"Se teu irmão --filho do teu pai ou da tua mãe--, teu filho, tua filha, ou a mulher que repousa em teu seio, ou o amigo que é como tu mesmo quiser te seduzir secretamente dizendo: 'Vamos servir a outros deuses', deuses que nem tu nem teus pais conheceram --deuses de povos vizinhos, próximos ou distantes de ti, de uma extremidade da terra à outra--, não lhes darás consentimento, não o ouvirás, e que teu olho não tenha piedade dele; não uses de misericórdia e não esconda o seu erro. Pelo contrário: deverás matá-lo! Tua mão será a primeira a matá-lo e, a seguir, a mão de todo o povo. Apedreja-o até que morra, pois tentou afastar-te de Iahweh, teu Deus".
Tal passagem consta do "livro bom" (Deuteronômio, 13:7-11), aquele que deveria despertar o que temos de melhor em nós, segundo os defensores da religião. De minha parte, só tenho de agradecer o fato de meus ancestrais terem se tornado péssimos judeus, ignorando ordens diretas de Deus. Ou bem eles não leram o Deuteronômio ou optaram por não levar as Escrituras muito a sério. Se tivessem seguido à risca a injunção, minha avó materna (até onde sei a primeira atéia da família) teria virado uma poça de sangue bem antes de conhecer meu avô, e eu não estaria aqui, escrevendo estas palavras blasfemas.
Foi, aliás, o grande número de mensagens acusando-me de ter ofendido a Deus em minha última coluna que me leva a retomar o tema, oferecendo alguns esclarecimentos adicionais.
A melhor coisa que aconteceu ao Ocidente nos últimos quatro séculos foi ter se tornado, talvez não irreligioso, mas pelo menos pouco zeloso nessa matéria. Foi essa oportuna avacalhação que fez com que as fogueiras inquisitoriais não voltassem a acender-se e permitiu que a ciência avançasse por terrenos que antes lhe eram vedados.
A grande maioria dos ocidentais ainda não chegou ao ponto de simplesmente negar Deus --e nem creio que chegará--, mas pelo menos conseguiu relegá-Lo a uma espécie de limbo. Um ocidental típico diz que acredita em Deus e até vai a um culto cristão de vez em quando, mais por hábito do que por convicção profunda. Lê muito pouco a Bíblia e, felizmente, nem mesmo cogita de implementar as passagens que mandam apedrejar o filho que tenha simpatias budistas.
Registre-se, "en passant", que é justamente com esses fiéis relapsos que o papa Bento 16 pretende acabar, tornando-os católicos "autênticos". Torço --ou deveria dizer rezo-- para que fracasse. A Idade Média é um ótimo período para estudar, mas bastante chato para viver, em especial se você é membro de minoria religiosa ou, pior, um ateu declarado.
É dessa pequena revolução esculhambada que o islã se ressente. Lá muito mais do que cá, tomam-se ao pé da letra as passagens do livro sagrado que descrevem o sofrimento futuro dos infiéis e as determinações do "Hadith" (as palavras e os atos do profeta, que constituem, junto com o Alcorão, a base da lei islâmica) para que os apóstatas sejam assassinados. Como sustenta o filósofo Sam Harris, no seu instrutivo embora radical "The End of Faith", é esse excesso de literalidade que está por trás dos homens-bomba, um fenômeno quase que exclusivamente muçulmano. E mesmo os chamados moderados islâmicos não seriam tão moderados assim. Harris cita pesquisa de 2002 do Pew Research Center com cifras de fato impressionantes: 82% dos libaneses consideram justificável explodir a si mesmo levando consigo um bom número daqueles que nós chamaríamos de inocentes. Na ocidentalizada Indonésia, são 43% os que defendem abertamente a prática. Na quase européia Turquia, eles chegam a 20%. A pesquisa não foi feita em países como Arábia Saudita e Egito, onde o recorde libanês pareceria um numerinho acanhado.
Abordo agora algumas das objeções mais comuns feitas por meus leitores. Parece-me errado imputar à falta de religião os crimes cometidos por Stálin, Mao e Pol Pot, para citar apenas os mais ilustres. Se há algo a destacar no comunismo, é que ele se comportou exatamente como uma religião, na qual a palavra "deus" é substituída por "materialismo histórico" e outras variantes. Em comum, ambos têm a característica de tomar como fundamentos (dogmas) meia dúzia de "verdades" não-provadas e levá-las às últimas conseqüências.
