segunda-feira, 30 de abril de 2007

Fazer a história possível

Edgar Morin é um respeitado intelectual francês com biografia comum aos da sua idade, sobretudo franceses: lutou na Segunda Guerra Mundial, filiou-se ao Partido Comunista, onde teve vida desconfortável, pois estava sempre disposto a questionar ordens e perguntar por quês e para quês. É sociólogo, antropólogo, historiador e filósofo. Em plena campanha eleitoral pela presidência da França, escreveu um artigo provocadoramente intitulado “Se eu fosse candidato”, do qual Clóvis Rossi deu pequena notícia na sua coluna na Folha de S.Paulo. Para um candidato, ainda que faz-de-conta, é um texto tão surpreendente quanto assustador.

De saída, alerta seus “eleitores” para o fato de que a França não vive isolada nem está dentro de um mundo imóvel. Ao contrário, integra-se a um sistema planetário, que “está condenado à morte ou à transformação – nossa época de transformações tornou-se uma transformação de época”. Sendo assim, esquiva-se de fazer as promessas comuns de candidatos presidenciais – saúde, educação, moradias, estradas, empregos. Em vez disso, pretende mostrar o caminho para uma Terra Pátria e uma Sociedade Mundo, com a reforma da Organização das Nações Unidas para suplantar a soberania absoluta dos Estados-nações, embora reconhecendo plenamente sua autoridade sobre tais problemas, “que não são de vida ou morte para o planeta”.

À Europa, especialmente, apresentaria um grande desafio: “Reformar sua própria civilização com o aporte moral e espiritual de outras civilizações; contribuir para um novo tipo de desenvolvimento para as nações africanas; regulamentar os preços dos produtos fabricados a custo mínimo com a exploração dos trabalhadores asiáticos; elaborar uma política comum de inserção dos imigrantes; enfim e sobretudo, abrir uma janela exemplar de paz, compreensão e tolerância”. Com tal firmeza que se propõe chegar até a uma intervenção em Darfour, Chechênia, Oriente Médio “para evitar a guerra de civilizações”.

À França não oferece um programa, inoperante em situações de mudanças, mas uma estratégia geral. Começaria com encontros entre parceiros sociais, um sobre emprego e salários, outro sobre aposentadorias. Depois viriam dois comitês: um para lutar contra as desigualdades, começando pela que envolve lucros e remunerações exageradas, de um lado, e insuficiências (como o nível e a qualidade de vida na base social), de outro; o segundo para reverter o desequilíbrio, agudizado depois de 1990, na relação capital-trabalho. Um terceiro comitê se ocuparia das questões ambientais e das transformações sociais e humanas que elas exigem.

Indicaria o caminho de uma “política de civilização” que restaurasse a solidariedade, fizesse recuar o egoísmo e reformasse “nossa sociedade e nossas vidas”. Afirma, a propósito: “Nossa civilização está em crise. Onde chegou, o bem-estar material não levou necessariamente o bem-estar mental (...) O desenvolvimento econômico não provocou o desenvolvimento moral.” Assim, ele criaria Casas de Fraternidade, nas cidades e bairros das metrópoles, como Paris, para socorrer os desvalidos em geral – e aqui apresenta uma série de questões que seria longo demais enumerar. Ele cita a necessidade de várias “desintoxicações” da sociedade, uma das quais a da publicidade, que torna sedutores produtos supérfluos.

No campo da educação, proporia reformas revolucionárias para acabar com a compartimentabilização do saber, que se aprofunda cada vez mais. Na verdade, essa é uma preocupação que Morin traz de longe e ocupa boa parte de sua obra e de seus escritos recentes. Enfim, considera que “a reforma da política, a reforma das formas de pensar, a reforma da sociedade, a reforma da vida se conjugarão para levar a uma metamorfose da sociedade. Os futuros radiosos estão mortos, mas abriremos caminho para um futuro possível.”

Com certeza Edgar Morin não pensa em vencer uma eleição, nem imagina que tais tarefas possam ocupar o tempo de um presidente da República, e aí está o que seu artigo, no meu entender, tem de assustador. Tudo o que ele indica é clara e urgentemente necessário, mas como fazer para dar conta de tantos e tão grandes desafios? Com seu espírito contestador, talvez tenha esquecido, já nos tempos de militante do PC, da muito citada frase de Marx, no “18 Brumário de Luís Bonaparte”: “Os homens fazem a própria história, mas nunca a fazem como querem.”


Almyr Gajardoni é chefe do Núcleo de Redação da Imprensa Oficial de São Paulo - agajardoni@imprensaoficial.com.br

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