terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Sobre Pinochet e a Plaza Itália
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Clóvis Rossi*
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O golpe do general Augusto Pinochet foi minha primeira cobertura internacional. Tinha 30 anos, uma boa quilometragem em leituras sobre temas mundiais, sobretudo latino-americanos, e experiência zero de rua (fiz a carreira ao contrário do usual: comecei chefe, morrerei repórter). Foi um choque. Brutal.
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Acho que só quem viveu aqueles dias em Santiago é capaz de imaginar o grau de violência, de ódio, de barbárie. Microcenas que me marcaram para a vida: sangue nas águas do Mapocho, o riozinho que banha a capital chilena, produto de cadáveres que ali caíram (ou foram jogados); aquela famosa cena da queima de livros, coisa que parecia saída de velhos filmes do nazismo; o desespero de pais e mães às portas do Estádio Nacional, transformado em mega-prisão.
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Inesquecível, embora irrelevante para a história do golpe e do Chile, era ficar vendo o semáforo na esquina do Palácio de La Moneda trocar de vermelho para verde, para amarelo, de novo para vermelho, amarelo, sem que um só carro, uma só alma, por ali passasse durante o período de toque de recolher.
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Ao longe, o som de metralhadoras nas "poblaciones"; na cabeça, o refrão de uma canção do Inti-Ilimani: "Están matando chilenos, ay que haremos/ay que haremos?". Não há comparação possível entre o Chile de 1973 e o Chile de hoje.
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A democracia tem todos os defeitos que quiserem, mas só quem viveu uma ditadura entende suas belezas. Falta, no entanto, borrar a fronteira da Plaza Itália. Salvador Allende, o presidente constitucional que preferiu matar-se a render-se, dizia que ela, não muito longe do Palácio de La Moneda, dividia o Chile entre a "gente linda" (os ricos que moravam além-Plaza Itália) e a massa de pobres cor de cobre. A ditadura aprofundou o fosso. A democracia conseguirá fechá-lo algum dia?
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*Jornalista, Folha SP, 12/12/2006

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