A omissão do Estado
.
O caos da segurança pública nas principais cidades do país – em especial, nas maiores, Rio e São Paulo – é a expressão mais dramática da falência do Estado brasileiro. É a ausência do Estado que permitiu, ao longo das últimas três décadas, que quadrilhas de narcotraficantes se estabelecessem nos morros e bairros da periferia desses centros urbanos, fornecendo serviços públicos básicos às comunidades em troca de submissão e/ou cumplicidade.
Vejamos o Rio de Janeiro, um dos mais inflamados tumores expostos da crise social brasileira. A reação – ou seja lá que nome tenha – está vindo também à revelia do Estado.
A ineficácia da polícia e dos governos fez com que surgissem milícias armadas em algumas regiões da cidade antes sob domínio absoluto dos traficantes. Não são evidentemente integradas por santos ou pessoas que tenham fé pública – em regra, são policiais e ex-policiais, que se apresentam como justiceiros e vendem proteção.
É o Estado paralelo.
Cobram pedágio, mas, em alguma medida, fornecem àquelas comunidades o que o Estado lhes nega sistematicamente: segurança. Melhor tê-la pela contramão que não a ter – parece ser o raciocínio daquelas comunidades, que saúdam os milicianos como uma dádiva da providência. Há aí farto material sociológico a ser examinado.
Foi em reação às milícias que as facções criminosas cariocas ligadas ao narcotráfico se uniram para agredir a cidade, na semana final de 2006, sob o olhar impotente da polícia. Nada de novo.
Em maio do ano passado, a facção criminosa paulista PCC rebelou-se contra o sistema penitenciário estadual e deflagrou uma série de ataques gratuitos à cidadania. Durante uma semana, seus integrantes queimaram ônibus, metralharam delegacias, mataram cidadãos e policiais, provocando reação em igual medida, em que tombaram muitos inocentes. Ao final do embate, que durou uma semana, o saldo de mortos chegava à impressionante marca de mais de cinco centenas. Nem o Iraque apresenta, em tão curto período, esse horror contábil.
Como de hábito, a reação foi espasmódica. Governantes protestaram, prometeram providências drásticas. Parlamentares encaminharam mudanças na legislação. Parecia que, enfim, algo aconteceria. Lá se vão oito meses e, também dentro do previsível, nada, rigorosamente nada, aconteceu. Ou por outra, as autoridades acabaram apelando para a velha e cretina prática: negociaram com os criminosos um armistício, que seria interrompido em agosto e, a seguir, restabelecido e, por enquanto, ainda em vigor.
No Rio, as autoridades de segurança pública do novo governo – o primeiro, nas últimas décadas, a admitir a necessidade de auxílio federal – prometeram ocupar, a partir da posse, as principais vias expressas da cidade com presença policial ostensiva. Eis, porém, que no dia 4, quinta-feira passada, três dias após a posse, um grupo de turistas europeus foi assaltado na Linha Vermelha – via que leva do aeroporto internacional aos principais bairros da cidade -, sem que houvesse num raio de muitos quilômetros qualquer sinal de presença policial.
O comandante da Polícia Militar, com um sorriso amarelo, reconhecia a “falha” e prometia “trabalhar sobre ela” (sic). Também aí repetia um velho rito, o da omissão, que de tão recorrente já nem gera espantos ou reações. Mas é a fonte da credulidade da população em expedientes primários como o das milícias, prenhe de efeitos colaterais danosos. Uma coisa ao menos as milícias estão provando ao povo carioca: que é possível enfrentar e vencer os traficantes. Basta querer.
O Estado, até aqui, não quis e, com isso, gerou e fortaleceu a mística de que o crime organizado é imbatível e que o jeito é negociar com ele e encontrar, no caos que ele promove, um modus vivendi.
O governador Sérgio Cabral, ao requisitar socorro federal, sinalizou que não crê nessa mística. Quebrou um padrão - e gerou nova (e positiva) expectativa. Mas sua polícia, ao descumprir o compromisso de ocupar as vias expressas, abalou essa expectativa.
Quanto ao presidente Lula, assumiu dois compromissos – um eficaz, se efetivamente cumprido; outro, inútil e demagógico. O primeiro envolve a articulação da União com os estados no combate ao crime – e o que espanta é que somente agora esteja sendo cogitado.
E o segundo diz respeito ao agravamento da legislação penal. A crise brasileira não decorre da escassez ou precariedade das leis, mas de falta de zelo em aplicá-las. Os bandidos descumprem a lei; o Estado omite-se em aplicá-las. Ambos, cada qual a seu modo, igualmente a desprezam. Em síntese, eis a crise moral e institucional brasileira.
Ruy Fabiano é jornalista.
