sábado, 14 de abril de 2007

O HERDEIRO DO DITADOR

A Editora Globo publicou, no início deste ano, um livro indispensável para a compreensão da história recente do País. Trata-se de “Jango – um perfil (1945 – 1964)”. Seu autor, o jornalista Marco Antônio Villa, traça um preciso esboço biográfico do ex-presidente João Goulart entre o fim da ditadura Vargas e o início do regime militar.

O ex-presidente sai com um retrato arrasador. Aliás, fica-se com a sensação que o autor iniciou a pesquisa sobre o seu biografado pensando estar diante de uma grande figura histórica e terminou decepcionado, diante de um pigmeu. João Goulart, ou Jango para os íntimos, emerge nesse perfil como um estancieiro indolente, beirando o alcoolismo, que foi ungido à condição de herdeiro político do ditador Vargas graças ao fato de terem fazendas na mesma cidade, São Borja. Toda a trajetória de vida de Jango, aliás, foi bafejada pela sorte, como ressalta o autor de seu perfil em diversos momentos.

Detalhes da vida privada que não teriam muito interesse na biografia de outros políticos, em “Jango – um perfil” ganham outro relevo. Por exemplo, freqüentar bordéis era uma atividade até tolerada pela sociedade naquele tempo e consta no máximo como nota de rodapé em outras biografias. Fica-se sabendo que Jango não apenas era freqüentador de casas de tolerância, mas que chegou a morar num lupanar porto-alegrense quando Secretário de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Pior ainda: dele não saía nem para cumprir funções oficiais. Seus secretários e assessores tinham que ir até o rendez-vous para dele obter um despacho ou assinatura, geralmente na cozinha. Assim Jango, já escolhido herdeiro do ditador deposto, cumpria as suas obrigações como secretário de Estado. Não causa surpresa, portanto, a informação de que uma doença venérea não curada lhe deixou manco para o resto de seus dias.

Se na vida privada Jango revelou-se um depravado, na política não foi muito melhor. O medo de assumir posições (quer à direita, quer à esquerda) surge como o traço marcante de sua personalidade. A vontade de chegar ao poder a qualquer custo, para depois ficar apenas na coreografia do cargo, é outra importante característica. Jango interessava-se apenas pelos conchavos políticos, detestando o dia-a-dia da administração. Como Presidente da República, conspirou desavergonhadamente a fim de acabar com o parlamentarismo. Insuflou em diversas ocasiões a quebra da hierarquia militar, com gestos e palavras favoráveis aos insurretos, o que acabou lhe custando o cargo (e à Nação a quebra da normalidade democrática). Fez discursos subservientes aos interesses norte-americanos que hoje fariam corar até diplomatas daquele país. Nunca teve um projeto de governo, apenas para o poder. Defendeu uma reforma agrária inexeqüível para colher os benefício políticos da contradição por ele mesmo engendrada.

Jango encarnou com perfeição as contradições de seu tempo e a condição de herdeiro político de Getúlio Vargas. Afinal, seu padrinho político fora igualmente um ditador sangüinário e um demagogo eleito democraticamente. Flertou tanto com o nazismo quanto com o comunismo (basta lembrar que na década de 30 Vargas mandou Olga Benário para um campo de concentração na Alemanha nazista; na década seguinte dividiu, sorridente, um palanque político com Luiz Carlos Prestes, já convertido em viúvo de Olga). Getúlio travestiu de “conquistas sociais” inúmeros engodos econômicos, dificultando as relações econômicas e os interesses dos trabalhadores, que ele jurava defender. Escolheu tão mal as pessoas de seu círculo íntimo que foi levado ao suicídio, como única forma de salvar a sua biografia. Dificilmente Getúlio Vargas encontraria um personagem melhor do que Jango para ungir como herdeiro.

O jornalista Marco Antonio Villa realizou um trabalho exemplar de pesquisa. Os detalhes da vida de Jango, por mais escabrosos, estão devidamente documentados. Ele até tentou melhorar o retrato de seu biografado, mas a bem da verdade histórica isso não se revelou possível. Como ele destaca na introdução, “quando nos aproximamos historicamente de Jango, da sua carreira política, especialmente dos 31 meses de governo, a imagem fica borrada. O destemido é substituído pelo fraco; o defensor das reformas, pelo conciliador; o presidente realizador, pelo incapaz de administrar a res publica. O político hábil aparece como um presidente inconseqüente, e o favorito de Getúlio Vargas, como fruto da fortuna e não da virtude, pensando como Nicolau Maquiavel”.

O autor de “Jango – um perfil” limitou o período histórico de seu trabalho entre 1945 e 1964. Assim escapou de analisar como o biografado pôde terminar a vida como um fazendeiro milionário, com terras espalhadas no Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. É verdade que seu pai era um rico proprietário rural, dono de 14.000 hectares de terras. Só que essas foram divididas entre Jango e mais 5 irmãos. Talvez um outro biógrafo possa se debruçar sobre este aspecto oculto da vida de Jango: uma história de sucesso empresarial. Assim a imagem final desse ex-presidente possa ser resgatada. Pela amostra dos 19 anos cobertos por Marco Antonio Villa, esse resgate é remotíssimo e o perfil deverá continuar por muito tempo arrasador.

Além de uma extensa bibliografia e de índice onomástico, o livro traz interessantes fotografias de Jango e de outra pessoas que para o bem e para o mal povoaram aquele período histórico.


VILLA, Marco Antonio. Jango – um perfil (1945 – 1964). Rio de Janeiro, Editora Globo, 2004, 287 páginas.

SUMÁRIO
Introdução
O ungido
Vamos jangar
João-Bom-Senso
O terceiro começo
“Só converso com militares”
Reforma ou golpe?
“A situação é calma”
Conclusão

Fonte: www.institutoliberal.org.br

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