quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Saída Taboão
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A menos que o PT apronte mais uma bem cabeluda, Luiz Inácio Lula da Silva deverá ser reeleito presidente da República no próximo domingo com uma votação consagradora. Faço então a pergunta que não quer calar: como é possível que Lula e o PT vençam de forma tão clara --61% a 39% pela última pesquisa Datafolha-- mesmo depois do festival de escândalos que se abateu sobre o país?
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Comecemos identificando algumas falsas respostas. Não me parece correto afirmar, como vêm fazendo alguns setores das --desculpem-me, mas não resisto-- "elites", que se trate de um problema de desinformação dos menos instruídos. As sondagens mostram que a maioria dos eleitores afirma existir corrupção no governo e atribui ao presidente responsabilidade nos casos. Ainda assim, avalia bem a administração e está disposta a conceder mais quatro anos a Lula.
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Uma interpretação possível é concluir que a população aderiu em massa ao "rouba, mas faz". Em algum grau, isso é verdade, mas não necessariamente porque os brasileiros sejamos todos um bando de maus-caracteres que não ligam para a ética na administração pública.Definir o voto é uma operação complexa que mobiliza as mais diversas faculdades. Estão em jogo aspectos emocionais, como a relação afetiva com o partido de preferência, e racionais, a exemplo de considerações sobre as vantagens ou desvantagens pessoais que determinada proposta implica.
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O peso que a questão ética vai ter no cálculo de cada eleitor depende da posição relativa que cada um de vários critérios ocupa na hierarquia mental. Nesse contexto, não me parece absurdo desculpar os "deslizes" do PT --que em maior ou menor grau são cometidos por todas as agremiações-- por achar que o atual governo vem fazendo um bom trabalho na redução da desigualdade social, por exemplo.
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Não é evidentemente o meu caso. Não discordo de que outras administrações também tenham incorrido em desmandos. Como não dispomos de um corruptômetro, parece-me bobagem tentar estabelecer se foi o PT ou o PSDB quem aprontou mais. O fato é que, no meu mapa mental, é bastante grave o fato de a legenda situacionista ter passado por cima de 20 anos de pregação ética na qual inadvertidamente acreditei. O partido que tentava conquistar simpatias afirmando, com alguma credibilidade, ser diferente de todos os outros hoje se defende de acusações graves dizendo ser igualzinho aos demais.
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Outra decepção é com o fato de o governo petista ter-se revelado, pelo menos para mim, um engodo. Talvez ingenuamente eu esperava que, após 20 anos na oposição e contando com um quadro de militantes e simpatizantes qualificados nas mais diversas áreas, o PT tivesse projetos consistentes e "de esquerda" para a educação, a saúde, a ciência. Se os tinha, nem tentou implementá-los. Os integrantes do governo parecem limitar-se a comemorar os "sucessos" obtidos pela política econômica elaborada, aliás, por seus antecessores. Diga-se, de passagem, que o principal esporte dos economistas do PT nas duas décadas anteriores havia sido criticar essa política.
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De resto, embora não me considere exatamente um legalista, acho que existe um núcleo de normas fundamentais para cujo cumprimento devemos envidar esforços máximos. Incluo aí as regras que visam a estabelecer uma relação republicana e transparente entre Executivo e Legislativo e a preservar o patrimônio público. Se queremos que essas leis sejam respeitadas, precisamos aplicar as sanções previstas para os que as violam, não importando quem sejam. Deixar de fazê-lo significa não apenas autorizar aquilo que pretendíamos proibir como ainda, num plano mais geral, dizer para toda a sociedade que as normas não precisam ser respeitadas. É a vitória da impunidade, com todos os efeitos que produz não apenas sobre a política mas também sobre a própria criminalidade.
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Essas críticas que faço ao PT não me tornam automaticamente um tucano. Na verdade, boa parte de minhas objeções às atitudes petistas valem também para os tucanos. Devo reconhecer-lhes, entretanto, maior capacidade para livrar-se de investigações.Em respeito à linha apartidária da Folha, abstenho-me de declarar meu voto. Admito, porém, que, neste segundo turno, venho flertando com o que chamo de saída Taboão. Para escapar ao dilema de optar entre duas candidaturas às quais faço fortes restrições, penso em dirigir-me a uma seção eleitoral qualquer de um município próximo --no caso, Taboão da Serra--, de onde posso justificar o não comparecimento. É uma forma legal e legítima de burlar à absurda e antidemocrática imposição do voto obrigatório.
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Reitero que não pretendo que essas minhas reflexões valham para todos. Elas fazem sentido à luz da minha hierarquia de valores, que pouco ou nada tem de universal. Quem recebe o benefício do Bolsa Família tem todas as razões para votar em Lula, assim como os rentistas que se fartam nos juros do governo.Como esta campanha bem evidenciou, a democracia encerra muitas e graves imperfeições. Um exemplo: o receio de descontentar os eleitores leva todos os candidatos a prudentemente deixar de dizer quais setores perderiam em seu governo. E arbitrar perdas é a primeira e mais inescapável das tarefas de um político. No fundo, é Platão quem tinha razão. Ele condenava a democracia por entregar ao maleável populacho ("hoì pollói"), tão facilmente manipulado pelas palavras melífluas dos demagogos, a responsabilidade de decidir os destinos da nação independentemente de considerações técnicas. Platão, porém, dispunha de uma idéia muito clara do que fosse a Verdade. Podia criticar tudo o que dela se afastasse. Não é o nosso caso.
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Até podemos discutir se determinado juízo descreve com precisão um fato, hipótese em que pode ser chamado de verdadeiro. Não temos, entretanto, a mais remota idéia do que possa ser uma verdade política universal. Esse é um terreno em que é melhor deixar a cada um a prerrogativa de estabelecer suas próprias prioridades. Nesse contexto o que Platão via como vícios da democracia converte-se em virtudes. Ao permitir que cada um vote livremente sem justificar-se ante à Verdade, a Deus ou à Técnica, criamos um jogo onde todos são iguais. O resultado até pode ser um monstrengo político, a soma de todas as demagogias, mas é um jogo que nos garante a paz social. Em vez de conspirar e matar para chegar ao poder, postulantes aos cargos de comando limitam-se a tentar ludibriar o eleitorado. É o melhor que pudemos alcançar até agora.
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Hélio Schwartsman,

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