O caos da segurança pública nas principais cidades do país – em especial, nas maiores, Rio e São Paulo – é a expressão mais dramática da falência do Estado brasileiro. É a ausência do Estado que permitiu, ao longo das últimas três décadas, que quadrilhas de narcotraficantes se estabelecessem nos morros e bairros da periferia desses centros urbanos, fornecendo serviços públicos básicos às comunidades em troca de submissão e/ou cumplicidade.
Vejamos o Rio de Janeiro, um dos mais inflamados tumores expostos da crise social brasileira. A reação – ou seja lá que nome tenha – está vindo também à revelia do Estado.
A ineficácia da polícia e dos governos fez com que surgissem milícias armadas em algumas regiões da cidade antes sob domínio absoluto dos traficantes. Não são evidentemente integradas por santos ou pessoas que tenham fé pública – em regra, são policiais e ex-policiais, que se apresentam como justiceiros e vendem proteção.
É o Estado paralelo.
Cobram pedágio, mas, em alguma medida, fornecem àquelas comunidades o que o Estado lhes nega sistematicamente: segurança. Melhor tê-la pela contramão que não a ter – parece ser o raciocínio daquelas comunidades, que saúdam os milicianos como uma dádiva da providência. Há aí farto material sociológico a ser examinado.
Foi em reação às milícias que as facções criminosas cariocas ligadas ao narcotráfico se uniram para agredir a cidade, na semana final de 2006, sob o olhar impotente da polícia. Nada de novo.
Em maio do ano passado, a facção criminosa paulista PCC rebelou-se contra o sistema penitenciário estadual e deflagrou uma série de ataques gratuitos à cidadania. Durante uma semana, seus integrantes queimaram ônibus, metralharam delegacias, mataram cidadãos e policiais, provocando reação em igual medida, em que tombaram muitos inocentes. Ao final do embate, que durou uma semana, o saldo de mortos chegava à impressionante marca de mais de cinco centenas. Nem o Iraque apresenta, em tão curto período, esse horror contábil.
Como de hábito, a reação foi espasmódica. Governantes protestaram, prometeram providências drásticas. Parlamentares encaminharam mudanças na legislação. Parecia que, enfim, algo aconteceria. Lá se vão oito meses e, também dentro do previsível, nada, rigorosamente nada, aconteceu. Ou por outra, as autoridades acabaram apelando para a velha e cretina prática: negociaram com os criminosos um armistício, que seria interrompido em agosto e, a seguir, restabelecido e, por enquanto, ainda em vigor.
No Rio, as autoridades de segurança pública do novo governo – o primeiro, nas últimas décadas, a admitir a necessidade de auxílio federal – prometeram ocupar, a partir da posse, as principais vias expressas da cidade com presença policial ostensiva. Eis, porém, que no dia 4, quinta-feira passada, três dias após a posse, um grupo de turistas europeus foi assaltado na Linha Vermelha – via que leva do aeroporto internacional aos principais bairros da cidade -, sem que houvesse num raio de muitos quilômetros qualquer sinal de presença policial.
O comandante da Polícia Militar, com um sorriso amarelo, reconhecia a “falha” e prometia “trabalhar sobre ela” (sic). Também aí repetia um velho rito, o da omissão, que de tão recorrente já nem gera espantos ou reações. Mas é a fonte da credulidade da população em expedientes primários como o das milícias, prenhe de efeitos colaterais danosos. Uma coisa ao menos as milícias estão provando ao povo carioca: que é possível enfrentar e vencer os traficantes. Basta querer.
O Estado, até aqui, não quis e, com isso, gerou e fortaleceu a mística de que o crime organizado é imbatível e que o jeito é negociar com ele e encontrar, no caos que ele promove, um modus vivendi.
O governador Sérgio Cabral, ao requisitar socorro federal, sinalizou que não crê nessa mística. Quebrou um padrão - e gerou nova (e positiva) expectativa. Mas sua polícia, ao descumprir o compromisso de ocupar as vias expressas, abalou essa expectativa.
Quanto ao presidente Lula, assumiu dois compromissos – um eficaz, se efetivamente cumprido; outro, inútil e demagógico. O primeiro envolve a articulação da União com os estados no combate ao crime – e o que espanta é que somente agora esteja sendo cogitado.
E o segundo diz respeito ao agravamento da legislação penal. A crise brasileira não decorre da escassez ou precariedade das leis, mas de falta de zelo em aplicá-las. Os bandidos descumprem a lei; o Estado omite-se em aplicá-las. Ambos, cada qual a seu modo, igualmente a desprezam. Em síntese, eis a crise moral e institucional brasileira.
Ruy Fabiano é jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário