ENTREVISTA
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os senhores da guerra
Samir Amin, o conhecido professor e militante egípcio, referência no Fórum Social Mundial, fala à Carta Maior sobre a história da luta pela posse e do poder sobre a terra no continente africano e sua relação com as constantes guerras que devastaram vários países da região.
Flávio Aguiar - Carta Maior
NAIROBI - Em entrevista à Carta Maior, o professor egípcio Samir Amin analisa a história da luta pelo poder sobre a terra na África e os fatores que alimentaram os inúmeros conflitos militares que já atingiram a região. Ele relaciona um conjunto de fatores que, associados à estagnação social e econômica, alimentaram a eclosão desses conflitos e o surgimento dos "senhores da guerra".
CARTA MAIOR - Os lugares comuns sobre a África, uma vez que envolvem um mundo camponês, criam a imagem de um continente retardatário no tempo, um continente do passado. Ainda mais: a África não teria feito a "reforma agrária ao contrário", aquela do agronegócio. O que o sr. diz disso?
SAMIR AMIN - A imagem de que a África camponesa é uma África tradicional é bastante difundida, mas é uma imagem superficial e para mim falsa. As sociedades tradicionais existiam antes da colonização, elas existiam, estavam lá e eram diversas, não havia apenas uma, ou um tipo único. Elas tinham sistemas de hierarquização social, elas não eram necessariamente sociedades magníficas...
Essas sociedades não eram necessariamente modelos para o futuro: elas eram o que eram. Essas sociedades foram integradas no sistema econômico, social, político, colonial, capitalista. Elas foram transformadas, ou deformadas por esta integração. Em muitos casos, por exemplo, as antigas chefias foram não só conservadas, mas reforçadas pela colonização. Em outros casos elas foram destruídas porque elas estavam em conflito, numa guerra de resistência à colonização. Também outras chefias foram criadas artificialmente pela colonização.
De um modo geral, pode-se dizer que, como a terra era "abundante" na África, os interesses dos colonizadores belgas, ingleses, franceses concentravam-se na obtenção de produtos agrícolas tropicais de exportação, além dos da mineração. Era necessário obrigar a população a produzir esses produtos, o que não constava de suas tradições. Como em todas as sociedades camponesas tradicionais, o costume era o da auto-suficiência. Foi necessário obrigá-las através de diferentes meios: a obrigação de pagar um imposto em dinheiro. Para pagar esse imposto, era necessário obter algum dinheiro através da produção. Outro meio era o trabalho forçado, com punições quando a comunidade não produzia o suficiente. Tudo isso tornou-se possível durante um século ou pelo menos três quartos dele, porque a terra era abundante", os camponeses podiam ao mesmo tempo assegurar sua sobrevivência alimentar, embora em degradação contínua, e produzir para a exportação. É claro que não se pode chamar isso de um "sistema tradicional".
CM - Essa presença e herança do sistema colonial tem alguma relação com todas essas guerras que o continente africano suportou?
SA - Indiretamente sim. Mas devo dizer que este sistema não foi questionado pelos processos de independência dos países africanos. Ele foi de todo mantido em nome dos interesses das novas classes intermediárias entre o imperialismo e os povos camponeses. Pode-se chamar essas novas classes de burocracias, de burguesias a meias, de burocracias a meias, enfim, o que seja. Apesar disso, apesar de que estas reformas fundamentais não tenham sido feitas, a conquista da independência fez-se através de grandes movimentos de libertação nacional trans-étnicos. Eles não se fizeram em nome da autenticidade local, mas em nome de valores universais: os direitos da cidadania, da independência das nações. Nos anos sessenta, esses processos de independência foram acompanhados por políticas de desenvolvimento que, apesar de todas as suas limitações e características muitas vezes negativas, trouxeram algumas vantagens, sobretudo uma mobilidade social para cima, através principalmente da educação. A educação é uma reivindicação fundamental dentro do mundo camponês, na família camponesa. Para um pai de família camponesa, se seus filhos forem à escola, eles talvez terão a oportunidade de irem para a cidade e de ter uma profissão. E de, assim, poderem subir na hierarquia social. Os sistemas pós-coloniais deram de fato esta oportunidade.