É verdade que o cristianismo, consubstanciado no Novo Testamento, é bem menos rançoso do que o Antigo Testamento e do que o Alcorão. O Deus que emerge dos escritos cristãos é menos ciumento e sádico do que Iahweh. Não creio, entretanto, que isso baste para tornar o cristianismo uma "religião do amor" como querem muitos dos que me escreveram. Prova-o, em primeiro lugar, a história. A Inquisição e os massacres intercristãos estão aí para não me deixar mentir. No plano teológico, a chamada nova aliança revoga algumas das disposições mais arcaicas do Pentateuco. Só que textos irrevogavelmente bárbaros como Deuteronômio e Levíticos não deixaram de fazer parte do cânon cristão. No mais, embora o caráter intolerante das religiões monoteístas não esteja tão presente no Novo Testamento, ele não chega a desaparecer. Em João 15:6 é o próprio Cristo quem diz: "Se alguém não permanece em mim é lançado fora como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e se queimam". Ele não determina explicitamente que se apedrejem os apóstatas, mas a irrefreável vontade de "purificar pelo fogo" permanece. Receio que esse seja um traço inapagável das religiões monoteístas. Se todos os caminhos levam a Deus, por que diabos alguém deveria abraçar especificamente o judaísmo, o catolicismo, o protestantismo ou o islamismo? Para que a existência de cada um deles se justifique, é necessário que os demais estejam errados. Garante-se assim um belo suprimento de infiéis a quem poderemos odiar e matar livremente.
Há duas formas de mudar isso. Ou bem esquecemos Deus, assim como já deixamos de crer em Apolo, Afrodite, Wotan e Thor --nós ateus estamos apenas uma divindade à frente--, ou passamos a interpretar os ensinamentos extraídos das Escrituras de modo apenas alegórico, o que, em algum sentido, macula a idéia de que a religião traz a verdade imutável como revelada pelo Criador. O Ocidente vem dando alguns passos por esta última trilha. O problema do Islã é que ele continua irremediavelmente ortodoxo. Eu não chegaria ao ponto de dizer que o maometanismo encerra em si o germe do terrorismo, como faz Harris, mas não dá para fechar os olhos ao fato de que muçulmanos estão muito mais predispostos do que palestinos cristãos, por exemplo, a explodir-se em ônibus israelenses. Se as causas do terror islâmico fossem exclusivamente teológicas, o fenômeno deveria manifestar-se desde a Hégira, o que não é absolutamente o caso. Parece razoável, portanto, afirmar que é uma complexa mistura de razões religiosas com ingredientes políticos e caprichos da psicologia de massas que vem determinando o jihadismo contra o qual agora nos debatemos. Os recentes episódios no Reino Unido são um lembrete de que o problema veio para ficar.
É a própria universalidade do sentimento religioso que me faz crer que judaísmo, cristianismo, islamismo e tantos outros "ísmos" ainda estarão conosco por muito e muito tempo. Daí não decorre que não possamos apontar as contradições e os problemas das religiões e mesmo tratar Deus como uma hipótese científica. Devemos por certo fazê-lo, mas não acredito que isso jamais bastará para acabar com a crença Nele ou nelas. Na verdade, não dá nem mesmo para afirmar que a religião seja um veneno para todos. Podemos compará-la ao álcool. Uma boa parte da humanidade pode usá-la sem maiores problemas. Existem alguns, entretanto, que, como alcoólatras, não conseguem experimentá-la sem recair em comportamentos abusivos, que se materializam de diversas formas, desde o homem-bomba e o inquisidor até os ultraconservadores que pretendem vetar o ensino do darwinismo em escolas públicas. A religiosidade "benigna" dos moderados, entretanto, passa a ser um problema quando de algum modo sanciona o comportamento dos radicais (caso da pesquisa sobre o apoio aos terroristas no mundo islâmico) ou quando permite que bobagens e superstições se convertam em normas universais (caso de leis cujo propósito não é o melhor funcionamento da sociedade, mas apenas punir o "pecador"). Como certa vez observou o físico Steven Weinberg, "pessoas boas fazem coisas boas, e pessoas más fazem coisas más. Mas para pessoas boas fazerem coisas más é preciso a religião".
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001.
Tal passagem consta do "livro bom" (Deuteronômio, 13:7-11), aquele que deveria despertar o que temos de melhor em nós, segundo os defensores da religião. De minha parte, só tenho de agradecer o fato de meus ancestrais terem se tornado péssimos judeus, ignorando ordens diretas de Deus. Ou bem eles não leram o Deuteronômio ou optaram por não levar as Escrituras muito a sério. Se tivessem seguido à risca a injunção, minha avó materna (até onde sei a primeira atéia da família) teria virado uma poça de sangue bem antes de conhecer meu avô, e eu não estaria aqui, escrevendo estas palavras blasfemas.
Foi, aliás, o grande número de mensagens acusando-me de ter ofendido a Deus em minha última coluna que me leva a retomar o tema, oferecendo alguns esclarecimentos adicionais.
A melhor coisa que aconteceu ao Ocidente nos últimos quatro séculos foi ter se tornado, talvez não irreligioso, mas pelo menos pouco zeloso nessa matéria. Foi essa oportuna avacalhação que fez com que as fogueiras inquisitoriais não voltassem a acender-se e permitiu que a ciência avançasse por terrenos que antes lhe eram vedados.
A grande maioria dos ocidentais ainda não chegou ao ponto de simplesmente negar Deus --e nem creio que chegará--, mas pelo menos conseguiu relegá-Lo a uma espécie de limbo. Um ocidental típico diz que acredita em Deus e até vai a um culto cristão de vez em quando, mais por hábito do que por convicção profunda. Lê muito pouco a Bíblia e, felizmente, nem mesmo cogita de implementar as passagens que mandam apedrejar o filho que tenha simpatias budistas.
Registre-se, "en passant", que é justamente com esses fiéis relapsos que o papa Bento 16 pretende acabar, tornando-os católicos "autênticos". Torço --ou deveria dizer rezo-- para que fracasse. A Idade Média é um ótimo período para estudar, mas bastante chato para viver, em especial se você é membro de minoria religiosa ou, pior, um ateu declarado.
É dessa pequena revolução esculhambada que o islã se ressente. Lá muito mais do que cá, tomam-se ao pé da letra as passagens do livro sagrado que descrevem o sofrimento futuro dos infiéis e as determinações do "Hadith" (as palavras e os atos do profeta, que constituem, junto com o Alcorão, a base da lei islâmica) para que os apóstatas sejam assassinados. Como sustenta o filósofo Sam Harris, no seu instrutivo embora radical "The End of Faith", é esse excesso de literalidade que está por trás dos homens-bomba, um fenômeno quase que exclusivamente muçulmano. E mesmo os chamados moderados islâmicos não seriam tão moderados assim. Harris cita pesquisa de 2002 do Pew Research Center com cifras de fato impressionantes: 82% dos libaneses consideram justificável explodir a si mesmo levando consigo um bom número daqueles que nós chamaríamos de inocentes. Na ocidentalizada Indonésia, são 43% os que defendem abertamente a prática. Na quase européia Turquia, eles chegam a 20%. A pesquisa não foi feita em países como Arábia Saudita e Egito, onde o recorde libanês pareceria um numerinho acanhado.
Abordo agora algumas das objeções mais comuns feitas por meus leitores. Parece-me errado imputar à falta de religião os crimes cometidos por Stálin, Mao e Pol Pot, para citar apenas os mais ilustres. Se há algo a destacar no comunismo, é que ele se comportou exatamente como uma religião, na qual a palavra "deus" é substituída por "materialismo histórico" e outras variantes. Em comum, ambos têm a característica de tomar como fundamentos (dogmas) meia dúzia de "verdades" não-provadas e levá-las às últimas conseqüências.
