domingo, 17 de junho de 2007

Sendero Luminoso

Sendero Luminoso: ascensão e queda de um grupo guerrilheiro

Por JOÃO FÁBIO BERTONHA

Doutor em História e Professor da Universidade Estadual de Maringá
A recente queda de Alberto Fujimori da presidência do Peru e a eleição de Alejandro Toledo trouxe de volta às manchetes um nome que causava calafrios em muitas pessoas que acompanhavam o noticiário internacional nos anos 80 e que desapareceu na última década: Sendero Luminoso. Fujimori (e seu assecla Montesinos) proclamam que um dos méritos de seu governo foi a derrota desse grupo, o que é negado por seus opositores. A importância desse grupo na história do Peru e as razões de sua ascensão e queda merecem alguma atenção e reflexão de nossa parte, por indicarem caminhos e problemas da história recente da América Latina, nem de longe limitados ao Peru.
O Sendero Luminoso não era o único grupo em atuação no Peru nas últimas décadas. Havia também, por exemplo, o Puka Llacta (Pátria Vermelha) e o Tupac Amaru, ligados a grupos urbanos e mesmo a correntes políticas e militares mais à esquerda. O Sendero, contudo, foi o mais importante e o que mais chama a atenção.
A origem desse movimento deve ser buscada no XX Congresso do PCUS em 1956. Este Congresso, ao denunciar o estalinismo, causou uma divisão na esquerda em todo o mundo. O Peru não foi exceção: em 1964, ocorreram fraturas no Partido Comunista do Peru e, entre legendas e sublegendas em choque, desenvolveu-se um grupo que defendia a tese do caráter semifeudal e semicolonial do Peru e a necessidade da revolução comunista caminhar do campo para a cidade, numa clara inspiração na revolução chinesa de Mao Tsé Tung. Nascia o Sendero Luminoso.
Nos anos 70, Abimael Guzman, líder desse grupo, concentrou seus esforços em organizar seus quadros e fazer um trabalho de doutrinação em Ayacucho, região miserável onde Guzman era professor de filosofia e que ele via como o lugar ideal para fazer a pregação de suas idéias. Em 1980, finalmente, o Sendero Luminoso iniciou sua luta armada, também em Ayacucho.
No decorrer dos anos 80, a guerrilha do Sendero cresceu, se espalhando por todo o país e engajando as próprias Forças Armadas na sua repressão. Eles se espalharam pela selva e pelas periferias das cidades, e a luta foi intensa por longos anos, com enormes violações dos direitos humanos e grande número de mortes de lado a lado.
Para o Sendero, o Estado peruano seria uma ditadura de latifundiários feudais e grandes burgueses apoiados pelo imperialismo norte-americano. Esse Estado se sustentaria pela violência. Frente a esta, o povo, organizado em torno do Sendero, deveria responder na mesma moeda, através da violência revolucionária, prosseguindo no objetivo de cercar as cidades a partir do campo. Para eles, eleições seriam apenas uma ilusão, a serem ignoradas na busca de mudanças.
Dentro dessa visão senderista (a qual é claramente influenciada pelo maoísmo, obviamente reinterpretado a partir da situação peruana), portanto, a violência armada é o único caminho para a revolução e também para mudar efetivamente a ordem social do país quando e se o poder fosse conquistado. Cálculos do próprio movimento nos anos 80 estimavam em 1 milhão o número de pessoas que deveriam morrer para a consolidação do novo Estado e a mudança dos padrões da sociedade. Feito isto, mais um passo teria sido dado para a quebra da ordem capitalista, com a quarta espada, a de Guzman, se reunindo as de Marx, Lenin e Mao no caminho da Revolução Mundial.
Essa visão de violência como solução para os problemas estava presente não apenas nas palavras, mas também nos atos do Sendero: eram contínuas as denúncias de massacres de camponeses e opositores, de julgamentos sumários, etc. Sendo realmente assim, poderíamos nos perguntar de onde vinha a força do movimento. Como é possível que ele tenha quase chegado ao controle do Estado lutando contra todo o poder das forças armadas do Peru enquanto tratava a população civil com tamanha brutalidade?
A questão é realmente intrigante. Como um movimento extremamente violento, repudiado pela esquerda tradicional e incompreensível para grande parte da intelectualidade peruana conseguia apoio popular?
O primeiro elemento a ser levado em conta para explicar isso é o fato do Sendero Luminoso procurar se integrar à vida dos camponeses pobres. Ao contrário dos políticos tradicionais, fazendo seus discursos em espanhol sobre democracia, parlamentos e outras questões longe do cotidiano dos camponeses, o Sendero fazia sua propaganda em idioma indígena e oferecia soluções práticas para o dia a dia de muitos peruanos: aplicação sumária da justiça, com a eliminação de elementos anti sociais (como estupradores e ladrões), repartição de bens, etc. Além disso, o Sendero Luminoso tinha uma política de respeito aos camponeses que era inovadora em termos de uma sociedade racista e desigual como a peruana. O Manual do Sendero Luminoso dava, por exemplo, algumas regras chaves para os guerrilheiros: obedecer em todas as ações, entregar o objeto capturado, não maltratar os prisioneiros, não estragar as plantações, respeitar as massas, não tomar nem uma agulha das pessoas, falar com cortesia. Evidentemente, essas regras não se aplicavam aos que, claramente, se opunham ao movimento, que eram tratados então com extrema brutalidade.