Com isso, eles adquiriram sua legitimidade, sua credibilidade, mesmo se não fossem democráticos. Aos olhos de seus povos, eles eram legítimos, e é compreensível que assim fosse. Quando esse tipo de desenvolvimento esgotou-se, a classe dirigente começou a perder sua legitimidade. E foram elementos das classes dirigentes, que antes tinham uma política trans-étnica, que se voltaram para a etnia em busca de uma nova legitimidade. Vêem-se mesmo personalidades políticas que vinte anos antes tinham um discurso anti-culturalista, anti-étnico, em nome da unidade da nação, e que eram progressistas neste sentido, tornarem-se de repente defensores encarniçados da identidade cultural, etc. Vimos mesmo muitas ONGs que bajulavam essas posições em nome da diversidade cultural.
Foram tais opções, associadas à estagnação econômica e social, que criaram as condições favoráveis àquilo que podemos chamar de "guerras civis". Não são propriamente guerras civis. Não quero empregar a palavra "tribos". Não se trata de guerras entre sociedades tradicionais que se tenham odiado ao longo do tempo. Estas eram sociedade como todas as outras pelo mundo, que ora tinham relações pacíficas com seus vizinhos, ora estavam em guerra com eles, sem maiores conseqüências. Na maior parte do tempo tinham uma coexistência pacífica até os anos sessenta.
Jogou-se gasolina no fogo, e criaram-se, pode-se dizer, guerras civis "para-étnicas", pois nelas os líderes são os responsáveis pelas mobilizações étnicas. Freqüentemente as milícias que eles criam não servem para a proteção de sua etnia contra um inimigo que, aliás, não existe, mas servem isso sim para explorar suas próprias etnias. Eles usam, pode-se dizer, o sistema do "senhor da guerra".
CM - Mas há também a intervenção de potências imperialistas, como no caso presente da Somália.
SA - É claro. Uma situação dessas convida de modo ilimitado a intervenção de forças exteriores, das potências imperialistas.
Samir Amin, o conhecido professor e militante egípcio, referência no Fórum Social Mundial, fala à Carta Maior sobre a história da luta pela posse e do poder sobre a terra no continente africano e sua relação com as constantes guerras que devastaram vários países da região.
Flávio Aguiar - Carta Maior
NAIROBI - Em entrevista à Carta Maior, o professor egípcio Samir Amin analisa a história da luta pelo poder sobre a terra na África e os fatores que alimentaram os inúmeros conflitos militares que já atingiram a região. Ele relaciona um conjunto de fatores que, associados à estagnação social e econômica, alimentaram a eclosão desses conflitos e o surgimento dos "senhores da guerra".
CARTA MAIOR - Os lugares comuns sobre a África, uma vez que envolvem um mundo camponês, criam a imagem de um continente retardatário no tempo, um continente do passado. Ainda mais: a África não teria feito a "reforma agrária ao contrário", aquela do agronegócio. O que o sr. diz disso?
SAMIR AMIN - A imagem de que a África camponesa é uma África tradicional é bastante difundida, mas é uma imagem superficial e para mim falsa. As sociedades tradicionais existiam antes da colonização, elas existiam, estavam lá e eram diversas, não havia apenas uma, ou um tipo único. Elas tinham sistemas de hierarquização social, elas não eram necessariamente sociedades magníficas...
Essas sociedades não eram necessariamente modelos para o futuro: elas eram o que eram. Essas sociedades foram integradas no sistema econômico, social, político, colonial, capitalista. Elas foram transformadas, ou deformadas por esta integração. Em muitos casos, por exemplo, as antigas chefias foram não só conservadas, mas reforçadas pela colonização. Em outros casos elas foram destruídas porque elas estavam em conflito, numa guerra de resistência à colonização. Também outras chefias foram criadas artificialmente pela colonização.
