sábado, 20 de outubro de 2007

Fidelidade na República dos infiéis

Escrito por Ruy Fabiano
O Supremo Tribunal Federal reiterou em relação ao Senado o que já havia estabelecido para a Câmara dos Deputados: o mandato pertence ao partido, não a seu eventual titular. Quem mudou de legenda, pois, estará sujeito à perda do mandato. Simples assim?
Nem tanto, claro. Como se trata de prática de largo alcance, da qual bem poucos estão isentos, os gestos de solidariedade irrestrita se multiplicam, assim como as fórmulas criativas para que ninguém seja responsabilizado pelo que já está feito.
Afinal – e esse é o argumento central -, se sempre se procedeu assim e nunca houve qualquer providência punitiva, não é justo que subitamente, sem aviso prévio, se estabeleça uma linha duríssima e, de maneira implacável, cabeças comecem a ser ceifadas.
O argumento, claro, poderia ser invocado também pelos traficantes dos morros cariocas, diante do ímpeto furioso com que o governador Sérgio Cabral investe contra seus redutos. Poderiam dizer: “Pôxa, mas ia tudo tão bem, por que esse jogo duro agora?”
O líder do PTB na Câmara, deputado José Múcio, acha que a lei deveria conceder ao menos o direito de uma mudança partidária por legislatura. Pelo menos uma. Não explicou exatamente por que a eventual escassez numérica conferiria legitimidade à prática.
Seu raciocínio parece partir daquela máxima do Barão de Itararé: “Ou nos locupletamos todos ou restaure-se a moralidade.” Ele, com sua proposta, parece dizer: “Ora, se todos nos demos bem (ou seja, se todos nos locupletamos) com o troca-troca partidário, por que restaurar-se a moralidade?”
A política brasileira é, em alguns momentos, tão cheia de paradoxos e contradições, que chega a ser engraçada. A mudança de status de um partido faz com que mudem também os seus princípios. Lula e o PT, por exemplo, acham hoje um absurdo alguém acusar sem provas ou ignorar a presunção de inocência. A isso, chamam de “furor udenista”. Antes, era imperativo moral.
Acham igualmente inaceitável a idéia fixa da oposição em denunciar e propor CPIs. A senadora Ideli Salvati (PT-SC) chegou a lamentar que se falasse tanto em ética, uma coisa afinal de contas tão chata, que jamais interessou a ninguém.
A oposição de hoje, por sua vez, pouco afeita ao papel (afinal trata-se de forças políticas habituadas há décadas ao exercício do poder), torna-se subitamente defensora da fidelidade partidária - a mesma fidelidade que combateu quando lhe foi conveniente.
O Democratas (ex-Arena, ex-PDS, ex-PFL), quando ainda integrava o governo militar, em 1984, rebelou-se contra o comando partidário e fez da infidelidade partidária instrumento de ação e afirmação política. Se a fidelidade que o DEM hoje postula – e que lhe pode render o retorno de algumas cadeiras na Câmara e Senado – fosse acatada pelo STF em 1984, o Brasil teria sido presidido no ano seguinte por ninguém menos que Paulo Maluf, e aquelas lideranças estariam aposentadas.
Os pedessistas que não aceitavam Paulo Maluf dissentiram publicamente de sua candidatura e anunciaram voto em Tancredo Neves. Constituíram a Frente Liberal, que depois se transformaria em PFL, hoje DEM. O STF considerou válido o voto infiel e, com isso, pôs fim ao regime militar, mudando a história do Brasil.
De lá para cá, o troca-troca partidário tornou-se rotina, prática comum a todos os partidos. O falecido Sérgio Motta – espécie de José Dirceu do governo FHC – promoveu ampla campanha de adesões ao PSDB, que acabou apelidado de “partido-ônibus” – aquele em que todo mundo embarca (basta fazer – dizia-se “receber” – o sinal).
Com isso, rompeu com o então secretário-geral dos tucanos, Pimenta da Veiga, que temia (e com razão) a perda de qualidade humana imposta pelos arrivistas e a diluição dos compromissos doutrinários do partido. Foi exatamente o que aconteceu.
O PFL foi igualmente beneficiário daquele troca-troca, atraindo também grande número de políticos chapa-branca e tornando-se um partido de primeira grandeza no Congresso.
O PT denunciou o teor imoral daquele procedimento. Hoje, é beneficiário dele – só que o praticou com mais engenho e arte. Em vez de atrair arrivistas aos seus quadros, passou a empurrá-los para os partidos “barrigas de aluguel”, que dependem do governo para sobreviver.
A gênese do Mensalão é essa. Não foi, moralmente falando, diferente do que vigorava antes. Foi mais ousado e menos eficaz. O Judiciário fez sua parte, pondo fim à orgia partidária. Vejamos o que faz o Congresso.

Nenhum comentário: