As recentes operações da Polícia Federal – de significativa nomenclatura (Furacão e Navalha) – expõem mais uma vez as vísceras da elite governante brasileira. Não é a primeira vez que isso acontece, sem que a lição tenha sido aprendida. Será desta vez?
Há 15 anos, foi deposto um presidente da República sob acusação de corrupção. Um ano depois, alguns de seus acusadores no Congresso seriam igualmente cassados, na CPI do Orçamento, sob acusações análogas. Corrupção – ativa e passiva.
Ninguém foi preso, mas não se pode dizer que nada aconteceu. A carreira da maioria foi encerrada e o desgaste da exposição negativa custou caro para muitos. Imaginou-se, na época, que o Brasil tinha enfim rompido com a cultura da impunidade e estava sendo passado a limpo. Ledo engano.
Houve apenas uma troca de moscas, sem que o esterco em que elas chafurdavam tenha sido removido. Ainda está aí, como se vê neste momento. Desfilaram pela CPI do Orçamento, em 1993, o nome de diversas empresas e empresários, fornecedores do Estado, entre os quais os mais poderosos do mercado - e 14 anos depois continuam aí, com os mesmos métodos.
Pior: geraram filhotes. A Gautama, por exemplo, surgiu por intermédio de um ex-lobista da OAS, empreiteira baiana. Seu proprietário, Zuleido Veras, foi durante anos o operador daquele empreiteira no Congresso Nacional.
Era seu principal lobista, incumbido exatamente de negociar as tais emendas parlamentares ao Orçamento. Quando se sentiu com musculatura suficiente para um vôo solo, criou a Gautama (nome que evoca a eminente figura de Buda como fachada para atividades totalmente antibudistas, o que é uma tosca ironia).
Os métodos da Gautama são diferente dos das demais? Pelo que se sabe, não. Pode-se argumentar que foi mais agressiva, mais explícita, mais descarada, mas, na essência, o jogo é o mesmo. É o toma-lá-dá-cá com o dinheiro público. O custo das propinas é repassado ao custo da obra e a conta vai para o contribuinte: eu, você, caro leitor. A CPI do Orçamento já havia demonstrado isso.
Há 14 anos.
Há uma diferença entre aquele momento e este. Agora, há polícia no jogo. Alguns estão presos, expostos e algemados – e não são exatamente bagrinhos, arraia miúda. Sabe-se que há gente mais graduada, cujos nomes têm sido pronunciados à boca pequena nos corredores do Congresso. Governadores, prefeitos, parlamentares.
A OAB pediu uma CPI para investigar as empreiteiras e sua relação com o Estado. O senador Pedro Simon já o fizera antes. Há 14 anos. Jamais seu pedido foi levado a sério.
Quando assumiu a Presidência da República, em 1994, Fernando Henrique Cardoso fez uma avaliação aguda da situação. Faltou apenas, nos oito anos que se seguiram, materializá-la.
Disse que não bastava prender os ratos (embora fosse indispensável fazê-lo). Era preciso fechar os ralos e frestas pelos quais eles invadiam (e roíam) os cofres públicos. Em síntese, era preciso reformar o Estado. Mas a reforma não foi feita, não ao menos na proporção que impedisse o livre acesso dos ratos. Os bueiros continuam dando pleno acesso aos cofres. E haja ratos.
A responsabilidade pela omissão, como é óbvio, não é apenas do Executivo. É amplamente compartilhada com o Legislativo, que deveria fiscalizá-lo, mas, em vez, protagoniza com ele atos politicamente incestuosos.
O governo Lula tem a oportunidade histórica de fazer a reforma do Estado. Sem que isso ocorra, a CPI será mais um espasmo de moralidade, penalizando alguns, sem que a matriz do problema seja saneada. É como enxugar o chão com a torneira aberta.
O diagnóstico da crise do Estado brasileiro está mais do que feito. Sabe-se também o que de imediato precisa ser feito para mudar o padrão iníquo de gestão da vida pública. Falta vontade política de fazê-lo. Em 1870, dom Pedro II dizia, numa reunião ministerial, que todos os problemas do Brasil decorriam do “modo como são feitas as eleições”. Reforma política. Desde aquela época.
Há anos, discute-se no Congresso a necessidade de mudar o modelo do Orçamento da União, fonte de toda essa lama que tem agora a empreiteira Gautama como protagonista. Há uma proposta de emenda constitucional nesse sentido tramitando no Senado.
O Orçamento é autorizativo. A proposta é para que se torne impositivo. Parece bobagem, mas não é. Todas as rubricas que lá constam, autorizando gastos, só serão feitas se o Executivo achar que deve. Parte substantiva é de autoria de parlamentares, que fazem emendas à Lei do Orçamento, votada no Congresso.
Essas emendas prevêem obras cuja essência muitas vezes é questionável. Mas garantem votos e prestígio ao autor – e algumas vezes propinas na intermediação com as empreiteiras que vão realizá-las. O Executivo sabe do interesse dos parlamentares naquelas obras. E só liberam o recurso previsto (o tal descontingenciamento) mediante negociação política.
Sempre que há alguma crise ou alguma proposta a ser votada no Congresso de interesse do Executivo, a manobra se repete: o governo aborda os resistentes (e muitos resistem exatamente para ser abordados) e negocia o descontigenciamento das emendas.
Para muitos, é um momento de euforia: atendem as bases e atendem-se naquela base – esta que aí está, exibida pela Gautama, que, como é óbvio, não tem o monopólio da iniqüidade.
