domingo, 26 de novembro de 2006

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Reproduzido de O Globo
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É próprio das democracias que as forças derrotadas reconheçam os resultados das urnas. Isto não significa, é claro, que devam se resignar a eles. Ao contrário, que mantenham seus programas, continuem lutando por eles, estudando, com serenidade, as razões e as desrazões dos fracassos, para que possam se preparar para as novas oportunidades que virão. Assim é que se garante a eventual alternância do poder - outra pedra angular do regime democrático. Infelizmente, apesar de importantes exceções, não é desta forma que estão reagindo muitas lideranças políticas e intelectuais que esperavam uma derrota fragorosa do PT e de Lula nas recentes eleições.
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Empenharam-se duramente, e por longo tempo, em "varrer esta raça" da cena política, como disse de forma deselegante e preconceituosa um líder do PFL. Ora, quem acabou quase varrido do mapa político, pelo menos temporariamente, foi o próprio PFL, e os prognósticos catastróficos formulados pelas direitas e por importantes setores de extrema-esquerda, que, neste caso, deram-se as mãos, não se realizaram, para frustração de não poucos. O PT, perdendo embora importante fração dos votos obtidos em 2002, consolidou-se como um partido bom de voto, arrebatando, pelo segundo pleito consecutivo, a maior votação, em termos nacionais.
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Considerando os aloprados que tem e o massacre midiático que sofreu, o resultado não foi nada irrelevante. Só não ficou com a maior bancada devido a distorções no sistema político-eleitoral que, espera-se, sejam agora corrigidas por uma reforma política, mais do que nunca, urgente. Quanto a Lula, teve um segundo turno consagrador, distanciando-se do adversário, e repetindo praticamente a votação de 2002.
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Para os perdedores, uma severa derrota, recomendando, como se disse, a necessidade de uma reflexão a respeito dos movimentos profundos da sociedade, dos fundamentos econômicos, políticos e culturais das predileções e escolhas do povo, que levaram à vitória quem venceu. E também sobre os erros cometidos - da escolha dos candidatos à formulação das propostas. Das alianças urdidas à publicidade elaborada.
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Em vez disso, o que se observa? Um transbordamento de ressentimentos que chegaria a assustar, não fosse risível. Uns, os ressentidos, bradam que o povo não sabe mesmo votar. Teria sido, mais uma vez, engabelado por astutos políticos, hábeis no verbo, manipuladores das palavras e dos dinheiros públicos.
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E concluem, desesperançados, que não adianta mesmo esperar nada de bom "deste povo", ou "desta raça". Afinal, este povo, e, aliás, todos os outros, não sabem mesmo votar. Outros, amargurados, dizem que o povo é bom, mas foi enganado. No fundo, pensam, o povo é mesmo multidão irracional - basta aparecer uma flauta mágica, pronto!, já esta manada se desencaminha e é capaz de cair nos piores abismos.
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Há também os piedosos. Para estes, os pobres, "tadinhos!, vivem na miséria - algumas migalhas seriam suficientes para ganhar sua fidelidade, votam com o "bolso". Retomando, às vezes, sem saber, a ladainha de um marxismo vulgar, explicam tudo a partir do estômago, ou seja, nada esclarecem, a não ser aos que já se deixaram ganhar pelos mais atrozes preconceitos. Restaria mencionar os arrogantes, os aristocratas do pensamento, os gênios incompreendidos.
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A cantilena aqui é bruta mesmo: "Que se dane o povo com suas pedestres análises!" Não se solidarizam com ninguém, e cultivam uma raiva ancestral, provinda da cultura política da velha União Democrática Nacional/UDN, das oligarquias liberais, sempre ruins de voto. A cada derrota, e elas foram numerosas, ficavam ruminando rancores, proferindo impropérios, assediando, vivandeiras, os milicos, seduzindo-os a investir pela força um poder inalcançável por eleições livres e democráticas.
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A velha UDN, com seu rançoso aristocratismo, desapareceu há décadas, mas a cultura política elitista que lhe conferia força não morreu, permanece viva como nunca, assumindo cores diversas, do vermelho-escuro da revolução catastrófica ao branco imaculado da contra-revolução. Estes aristocratas não fazem senão mastigar os próprios dentes, não analisam, afrontam; não explicam, ofendem; não compreendem nada, só injuriam. Alguns, ainda jovens, já se tornaram anacrônicos. Pensam que estão no futuro, mas apenas restauram o passado. Por mais que se queiram modernos, e arvorem o casual chic, e se lambuzem em caras lavandas, cheiram mesmo ao odor enjoativo da naftalina.
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Quanto a mim, prefiro a companhia de um velho revolucionário russo, A. Herzen. Embora odiando os demagogos, que adulavam a multidão, odiava ainda mais os aristocratas que caluniavam o povo.
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DANIEL AARÃO REIS é professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense.

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