sábado, 11 de novembro de 2006

Lula reedita Vargas

Embora cite muito JK, é com o Getúlio Vargas da segunda fase que Lula mais se assemelha. Quando foi deposto em 1945, por força da queda do fascismo, contra o qual o Brasil, embora o praticasse internamente, lutou na Segunda Guerra Mundial, Vargas deu seu toque de Midas no processo de redemocratização que se instalava.
Criou em torno de si dois partidos aparentemente antípodas, mas que lhe asseguravam hegemonia política no quadro nascente: PTB e PSD. Transpostas para o cenário contemporâneo, aquelas legendas caberiam como luva no PT e PMDB, partidos que hoje compõem a base parlamentar de Lula e que devem comandar, a partir de janeiro próximo, um governo de coalizão.
Coalizão, como se sabe, não é mera aliança. No governo que se encerra, o PMDB figurou como aliado ocasional. Ganhou alguns ministérios – menos do que pretendia – e não participou nem da formulação, nem das decisões de governo. Num regime de coalizão, como se esboça, o partido não apenas estará, mas também será governo. O ser e o estar, em português, diferem em forma e conteúdo – mas, num governo de coalizão, são mais que complementares: são indissociáveis.
O PTB de Vargas (nada a ver com o de Roberto Jefferson) abrigava o sindicalismo ainda incipiente e chapa-branca de então e sustentava um discurso de centro-esquerda. O PSD, de centro-direita, atraía oligarcas estaduais, conservadores e fisiológicos.
Noves fora as diferenças de época, pareciam-se enormemente com os atuais PT e PMDB. Vargas, ao atraí-los, montou uma máquina eleitoral invencível. Nenhum adversário a abalou. Em 1954, em plena campanha do mar de lama, comandada pela UDN de Carlos Lacerda, Vargas lançou mão de um inesperado pulo do gato para preservá-la, impondo com seu suicídio revés de dez anos a seus adversários. O golpe de 64, na verdade, aconteceria em 54, não fosse o suicídio.
A dobradinha PSD-PTB ainda elegeria JK-João Goulart no ano seguinte, em 1955, e manteria a titularidade sobre a vice-presidência na eleição presidencial vencida pelo adversário Jânio Quadros, em 1960. Goulart, do PTB, acabaria presidente em face da renúncia de Jânio, tentativa de golpe que lhe saiu pela culatra.
Por ironia, acabou sendo um personagem da própria coligação varguista – o então deputado petebista Leonel Brizola - que poria fim à parceria. Com um discurso radical e inflamado, Brizola assustou os conservadores do PSD e isolou politicamente Jango, seu cunhado.
O golpe de 1964 só se consumou quando o PSD, descrendo da capacidade de Jango de colocar-se acima das pressões de Brizola e da esquerda que o seguia, afastou-se dele. E o partido, com espantosa capacidade de sobrevivência, recolocou-se na cúpula do novo regime: José Maria Alckmin, ex-ministro da Fazenda de JK e deputado do PSD de Minas, foi vice-presidente da República do marechal Castello Branco.
A máquina de guerra que Lula está montando abarca um vasto leque do espectro político. Inclui oligarcas como Sarney e Jader Barbalho, sindicalistas, intelectuais e artistas. Vai dos grotões às metrópoles. E tem a vantagem de não possuir, do outro lá, nada parecido com um Carlos Lacerda.
O que a UDN representou para o varguismo dilui-se hoje na dobradinha PFL-PSDB. As duas personalidades políticas mais fortes dessa coligação – respectivamente Antonio Carlos Magalhães (PFL) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – nem de longe possuem o vigor e a juventude que Lacerda então esbanjou. Lacerda, de certa forma, era uma síntese de ambos: possuía a adrenalina de ACM e o verniz intelectual de FHC. Mas os condensava e fundia num talento político monumental, que nenhum dos dois possui.
ACM, de quebra, terá que lidar com dificuldades consideráveis no plano regional, onde foi amplamente derrotado. Já FHC dará mais trabalho. O PSDB paulista tem o suporte do governo estadual, instância poderosa, e o ex-presidente disporá sempre de tribunas influentes para disparar o seu verbo sobre o governo Lula.
De qualquer forma, FHC está longe de ter a contundência predatória de um Lacerda, que tinha a embalá-lo a ambição de chegar à Presidência da República. Não é mais o seu caso.
Sabendo manter o equilíbrio entre as forças díspares que o sustentam, e fazê-las manter o adversário sob controle, Lula terá a possibilidade de reeditar a performance política de Vargas, com algumas vantagens sobre este. Além de não haver nenhum gênio político a lhe fazer oposição, não vive uma conjuntura radical como a daquela época. O segundo governo Vargas deu-se em plena Guerra Fria, em que o confronto esquerda-direita era inapelável – e tinha nos Estados Unidos um protagonista irresistível.
Lula vive outra realidade, em que o traço ambíguo de sua personalidade, que lhe permite ter simultaneamente o apoio de Jader Barbalho e de Frei Betto, de Hugo Chavez e de George Bush, pode se exercitar sem receios. O primeiro desafio que enfrenta – e onde essa ambigüidade já tem sido manifesta – é o da montagem ministerial.
Satisfazer os apetites de PT e PMDB é tarefa que reclama o gênio político de Vargas – e para cujo êxito nenhum Fome Zero ou Bolsa-Família seria suficiente.

Ruy Fabiano é jornalista

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