quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Do direito de não votar
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O voto deve ser obrigatório? Dois presidenciáveis, Luiz Inácio Lula da Silva e José Serra, mais o presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, disseram na semana passada que são favoráveis ao fim da obrigatoriedade. Eu acompanho a opinião desses ilustres cidadãos, embora não necessariamente pelas mesmas razões que eles.
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Para começar, o voto compulsório tem cheiro de anacronismo. No Primeiro Mundo, apenas Austrália, Bélgica e Luxemburgo o adotam. Holanda e Áustria, cujas legislações também determinavam o comparecimento do eleitor às urnas, mudaram de idéia algumas décadas atrás.
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É claro que é complicado recorrer a exemplos externos. Em princípio, não é impossível que algo ocorra no mundo inteiro de um determinado modo, no Brasil da maneira exatamente inversa, e que o Brasil, e não o mundo inteiro, esteja certo. Precisamos, porém, reconhecer que essa hipótese tende a ser bastante improvável.
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Outra tese cara aos adversários da obrigatoriedade reza que ela favorece o voto de cabresto. Isso me parece a mais rematada bobagem. Para o coronel que manda seus peões sufragarem o candidato de seu agrado, a obrigatoriedade nada acrescenta. O trabalhador comparece ao colégio eleitoral porque o coronel assim determinou, e não a lei. Normalmente, a peãozada vive numa situação de tanta marginalidade que as sanções previstas para quem deixa de votar (multa e perda de alguns direitos, como prestar concursos públicos) não lhe dizem respeito. Isso sem falar no fato de que o Congresso invariavelmente anistia os eleitores _e de quebra também (ou principalmente) os eleitos_ em débito com a Justiça Eleitoral.
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Um pouco mais razoável me parece a idéia de que a obrigatoriedade beneficia os partidos do establishment. Como o cidadão tem de ir à urna de qualquer jeito, acaba votando nos candidatos que têm maior visibilidade, isto é, os de agremiações mais tradicionais. Seria um mecanismo que tenderia a brecar o voto inconsequente, extremista.
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Acho que o raciocínio faz sentido, mas não o compro integralmente. O que ocorreu em um ou mesmo em uma série de pleitos pode não valer para o próximo. Nada impede que, numa determinada eleição, o povo esteja tão descontente com os políticos de um modo geral que a votação compulsória acabe favorecendo um completo "outsider", um Cacareco.
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Se o contexto político é o de voto de protesto, o establishment tem muito a perder com a obrigatoriedade. É certo que a exigência legal do voto cria uma espécie de viés, mas é um viés que pode operar em diversos sentidos, dependendo de conjunções imprevisíveis dos mais variados fatores. É um fenômeno da mesma natureza da abstenção nos países em que só vai a urna quem assim o desejar só que com sinal invertido. Os australianos até cunharam uma expressão para designar o voto apático do cidadão que vai às urnas apenas para evitar complicações burocráticas: "donkey vote" (voto burro).
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Em minha opinião, o voto livre deve ser defendido por razões filosóficas e não táticas ou estratégicas. Antes de mais nada, precisamos recusar a ambiguidade direito-dever. Ou o voto é um direito ou um dever, não podendo partilhar dessas duas naturezas simultaneamente.
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Tomemos o caso de outra liberdade fundamental do Estado democrático, a liberdade de expressão. A ninguém ocorreria conceder-lhe o caráter ambíguo de direito-dever que se dá ao voto, pois fazê-lo implicaria obrigar todos os 170 milhões de cidadãos brasileiros a fazer uso da livre expressão do pensamento, queiram eles ou não, pensem eles ou não. Aqui, o disparate fica evidente.
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Poderíamos, por certo, negar ao voto a idéia de direito, classificando-o como um dever puro e simples, com o mesmo estatuto da obrigatoriedade de pagar tributos, por exemplo. Nesse caso, evitaríamos a armadilha lógica do direito-dever, mas poríamos a perder a noção de liberdade que subjaz ao conceito de direito. É uma contaminação problemática, pois, no limite, nosso voto se tornaria menos livre e, como consequência, a democracia, menos democrática.
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A distinção fundamental foi proposta, como quase sempre, por Immanuel Kant. Numa versão muito simplificada do que afirmou o filósofo de Königsberg, há duas formas de cumprir um dever. Podemos estar agindo "de acordo com o dever", ou "pelo sentido do dever". Quando respeitamos a velocidade máxima de uma estrada por medo de receber uma multa, estamos agindo "de acordo com o dever". Mas podemos também observar o limite de velocidade por acreditar que ele está de acordo com a racionalidade humana, que proporciona segurança e promove a paz no trânsito, por exemplo. Nesse caso, agimos "pelo sentido do dever". (Kant aqui seguiria até demonstrar o imperativo categórico, o princípio moral supremo, que, simplificando mais uma vez, diz "faze aos outros o que gostarias que te fizessem", mas eu paro um pouco antes).
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Quando eu deixo de correr mais por acreditar na norma do que pelo medo da multa (nem para Kant nós somos inteiramente racionais) sou mais livre do que na hipótese inversa. Estou agindo menos por interesse próprio e mais porque decidi exercer minha racionalidade. Estou atuando moralmente, o que, para Kant, é um fim em si mesmo. Mais até, é aí que reside a base da dignidade humana. Animais, diferentemente de homens, não podem escolher seguir a lei.
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Ao tornar o voto obrigatório, nós de algum modo reduzimos o grau de liberdade que existe por trás da decisão espontânea do cidadão de ir à seção eleitoral e escolher um candidato. Podemos afirmar que o voto obrigatório, constrangido pela lei, é menos moral do que o sufrágio livre, resultado da deliberação de um sujeito autônomo. E, para Kant, há uma identidade entre ser livre e ser moral.Aceitando-se a noção de que a democracia é a mais racional das formas de organização política já experimentada pela humanidade (não sei se isso é assim tão óbvio), nenhum ser racional deveria ser lembrado pela lei da necessidade de votar em seus representantes. Comparecer às urnas deveria ser, nesse cenário, uma simples consequência de carregarmos o nome Homo sapiens. Podemos dizer que a obrigatoriedade do voto nos toma, a nós eleitores, como seres não tão racionais, que precisam de um empurrãozinho da lei para fazer o que é certo. Suspeito até de que existe uma sabedoria kantiana por trás da expressão australiana "donkey vote".
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No plano filosófico, defender a obrigatoriedade do voto significa admitir que a escolha dos representantes será confiada a um bando de cidadãos não muito racionais. Se a idéia por trás do sufrágio compulsório era reforçar a democracia, não me parece que afirmar a irracionalidade do eleitor seja a melhor forma de fazê-lo. Pelo menos na teoria, a racionalidade do eleitor tem de ser um pressuposto da democracia, ou nem valeria a pena começar a jogar o jogo democrático.
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Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001.

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