terça-feira, 28 de novembro de 2006

Quixote no palanque, Sancho Pança no governo
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O intervalo que estamos vivendo, esse tempo que vai da eleição até a posse do vitorioso, aguça a curiosidade pública e se desdobra como uma espécie de “interrogatório inesgotável”. O eleito disfarça sempre, não diz o que está realmente fazendo. Solta balões de ensaio, emite sinais contraditórios. Negocia e negaceia. A marcha noturna dos interesses que garantiram a vitória e vão constituir o governo simula alvoradas para despertar especulações, ilusões, e até esperanças.
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Há um complicador extra para o caso da última eleição presidencial. Lógicas distintas presidiram cada um dos dois turnos da disputa. O primeiro turno, que definiu a correlação de forças no Congresso e o sentido geral da eleição, foi marcado pela supremacia absoluta das máquinas do interesse puro. O segundo turno ressuscitou, pelo menos no plano da propaganda, a polarização ideológica entre esquerda e direita, particularmente em torno do debate sobre as privatizações.
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Como deu resultado e deslocou uma parcela considerável de votos, algumas vozes até respeitáveis passaram a maquinar expectativas de mudanças. É o caso, por exemplo, do artigo publicado na Folha de São Paulo, de 22/11, pelo professor Boaventura de Sousa Santos. Segundo ele, os brasileiros “preferiram correr o risco de votar num governo que os pode desiludir a votar num governo que, à partida, já não os consegue iludir”. Perplexo diante do que chama “dissonâncias cognitivas reveladas nessas eleições”, ele aposta em uma guinada para a esquerda no segundo mandato de Lula.
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No entanto, as articulações em curso para a formação do governo não contemplam as expectativas do sociólogo português. O governante eleito, apesar de conservar o dom de iludir, se move no terreno do pragmatismo mais exacerbado. Empirista radical, ele só alocou em tempos pregressos o seu discurso no plano dos grandes projetos de transformação social por puro pragmatismo. A Idade de Ouro da utopia, que buscava “introduzir demasiado rápido o futuro no presente”, é para ele uma página virada. Sobrevive apenas no discurso, onde as promessas de mudanças não passam de peças de palanque.
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A lógica que governa o presente é outra, a da Idade de Ferro. Em tal quadro, sob o império do logro e da malícia, onde o interesse e o favor se sobrepõem aos valores republicanos, a “lei do conchavo” governa os acontecimentos. A embocadura do segundo mandato de Lula – um craque da pequena política - não autoriza qualquer otimismo entre os que lutam por mudanças na realidade social brasileira. Tudo indica que ele seguirá as mesmas linhas gerais do primeiro. O “esquerdismo” do segundo turno, o marqueteiro da campanha até avisou, foi apenas um exercício de “manducação simbólica”: Quixote no palanque, Sancho Pança no governo.
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Léo Lince é sociólogo.

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