segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Suspeitas e silêncio sobre Jango

Li esta semana que a família do ex-presidente João Goulart ingressou na Procuradoria Geral da República com um pedido de investigação sobre suposto complô que teria levado ao assassinato por envenenamento do ex-dirigente deposto em 1964 e morto em uma fazenda no interior da Argentina, em 1976. Depois da denúncia, o silêncio, como tantas vezes tem acontecido em relação à vida e a morte de Jango.
A ação proposta à PGR agrega novas e perturbadoras revelações sobre um dos episódios mais dramáticos da história recente do País, produzidas por João Vicente, o filho de Jango. Fazendo-se passar por jornalista, ele entrou em um presídio de segurança máxima no Rio Grande do Sul e ali gravou um depoimento do ex-agente secreto uruguaio, Mario Neira Barreiro (preso por roubo), que contou ter posto veneno em um dos medicamentos que o ex-presidente, sabidamente cardíaco, tomava continuamente.
Em um dos trechos mais espantosos da conversa (também filmada), o uruguaio revela, sem saber que falava com um filho de Goulart, ter agido infiltrado como empregado do Hotel Liberty, de Buenos Aires, onde Jango se hospedava, e assim teve acesso aos seus aposentos: “Não me lembro se usamos Isordil, Adelpan ou Nifodim , mas conseguimos colocar um comprimido nos remédios importados da França”. Se efetivamente comprovado, o fato tem poder explosivo mais que suficiente não só para provocar o reexame do caso. Desde já, aguça também antigas suspeitas e contradições sobre os últimos dias do único ex-presidente do Brasil a morrer no exílio.
Contei, neste espaço do Blog, creio que em abril de 2006, uma experiência que tive no Uruguai, e que me parece oportuno remoer, diante destas denúncias mais recentes. Naquele ano, transcorria o trigésimo aniversário da morte de Jango, o político e governante que “recebeu o legado do trabalhismo de Getúlio Vargas, dobrou o salário mínimo, aproximou o Brasil da China, impôs à agenda nacional a reforma agrária e o limite de remessa de lucros das multinacionais”, como registra Aziz Filho, em texto publicado na revista “Isto É”. Ainda assim, em torno dessa figura tão especial, se construiu um muro de desdém e esquecimento injustificável, a não ser por um complexo de culpa monumental.
Era período de Semana Santa e eu viajava em uma daquelas “vans” de turismo de Montevidéu para o balneário de Punta Del Este, em chuvosa e gelada Sexta-Feira da Paixão. O guia do grupo era um tipo de meia idade, confesso ex-militante dos grupos de resistência de esquerda quando a “Suíça da América Latina” caiu também nas mãos de uma ditadura. Falava pelos cotovelos, mas na travessia do Departamento de Maldonado, ele desligou o microfone, e explicou: “deixo vocês em paz por um tempo. Estamos em uma área de pouco interesse histórico e turístico”.
Acontece que eu tinha lido, no Brasil, dias antes de viajar, o denso e comovente artigo do cientista político e professor da história da política exterior do Brasil, Luiz Alberto Moniz Bandeira, atualmente vivendo na Alemanha, sobre os últimos tempos de João Goulart. Sabia, portanto, que em Maldonado, por onde a “van” passava naquele momento, Jango comera o pão mais duro e bebera o vinagre mais amargo dos seus primeiros anos de degredo.
Em Montevidéu, repórter do Jornal do Brasil, conversara muitas vezes com outros exilados do golpe de 64 – inclusive Brizola e dona Neuza, cunhado e irmã de Jango -, e sabia das dores e sacrifícios da família Goulart diante daquela nova realidade de tensa e opressiva reclusão. Jango, o ex-presidente, principalmente. Falei com o guia sobre isso e ele, surpreso, religou o microfone imediatamente. Instalou-se, então, um debate caloroso de uruguaios e turistas de vários estados brasileiros sobre Jango e os tremores políticos da América Latina, só interrompido na entrada exuberante de Punta.
O baiano Moniz Bandeira, autor de “O Governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil”, um livro fundamental sobre o assunto, conta no artigo referido, que às véspera da sua morte, o ex-presidente tinha consciência que não dava mais para ficar nem no Uruguai nem na Argentina, em razão da insegurança que também se instalara nesses dois países, “onde recrudesceram os assassinatos dos líderes políticos que se opunham aos regimes militares”.
Jango vacilava, no entanto, em relação a que destino tomar. De um lado, conta Moniz Bandeira, cogitava morar em Paris. Do outro, pensava em voltar imediatamente ao Brasil, mesmo sem a anistia política, em franco desafio ao regime militar. Diante de tal perspectiva, revela o historiador, Jango estava sob forte pressão... “Grande era, portanto, o perigo que tivesse outro enfarte, como já sofrera no Uruguai em 1969” , constata o historiador.
A morte veio na madrugada de 6 de dezembro de 1976, quando Jango estava em “La Villa”, fazenda de sua propriedade no interior da Argentina, situada a 120 km de Uruguaiana, no Brasil. “Goulart comeu um churrasco de ovelha e, depois de beber uma xícara de chá, recolheu-se por volta de 1h ao seu quarto para dormir. Às 2h.40m, porém, Julio Passos (administrador da fazenda), ouviu os gritos de Maria Tereza – a angústia dos gritos era tamanha que ele pensou que alguém invadira a casa – e correu até o quarto onde viu Goulart deitado com a mão no coração e ela a abrir-lhe os braços para faze-lo respirar”, narra Moniz Bandeira.
Cinco minutos depois, às 2h45m, Jango estava morto. O médico, Ricardo Rafael Ferrari, que o motorista da família correra para buscar, ao chegar nada mais pôde fazer. No atestado de óbito, como causa da morte, diagnosticou: “enfarto do miocárdio”. Na entrevista a João Vicente, o agente Barreiro diz que o morto não poderia ser examinado por 48 horas, pois as substâncias das cápsulas envenenadas colocadas nos frascos de remédio apareceriam. O corpo de Jango foi sepultado em São Borja, sua cidade natal, sem passar por autópsia.
Seguem a denúncia, as suspeitas e o silêncio.

Vitor Hugo Soares é jornalista.
E-mail:vitors.h@uol.com.br

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