É verdade que o cristianismo, consubstanciado no Novo Testamento, é bem menos rançoso do que o Antigo Testamento e do que o Alcorão. O Deus que emerge dos escritos cristãos é menos ciumento e sádico do que Iahweh. Não creio, entretanto, que isso baste para tornar o cristianismo uma "religião do amor" como querem muitos dos que me escreveram. Prova-o, em primeiro lugar, a história. A Inquisição e os massacres intercristãos estão aí para não me deixar mentir. No plano teológico, a chamada nova aliança revoga algumas das disposições mais arcaicas do Pentateuco. Só que textos irrevogavelmente bárbaros como Deuteronômio e Levíticos não deixaram de fazer parte do cânon cristão. No mais, embora o caráter intolerante das religiões monoteístas não esteja tão presente no Novo Testamento, ele não chega a desaparecer. Em João 15:6 é o próprio Cristo quem diz: "Se alguém não permanece em mim é lançado fora como o ramo, e seca; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo e se queimam". Ele não determina explicitamente que se apedrejem os apóstatas, mas a irrefreável vontade de "purificar pelo fogo" permanece. Receio que esse seja um traço inapagável das religiões monoteístas. Se todos os caminhos levam a Deus, por que diabos alguém deveria abraçar especificamente o judaísmo, o catolicismo, o protestantismo ou o islamismo? Para que a existência de cada um deles se justifique, é necessário que os demais estejam errados. Garante-se assim um belo suprimento de infiéis a quem poderemos odiar e matar livremente.
Há duas formas de mudar isso. Ou bem esquecemos Deus, assim como já deixamos de crer em Apolo, Afrodite, Wotan e Thor --nós ateus estamos apenas uma divindade à frente--, ou passamos a interpretar os ensinamentos extraídos das Escrituras de modo apenas alegórico, o que, em algum sentido, macula a idéia de que a religião traz a verdade imutável como revelada pelo Criador. O Ocidente vem dando alguns passos por esta última trilha. O problema do Islã é que ele continua irremediavelmente ortodoxo. Eu não chegaria ao ponto de dizer que o maometanismo encerra em si o germe do terrorismo, como faz Harris, mas não dá para fechar os olhos ao fato de que muçulmanos estão muito mais predispostos do que palestinos cristãos, por exemplo, a explodir-se em ônibus israelenses. Se as causas do terror islâmico fossem exclusivamente teológicas, o fenômeno deveria manifestar-se desde a Hégira, o que não é absolutamente o caso. Parece razoável, portanto, afirmar que é uma complexa mistura de razões religiosas com ingredientes políticos e caprichos da psicologia de massas que vem determinando o jihadismo contra o qual agora nos debatemos. Os recentes episódios no Reino Unido são um lembrete de que o problema veio para ficar.
É a própria universalidade do sentimento religioso que me faz crer que judaísmo, cristianismo, islamismo e tantos outros "ísmos" ainda estarão conosco por muito e muito tempo. Daí não decorre que não possamos apontar as contradições e os problemas das religiões e mesmo tratar Deus como uma hipótese científica. Devemos por certo fazê-lo, mas não acredito que isso jamais bastará para acabar com a crença Nele ou nelas. Na verdade, não dá nem mesmo para afirmar que a religião seja um veneno para todos. Podemos compará-la ao álcool. Uma boa parte da humanidade pode usá-la sem maiores problemas. Existem alguns, entretanto, que, como alcoólatras, não conseguem experimentá-la sem recair em comportamentos abusivos, que se materializam de diversas formas, desde o homem-bomba e o inquisidor até os ultraconservadores que pretendem vetar o ensino do darwinismo em escolas públicas. A religiosidade "benigna" dos moderados, entretanto, passa a ser um problema quando de algum modo sanciona o comportamento dos radicais (caso da pesquisa sobre o apoio aos terroristas no mundo islâmico) ou quando permite que bobagens e superstições se convertam em normas universais (caso de leis cujo propósito não é o melhor funcionamento da sociedade, mas apenas punir o "pecador"). Como certa vez observou o físico Steven Weinberg, "pessoas boas fazem coisas boas, e pessoas más fazem coisas más. Mas para pessoas boas fazerem coisas más é preciso a religião".
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001.
Um comentário:
Existem 2 coisas bem distintas nessa história: A religião em si e o Uso da religião. Uma coisa é diferente da outra. Mas isso não parece que não tem importância, se quer distorcer a realidade e convencer as pessoas de que nada vale a pena, vimemos para morrer um dia, nada mais. Façamos as nossas escolhas, não aceitemos o mundo dos "iguais"!!!!!!!!
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