Vejamos se a CPI sai – e se o Congresso sobrevive a ela.
Há 15 anos, foi deposto um presidente da República sob acusação de corrupção. Um ano depois, alguns de seus acusadores no Congresso seriam igualmente cassados, na CPI do Orçamento, sob acusações análogas. Corrupção – ativa e passiva.
Ninguém foi preso, mas não se pode dizer que nada aconteceu. A carreira da maioria foi encerrada e o desgaste da exposição negativa custou caro para muitos. Imaginou-se, na época, que o Brasil tinha enfim rompido com a cultura da impunidade e estava sendo passado a limpo. Ledo engano.
Houve apenas uma troca de moscas, sem que o esterco em que elas chafurdavam tenha sido removido. Ainda está aí, como se vê neste momento. Desfilaram pela CPI do Orçamento, em 1993, o nome de diversas empresas e empresários, fornecedores do Estado, entre os quais os mais poderosos do mercado - e 14 anos depois continuam aí, com os mesmos métodos.
Pior: geraram filhotes. A Gautama, por exemplo, surgiu por intermédio de um ex-lobista da OAS, empreiteira baiana. Seu proprietário, Zuleido Veras, foi durante anos o operador daquele empreiteira no Congresso Nacional.
Era seu principal lobista, incumbido exatamente de negociar as tais emendas parlamentares ao Orçamento. Quando se sentiu com musculatura suficiente para um vôo solo, criou a Gautama (nome que evoca a eminente figura de Buda como fachada para atividades totalmente antibudistas, o que é uma tosca ironia).
Os métodos da Gautama são diferente dos das demais? Pelo que se sabe, não. Pode-se argumentar que foi mais agressiva, mais explícita, mais descarada, mas, na essência, o jogo é o mesmo. É o toma-lá-dá-cá com o dinheiro público. O custo das propinas é repassado ao custo da obra e a conta vai para o contribuinte: eu, você, caro leitor. A CPI do Orçamento já havia demonstrado isso.
Há 14 anos.
Há uma diferença entre aquele momento e este. Agora, há polícia no jogo. Alguns estão presos, expostos e algemados – e não são exatamente bagrinhos, arraia miúda. Sabe-se que há gente mais graduada, cujos nomes têm sido pronunciados à boca pequena nos corredores do Congresso. Governadores, prefeitos, parlamentares.
A OAB pediu uma CPI para investigar as empreiteiras e sua relação com o Estado. O senador Pedro Simon já o fizera antes. Há 14 anos. Jamais seu pedido foi levado a sério.
Quando assumiu a Presidência da República, em 1994, Fernando Henrique Cardoso fez uma avaliação aguda da situação. Faltou apenas, nos oito anos que se seguiram, materializá-la.
Disse que não bastava prender os ratos (embora fosse indispensável fazê-lo). Era preciso fechar os ralos e frestas pelos quais eles invadiam (e roíam) os cofres públicos. Em síntese, era preciso reformar o Estado. Mas a reforma não foi feita, não ao menos na proporção que impedisse o livre acesso dos ratos. Os bueiros continuam dando pleno acesso aos cofres. E haja ratos.
A responsabilidade pela omissão, como é óbvio, não é apenas do Executivo. É amplamente compartilhada com o Legislativo, que deveria fiscalizá-lo, mas, em vez, protagoniza com ele atos politicamente incestuosos.
O governo Lula tem a oportunidade histórica de fazer a reforma do Estado. Sem que isso ocorra, a CPI será mais um espasmo de moralidade, penalizando alguns, sem que a matriz do problema seja saneada. É como enxugar o chão com a torneira aberta.
O diagnóstico da crise do Estado brasileiro está mais do que feito. Sabe-se também o que de imediato precisa ser feito para mudar o padrão iníquo de gestão da vida pública. Falta vontade política de fazê-lo. Em 1870, dom Pedro II dizia, numa reunião ministerial, que todos os problemas do Brasil decorriam do “modo como são feitas as eleições”. Reforma política. Desde aquela época.
Há anos, discute-se no Congresso a necessidade de mudar o modelo do Orçamento da União, fonte de toda essa lama que tem agora a empreiteira Gautama como protagonista. Há uma proposta de emenda constitucional nesse sentido tramitando no Senado.
O Orçamento é autorizativo. A proposta é para que se torne impositivo. Parece bobagem, mas não é. Todas as rubricas que lá constam, autorizando gastos, só serão feitas se o Executivo achar que deve. Parte substantiva é de autoria de parlamentares, que fazem emendas à Lei do Orçamento, votada no Congresso.
Essas emendas prevêem obras cuja essência muitas vezes é questionável. Mas garantem votos e prestígio ao autor – e algumas vezes propinas na intermediação com as empreiteiras que vão realizá-las. O Executivo sabe do interesse dos parlamentares naquelas obras. E só liberam o recurso previsto (o tal descontingenciamento) mediante negociação política.
Sempre que há alguma crise ou alguma proposta a ser votada no Congresso de interesse do Executivo, a manobra se repete: o governo aborda os resistentes (e muitos resistem exatamente para ser abordados) e negocia o descontigenciamento das emendas.
Para muitos, é um momento de euforia: atendem as bases e atendem-se naquela base – esta que aí está, exibida pela Gautama, que, como é óbvio, não tem o monopólio da iniqüidade.
Vejamos se a CPI sai – e se o Congresso sobrevive a ela.
Ruy Fabiano Jornalista
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