quarta-feira, 30 de maio de 2007

Crônica do Márcio

MISERESMA BICOLOR
João estacionou seu fusca azul da cor de seus sonhos em frente ao posto de saúde de seu bairro e adentrou ao recinto:
- Moça, como é que eu faço para consultar o dentista?
- É urgente?
- Sim! Tô co buraco aberto, e é bem na frente, veja!...
- Amanhã às oito e meia.
- Não dá pra ser hoje?
- Não! À tarde só atendemos crianças. Venha amanhã às oito e meia que o doutor vai atender você em caráter de emergência.
- Sim! Eu venho hoje com o buraco aberto e serei atendido amanhã com urgência?!... Entendo... Urgência do dia seguinte!...
Na manhã seguinte, João volta, desta vez a pé, afinal, veículo nenhum anda sem o nosso combustível auto-suficiente, mesmo que seu fusca azul da cor de seus sonhos fosse total flex, jamais funcionaria só com oxigêneo. Trajava uma calça social azul, camisa xadrez de preto com amarelo-ovo, um colete vermelho-sangue, paletó verde-água e sapato marrom com cadarços brancos (um luxo!... colocou seu melhor traje para aquela consulta)... Depois de algum tempo esperando, é chamado pelo dentista, senta-se na cadeira, quase na horizontal, obrigado a olhar para um refletor que não inspira nem um pouco de fama, somente dor. O doutor faz a restauração... Trabalho perfeito! Só não encontrou a resina da mesma coloração do dente do João, mas não é de todo mal ter um sorriso bicolor.
- Este seu dente sofreu uma fratura por deslocamento, João...
- Que nome chique prum troço que dói tanto, doutor!...
- De agora em diante, você terá que se cuidar, não poderá mais morder com este dente.
- Que utilidade tem um dente que não serve para morder, doutor?... É o mesmo que meu fusca sem combustível: existe, mas não cumpre sua obrigação...
- Deverá tomar cuidado com alimentos mais duros, como a carne.
- Doutor, há meses que eu não como carne. Isso não será problema.
- Porquê? É penitência?... Mas a quaresma já acabou!...
- Acabou! Mas a miseresma continua... E sem previsão para terminar...
E lá se foi o João, com seu sorriso bicolor, resgatar seu fusca azul da cor de seus sonhos, que também não sobrevive à miseresma auto-suficiente. Em uma das mãos, um litro descartável de refrigereco vazio que sobrou da última ceia de Páscoa; e na outra, cinco pila pra gasosa... Na mente, a esperança de que um dia, aqueles excelentíssimos eleitos mostrando o sorriso na campanha mostrem agora trabalho a fim de fazer o povo ter motivos para sorrir... A consciência?... Tranqüila! Pois agora abstem-se da carne não por necessidade, mas por orientações odontológicas.
Afinal, mesmo na miseresma o sorriso, ainda que bicolor, é essencial.
Márcio Roberto Goes
Sempre sorridente

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