De um modo geral, pode-se dizer que, como a terra era "abundante" na África, os interesses dos colonizadores belgas, ingleses, franceses concentravam-se na obtenção de produtos agrícolas tropicais de exportação, além dos da mineração. Era necessário obrigar a população a produzir esses produtos, o que não constava de suas tradições. Como em todas as sociedades camponesas tradicionais, o costume era o da auto-suficiência. Foi necessário obrigá-las através de diferentes meios: a obrigação de pagar um imposto em dinheiro. Para pagar esse imposto, era necessário obter algum dinheiro através da produção. Outro meio era o trabalho forçado, com punições quando a comunidade não produzia o suficiente. Tudo isso tornou-se possível durante um século ou pelo menos três quartos dele, porque a terra era abundante", os camponeses podiam ao mesmo tempo assegurar sua sobrevivência alimentar, embora em degradação contínua, e produzir para a exportação. É claro que não se pode chamar isso de um "sistema tradicional".
CM - Essa presença e herança do sistema colonial tem alguma relação com todas essas guerras que o continente africano suportou?
SA - Indiretamente sim. Mas devo dizer que este sistema não foi questionado pelos processos de independência dos países africanos. Ele foi de todo mantido em nome dos interesses das novas classes intermediárias entre o imperialismo e os povos camponeses. Pode-se chamar essas novas classes de burocracias, de burguesias a meias, de burocracias a meias, enfim, o que seja. Apesar disso, apesar de que estas reformas fundamentais não tenham sido feitas, a conquista da independência fez-se através de grandes movimentos de libertação nacional trans-étnicos. Eles não se fizeram em nome da autenticidade local, mas em nome de valores universais: os direitos da cidadania, da independência das nações. Nos anos sessenta, esses processos de independência foram acompanhados por políticas de desenvolvimento que, apesar de todas as suas limitações e características muitas vezes negativas, trouxeram algumas vantagens, sobretudo uma mobilidade social para cima, através principalmente da educação. A educação é uma reivindicação fundamental dentro do mundo camponês, na família camponesa. Para um pai de família camponesa, se seus filhos forem à escola, eles talvez terão a oportunidade de irem para a cidade e de ter uma profissão. E de, assim, poderem subir na hierarquia social. Os sistemas pós-coloniais deram de fato esta oportunidade.
Com isso, eles adquiriram sua legitimidade, sua credibilidade, mesmo se não fossem democráticos. Aos olhos de seus povos, eles eram legítimos, e é compreensível que assim fosse. Quando esse tipo de desenvolvimento esgotou-se, a classe dirigente começou a perder sua legitimidade. E foram elementos das classes dirigentes, que antes tinham uma política trans-étnica, que se voltaram para a etnia em busca de uma nova legitimidade. Vêem-se mesmo personalidades políticas que vinte anos antes tinham um discurso anti-culturalista, anti-étnico, em nome da unidade da nação, e que eram progressistas neste sentido, tornarem-se de repente defensores encarniçados da identidade cultural, etc. Vimos mesmo muitas ONGs que bajulavam essas posições em nome da diversidade cultural.
Foram tais opções, associadas à estagnação econômica e social, que criaram as condições favoráveis àquilo que podemos chamar de "guerras civis". Não são propriamente guerras civis. Não quero empregar a palavra "tribos". Não se trata de guerras entre sociedades tradicionais que se tenham odiado ao longo do tempo. Estas eram sociedade como todas as outras pelo mundo, que ora tinham relações pacíficas com seus vizinhos, ora estavam em guerra com eles, sem maiores conseqüências. Na maior parte do tempo tinham uma coexistência pacífica até os anos sessenta.
Jogou-se gasolina no fogo, e criaram-se, pode-se dizer, guerras civis "para-étnicas", pois nelas os líderes são os responsáveis pelas mobilizações étnicas. Freqüentemente as milícias que eles criam não servem para a proteção de sua etnia contra um inimigo que, aliás, não existe, mas servem isso sim para explorar suas próprias etnias. Eles usam, pode-se dizer, o sistema do "senhor da guerra".
CM - Mas há também a intervenção de potências imperialistas, como no caso presente da Somália.
SA - É claro. Uma situação dessas convida de modo ilimitado a intervenção de forças exteriores, das potências imperialistas.
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