sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Chávez e a democracia

Hélio Schwartsman

Longe de mim defender Hugo Chávez, exemplar do pior populismo latino-americano agravado por acentuadas tendências autoritárias, mas estão pegando no pé do coronel. Existem dezenas de motivos legítimos para criticar o presidente venezuelano. A proposta de reforma constitucional que acaba com a limitação de reeleições não é um deles. Por alguma razão obscura, porém, essa, que é apenas mais uma das muitas manobras urdidas pelo mandatário, converteu-se no símbolo de tudo o que há de errado no reino bolivariano.
Em termos puramente teóricos, não há problema nenhum em a população reeleger um líder tantas vezes quantas julgar conveniente. Não ignoro que a constituição de um Estado democrático exige bem mais do que apenas ouvir a voz das urnas. Se assim fosse, a Alemanha nazista, por exemplo, seria uma democracia, dado que o chanceler Adolf Hitler chegou ao poder através do voto. Para uma nação ser considerada democrática, ela precisa também, entre outros requisitos, comprometer-se a respeitar um núcleo de direitos aplicáveis a todos, cidadãos ou não. Essas garantias fundamentais não podem ser revertidas nem pela vontade da maioria.
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Outro traço distintivo das democracias é a possibilidade de alternância do poder. Para os antichavistas, é justamente contra esse princípio que as múltiplas reeleições presidenciais atentariam. Tenho dúvidas.
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Sou o primeiro a torcer o nariz para o populismo, ainda mais quando o caudilho em questão está sentado sobre uma reserva de petróleo de 100 bilhões de barris cotados perto de US$ 100 cada. Só que reeleição não significa recondução automática. Para efetivar-se, ela precisa ser referendada pelo voto da maioria da população, o que, gostemos ou não, é a regra de ouro do jogo democrático.
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Ainda no plano dos princípios, nunca entendi o cálculo segundo o qual a população pode escolher o mesmo presidente por dois mandatos, mas está proibida de fazê-lo por uma terceira ou quarta vez. Em termos estritamente lógicos, deveríamos rejeitar como antidemocrática toda exclusão prévia de candidatos que poderiam ser chancelados pela maioria dos eleitores.
Sei que a idéia por trás da limitação é evitar que um sujeito ou grupo político se perpetue no poder. Parece-me, entretanto, que o remédio escolhido é, ao mesmo tempo, pouco eficaz e teoricamente inconsistente. A ineficiência vem do fato de que não há como impedir que a agremiação de um governante bem-avaliado se mantenha no comando através de outro candidato. Pode-se até argumentar que ele não terá a mesma facilidade para vencer o pleito. Talvez, mas é preciso convir que o novo postulante já sai com uma boa vantagem pelo simples fato de pertencer à situação e contar com o apoio de um líder popular.
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O que mais me incomoda, entretanto, é o raciocínio que subjaz à idéia da limitação. Despindo-o dos eufemismos, o que ele basicamente diz é que o cidadão é um imbecil que se deixa enganar por dirigentes demagogos. Pode até ser verdade, mas parece-me problemático utilizar tal acepção de eleitor na definição do arcabouço institucional de um país. Não podemos ser tão esquizofrênicos a ponto de defender os pressupostos da democracia e rejeitar suas conseqüências.
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No mais, tenho minhas dúvidas de que a perpetuação de um presidente, desde que num paradigma democrático, seja assim tão nefasta. Não considero que os quatro mandatos de Franklin Delano Roosevelt, por exemplo, tenham apequenado a democracia norte-americana, muito pelo contrário. E vale lembrar que que ele só obteve as duas últimas reconduções devido a uma situação excepcionalíssima que era a Segunda Guerra Mundial. Também não acho que os 14 anos de François Mitterrand, que, em termos políticos, equivalem a meia eternidade, tenha feito tão mal assim aos franceses.
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Seja como for, já fui mais presidencialista do que sou hoje. Cada vez mais me convenço de que o parlamentarismo, por permitir um ajuste mais fino dos "checks and balances" (freios e contrapesos) que devem caracterizar as democracias, é um sistema mais arrojado e versátil do que o presidencialismo, que em muito se assemelha a preencher um cheque em branco. A questão da reeleição, por exemplo, não é um problema no parlamentarismo. Ali ninguém cogita de limitar o número de reconduções a que um líder pode submeter-se, mas, em contrapartida, o poder de um premiê é bem menor que o de um presidente, pois o governo só subsiste enquanto conserva a maioria dos deputados. Daí não se segue, é claro, que o parlamentarismo seja isento de dificuldades. Elas apenas são outras.
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Voltando à Venezuela, há uma lista telefônica de críticas e recriminações a fazer a Chávez. Ele já tomou diversas medidas autocráticas com claro viés democraticida. É o caso, por exemplo, das substituições que fez no Judiciário a fim de torná-lo mais maleável a seus propósitos. Aqui, houve, sim, desequilíbrio na repartição dos Poderes. Isso também ocorreu no Legislativo, mas aí por culpa exclusiva da oposição que decidiu boicotar as últimas eleições parlamentares entregando ao adversário controle total sobre o Congresso. Se há algo pior do que Chávez, é a oposição a Chávez.
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Também me pareceram graves as mordiscadas que o líder dá em setores da sociedade civil que não estão com ele. Os rumos que as coisas vêm tomado por lá me parecem preocupantes, muito embora, ao contrário do que a oposição a Chávez costuma sugerir, o país não possa ser comparado a uma ditadura clássica. Podem-se ler editoriais bastante violentos contra Chávez, ou seja, há relativa liberdade de imprensa e não há notícia de prisões sistemáticas de opositores. Talvez seja só uma questão de tempo, mas não precisamos pintar um quadro pior da Venezuela bolivariana apenas para justificar nossas apreensões.
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A própria "democracia plebiscitária" que o caudilho vem promovendo tem algo de engodo. Pessoalmente, não tenho nada contra a democracia direta, desde que respeitado o tal núcleo de direitos fundamentais que mencionei acima. Percebe-se, entretanto, que mesmo aqui Chávez manobra para impor sua agenda. Se a possibilidade de múltiplas reeleições é assim tão polêmica, um verdadeiro democrata deveria submetê-la a votação desvinculada de outros itens da reforma constitucional. Ao misturá-la a um "pacote de bondades", ele trai suas verdadeiras intenções e escancara seus métodos populistas.
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Embora ateu, acredito religiosamente que a democracia é o menos pior dos regimes políticos experimentados pela humanidade. Nesse contexto, gostaria de ver o coronel Hugo Chávez gozando merecidas férias longe de Caracas. Talvez em Palma de Mallorca em companhia do rei Juan Carlos. Eles se merecem. Não devemos, entretanto, no afã de ver nossas aspirações pessoais realizadas, dar-nos o direito de fazer críticas infundadas. Pelo conjunto da obra, Chávez deve ser visto com desconfiança por todos aqueles que prezam sociedades abertas, mas a proposta de acabar com a limitação às reeleições está longe de ser um crime de lesa-democracia. Se cabem reparos, eles vem por conta do "timing". Não há dúvida de que a mudança agora representa um casuísmo, mais ou menos a mesma crítica que se pode fazer a Fernando Henrique Cardoso, que introduziu a reeleição no Brasil para beneficiar a si próprio. É um gesto lamentável, mas que não chegou a comprometer a democracia brasileira, como à época denunciou o mesmo PT que não titubeou antes de usar o instituto em favor de Lula e que agora já se enamora da idéia de um terceiro mandato. Pobre América Latina, tão perto do populismo, tão longe da lógica.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001.

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