Antônio Gramsci, Rosa Luxemburgo e outros teóricos revolucionários. Rosa alertou para o autoritarismo que o livro “O que fazer” (1902), de Lênin, trazia implícito. Seu alerta se confirmou com o aproveitamento desse autoritarismo pelos stalinistas. Por outro lado, Gramsci mostrou como a tática dos revolucionários russos era limitada em países com instituições políticas e sociais mais desenvolvidas. Diferente da Rússia do início do século, as sociedades européias ocidentais contavam, por exemplo, com parlamentos fortes, liberdades democráticas, altos níveis de sindicalização, imprensa atuante e ampla rede escolar. Desse modo, multiplicavam-se os instrumentos de dominação da burguesia.
Ao mesmo tempo, o desfecho da Revolução Russa afetou o destino dos processos revolucionários posteriores. Afinal quando a primeira revolução socialista aconteceu, nenhum Estado apareceu para apoiá-la. Mas, isso mudou quando a União Soviética passou a se comportar como um Estado. Aí, as rupturas revolucionárias em outros países passaram a fazer parte da disputa geopolítica entre o poder soviético e as potências imperialistas tradicionais. A pressão para que outros processos revolucionários também se burocratizassem e se tornassem regimes com pouca liberdade aumentou. Os novos “Estados Socialistas” autoritários surgidos na China, Iugoslávia, Cuba, Vietnã são alguns do exemplos desse tipo de pressão. Isso sem falar nos “socialismos” criados por decreto na Europa do Leste.
Lutar por reformas, mostrando seus limites
Voltando à questão das formas de governo, Lênin já dissera que não é indiferente aos socialistas que o domínio burguês tome a forma de uma ditadura (agora, falando no atual sentido da palavra) ou de uma democracia burguesa. Sob uma ditadura, as condições para a luta ficam muito piores. Os socialistas precisam se esconder na clandestinidade, não podem fazer propaganda aberta, são presos, torturados, mortos etc. Por isso, a luta por liberdades democráticas é fundamental. Mas no ocidente, muitas dessas liberdades eram maiores do que na Rússia. E isso faz muita diferença porque junto com elas vêm as ilusões de que é possível mudar o sistema por dentro. Através de reformas graduais.
Claro que lutar por reformas é muito importante. É uma forma da classe se convencer de que ela é capaz de arrancar conquistas com sua ação organizada. Mas o avanço das lutas dos trabalhadores tem que ir mostrando os limites dessas conquistas. Afinal, por mais avançadas que sejam as conquistas alcançadas, o poder político continua nas mãos da burguesia. O Estado continua monopolizando o poder de esmagar a classe trabalhadora e anular as conquistas, assim que o equilíbrio de forças permitir. É o que aconteceu na Europa, com várias conquistas e direitos desaparecendo durante a ofensiva neoliberal a partir dos anos 1980.
Assim, a luta por reformas precisa apontar também para seus próprios limites. Mostrar que direitos e avanços sociais somente se tornarão permanentes com a destruição do atual Estado. Com sua substituição pelo governo dos trabalhadores, ou pela “ditadura do proletariado”, como dizia Marx.
Tudo isso significa que qualquer participação dos socialistas nas instituições democráticas da burguesia deve ser subordinada a um objetivo maior. Por mais votos que os socialistas consigam para ocupar um parlamento ou um governo burguês, eles jamais conseguirão modificá-los. Rosa Luxemburgo disse em seu livro “Reformismo ou Revolução” (1900) que é uma ilusão pensar que os socialistas podem modificar o Estado burguês. É o Estado burguês que modifica os socialistas. Por isso, a participação nas eleições é muito importante, mas não é o objetivo de um partido socialista. É apenas um dos meios para dar combate ao Estado.
Sérgio Domingues – setembro de 2005

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