Um outro elo de ligação do Sendero com as massas camponesas era a sua apropriação das lendas e da mitologia indígena. O movimento se apresentava, ao menos aos olhos dos camponeses, como a reedição do Império Inca, pronto a destruir o Império dos brancos e aproveitava todas as oportunidades de reforçar essa imagem. As mortes de delatores, por exemplo, eram anunciadas por um cadáver de cachorro. Algo aparentemente absurdo, mas que passa a fazer sentido se nos recordarmos que, na cultura inca, os mortos deviam ser enterrados com seus cachorros.
A forma de luta do Sendero e sua ligação com as massas camponesas e das periferias das grandes cidades peruanas poderia ser, portanto, algo totalmente incompreensível para nós, mas fazia algum sentido para ao menos parte da população peruana. Evidentemente, isso não significa dizer que todo camponês ou indígena era um senderista, mas essa combinação de violência extrema e uma proposta com algum apelo popular conseguiu fazer do Sendero Luminoso um sério candidato ao poder no Peru do início dos anos 90.
No entanto, a própria violência do movimento conseguiu alienar a maioria dssas pessoas que podiam ver algum sentido naquelas propostas. Para completar, o governo Fujimori decidiu abandonar quaisquer regras e abriu uma verdadeira “guerra suja” contra a guerrilha e seus adeptos ou simpatizantes. Uma avaliação do quanto sangue correu durante essa “guerra suja” (e de quantos civis e inocentes pagaram o preço por ela) é algo que ainda vai ocupar tempo e energia da sociedade peruana por alguns anos. Mas é possível reconhecer que essa repressão maciça ajudou a eliminar a força da guerrilha (já abalada, sem dúvida, por seus próprios erros e problemas). Também a hipótese da ligação do fujimorismo com os traficantes de cocaína ter eliminado uma das fontes de sustento financeiro da guerrilha não deve ser descartada para explicar sua decadência. De qualquer forma, o Sendero Luminoso hoje é uma sombra do que foi e poderíamos considerá-lo uma página virada da História. No entanto, sua derrota final ainda não foi decretada e talvez possamos aprender algo mesmo se nos restringirmos aos acontecimentos até o presente momento.
Várias questões maiores emergem, realmente, da experiência do Sendero Luminoso. Uma delas é sobre a singularidade peruana. Algumas pessoas dizem que, na Colômbia, por exemplo, uma explicação para as guerrilhas que varrem o país há décadas deve ser buscada na distribuição homogênea de população (e poder) pelo seu território, levando a um Estado central fraco e incapaz de reprimir adequadamente os descontentes. E para o Peru? Talvez uma especificidade peruana que explique a existência do Sendero Luminoso tenha sido a existência de um líder como Guzman e de uma população de origem indígena capaz, como visto, de ver algum sentido nas suas propostas. Mas por que a situação não se repetiu, então, na Bolívia ou Equador, onde os indígenas também são maioria? Isso para não falar do caso brasileiro, onde não conseguimos encontrar uma explicação convincente do porquê de não termos tido movimentos guerrilheiros de importância nos anos 60 e 70. Estado centralizado, ausência de população indígena, erros da esquerda? Não temos uma resposta clara, mas são questões que merecem alguma reflexão para entendermos as enormes particularidades dos países da América Latina.
Questões mais gerais também emergem. Quando o Estado democrático (ainda que democrático apenas na forma) se vê em ameaça por uma força que deseja ostensivamente eliminá-lo, ele tem o direito de reagir, mas devem haver limites para sua reação? Provavelmente, mas e se esses limites realmente tornarem impossível a preservação do Estado de direito frente a seus inimigos? Mas valeria a pena preservá-lo usando os mesmos instrumentos dos que querem destruí-lo ou para manter apenas uma “casca” democrática encobrindo uma sociedade corrupta e desigual? E será que a repressão total e aberta é o único caminho para resolver impasses como este? São pontos a discutir, evidentemente, mas o fato de Vladimiro Montesinos estar preso, agora, na mesma prisão que ele mandou construir para abrigar os líderes do Sendero Luminoso e a enorme satisfação que essa ironia da História dá ao autor indica um pouco nossas opiniões a respeito.

JOÃO FÁBIO BERTONHA

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