sábado, 18 de novembro de 2006

Jornalismo além do barulho dos aviões
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Em Salvador, esta semana, na segunda-feira, 13, moradores e visitantes normalmente deslumbrados pelos encantos da “terra do sol o ano inteiro” enfrentaram um temporal que imagino assemelhado com o do primeiro dia do dilúvio bíblico. Na mesma data, em várias capitais, incluindo a da Bahia, começava nos aeroportos a segunda onda do que promete ser a atração da temporada de verão que bate à porta: o “apagão aéreo”.
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O furdunço tem ocupado os espaços mais nobres e mais amplos dos noticiários das TVs, emissoras de rádio e diários impressos. Paulatinamente, joga para plano secundário, quando não para o esquecimento, assuntos considerados urgentes e prioritários até recentemente: PCC, massacre diário de jovens e a expansão do crime organizado; dossiês dos Vedoins; epidemia da dengue, que já alcançou mais de 280 mil pessoas em 2006 – 61 das quais morreram nos nove primeiros meses do ano, de Sul a Nordeste. A crise do tráfego aéreo é agora o tema mais urgente , segundo se ouve e se lê.
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No meio do toró baiano, comecei a conjeturar sobre essas coisas. A imaginar algo mais nos céus e terras do Brasil além dos aviões de carreira, como o Boeing da Gol ou o jato Legacy produzido pela Embraer e adquirido por um grupo americano, que se chocaram na imensidão do espaço aéreo da Amazônia: 154 mortos e um mistério que cobra explicações além do precário relatório preliminar apresentado pela Aeronáutica esta semana. Confesso também o meu ceticismo diante das aparências e de coisas apresentadas como verdades óbvias, palpáveis e indiscutíveis. Aprendi aquela que considero uma das lições básicas do jornalismo: desconfiar sempre.
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Por exemplo: em Salvador, vejo durante o dia as ruas alagadas, casas invadidas ou arrastadas pelo aguaceiro, vias fundamentais de tráfego, como a Paralela, transformadas em “açudes” intransitáveis, deslizamento de terra, três mortos por soterramento e centenas de desabrigados. À noite, porém, o caos na terceira maior capital brasileira recebe espaço minúsculo nos noticiários de redes de televisão. No dia seguinte, registro mínimo, ou nenhum, nos grandes diários do País. Mais estranho ainda: na farta cobertura do alvoroço da classe média nos aeroportos, às vésperas de mais um feriado, não se cogita na possibilidade de haver alguma relação entre os atrasos nas chegadas e partidas de vôos em Salvador com o temporal devastador que desaconselhava qualquer pouso ou decolagem.
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Em Es Notícia, edição espanhola do livro do italiano Giovanni Cesareo escrito a partir do dramático episódio do seqüestro e assassinato do premiê italiano Aldo Moro, em maio de 1978, há uma abordagem nua e crua dos mitos gerados em volta do trabalho jornalístico. Perspicaz e consagrado conhecedor do mundo da informação, o autor estabelece em sua obra as regras que, nítida ou veladamente, organizam a circulação da informação jornalística na mídia, “como lugar privilegiado de construção da realidade”.
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Ao analisar o “caso Moro” – o primeiro-ministro foi encontrado morto na mala de um automóvel abandonado em uma ruazinha do centro de Roma –, Cesareo mostra: perdidos em meio ao agônico blecaute de informações significativas, de verificações diretas, de análises fundadas dos processos reais que haviam levado à formação do grupo terrorista Brigadas Vermelhas e ao desenvolvimento de suas atividades, e do contexto político e social em que se produzira o seqüestro, as tevês, os diários e semanários produziram cargas de abobrinhas, intercaladas de informações oficiais e milhares de detalhes. Por um lado, para registrar e difundir o que a magistratura, a polícia e os dirigentes de partidos queriam comunicar. Por outro, para manter vivo o assunto, criando uma atmosfera, evocando ambientes, descrevendo minuciosamente pequenos fatos reais, presumidos e até imaginados (logo a seguir desmentidos e esquecidos).
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“Fragmentos úteis para compor principalmente um largo espetáculo a ser consumido como tal, sem um ápice de autêntico conhecimento”, afirma o jornalista italiano, no estudo que põe de relevo a importância assumida pelas chamadas “rotinas” produtivas como determinantes das opções seguidas pelos jornalistas para decidir o que é e não é notícia no imenso depósito de abastecimento de informação em estado bruto. Tanto tempo depois, é possível que isso nada tenha a ver com o que se assiste e se lê no Brasil de hoje. Mas não custa nada lembrar...
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Vitor Hugo Soares - Jornalista, é editor de Opinião de A TARDE.
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