sábado, 21 de agosto de 2010

Lula, como o reizinho: afinal, quem sou eu?

Lúcio Flávio Pinto - Agosto 2007

É impossível ser justo e não ser simpático a Lula, admirando seu percurso até a eleição para a presidência da República. Mas quem se desiludiu com a experiência de um poderoso intelectual no exercício desse posto por oito anos tem motivos para se frustrar com os quatro anos e meio de um operário nesse mesmo cargo. O Brasil foi privilegiado pela sucessão de um representante da elite e outro da massa do povo no mais alto cargo público, em quatro mandatos sucessivos. O fato de ambos se repetirem seja no primeiro momento, quando foram oposição, quanto no segundo, quando se tornaram governo, revela a fragilidade de uma nação que desperdiça suas melhores oportunidades históricas e é mais promessa do que realidade, mais figuração do que fato.
Se circunstâncias externas foram a causa principal do desenvolvimento retardado do Brasil, causas exteriores também podiam propiciar uma engrenagem mais acelerada desse desenvolvimento. Raras vezes a conjuntura internacional nos foi tão propícia quanto nos últimos anos. Graças à explosão da demanda da China e à valorização dos preços dos nossos principais produtos de exportação, dentre outros fatores, divisas entram como nunca no Brasil. Mas ao invés de criar uma base de sustentação para o futuro, quando as variáveis podem mudar para pior, essa dinheirama está enriquecendo ainda mais os já muito ricos e mantendo uma estrutura de circunstância. Daí a ampliação e o adensamento dos paradoxos e contrastes no país, que agravou o perfil da Belíndia nos pólos extremados.

Operário, homem do povo, predestinado a mudar o Brasil, Lula já demonstrou que não está à altura da missão que a história lhe concedeu. Sua política enriqueceu banqueiros e empresários mais do que sob o consulado de Fernando Henrique Cardoso, assumidamente de elite. Quem disse isso, com todas as letras, foi o próprio Lula, na reação ao movimento Cansei, da plutocracia paulista. Lula deu aos plutocratas paulistanos tudo que eles queriam e mais alguma coisa; certamente, mais do que o devido, o iníquo. Mas eles não o acolhem como um seu nem lhe agradecem a gentileza, feita com o chapéu alheio.

Lula queria o quê? Ao proclamar que sua política enriqueceu os ricos, ele se revelou um traidor da sua gente e do seu país. Não foi para isso que foi eleito. Mas, sejamos honestos, foi exatamente isso o que ele disse que faria na última mensagem — a quem interessar possa — antes da eleição, consolidando o “Lulinha paz e amor” de Duda Mendonça, o guru da alquimia, que já nesse momento transferia para o exterior o dinheiro do seu faturamento publicitário.

É evidente, para quem é capaz de ver e pensar, que a economia brasileira, a razão de ser do sucesso de Lula, continua em piloto automático, monitorado a distância. Algumas correções e modificações são feitas, mas o rumo é o mesmo: da concentração da renda. Se o sucesso de Lula é muito maior do que o de FHC, isso se deve às condições internacionais, em primeiro lugar, que compensam todos os erros gerenciais e administrativos já cometidos, e à política de sedução e subjugação dos mais pobres, a verdadeira novidade do atual governo. E a mais eficaz.

Por que os índices de aprovação do presidente permanecem refratários a todas as conjunturas nacionais, inclusive aquelas que desnudam a omissão oportunista do chefe? Por que, independentemente da falta de uma solidariedade mínima e decente por parte do chefe para com seus subordinados, que avançam sobre seu vácuo deliberado (por preguiça e inapetência) e são sacrificados se algum resultado de sua iniciativa não dá certo (e o presidente nada sabe do que eles faziam, por conta e risco), o povão continua acreditando nesse ausente de fato?

Porque, todos os meses, o depósito do bolsa-família lhes assegura a sobrevivência, ou a existência. É uma esmola como nunca houve antes. E esmola, como todos sabem, vicia, conquanto nada resolva também (mas essa é uma questão de longo prazo, com a qual Lula tem menos intimidade ainda).

Por mais que faça para os ricos, Lula jamais será um deles. Por isso faz mais e por isso continua a ser um “desigual”. Como se resolverá essa tendência patológica? Pela aniquilação de um pelo outro, pela paz armada ou por um novo acerto cínico? Não se sabe. Mas se há ingratos se movimentando contra o presidente que tanto fez por eles, não somos nós. Nós, da classe média, ou de algumas partes dela, que também criticamos Lula, não estamos satisfeitos, não pertencemos à plutocracia, não enriquecemos e achamos que o presidente é incapaz de fazer outra coisa além de delegar competência (a que não tem, sobretudo), cortar cabeças incômodas, cultivar sua horta de povo plantado no solo da verba pública (escassa e, por isso, finita), aquinhoar os correligionários, cultivar sua digna biografia, estacionada em 2002, e dizer besteiras sem fim.

Nós não queremos derrubar o presidente nem pregamos qualquer remendo à ordem legal. Queremos que o país utilize a oportunidade que tem para se consolidar, importando máquinas e equipamentos, não bens de consumo durável ou insumos para tal; que a renda gerada pela venda ao mundo seja utilizada para criar oportunidades de trabalho, qualificar a mão-de-obra, incorporar mais gente — e mais bem preparada — à produção, montar boa infra-estrutura, ao invés de fortificar ilhas da fantasia na geléia geral brasileira e transferir nossas riquezas para outros lugares. Mas esse Lula que está aí fará isso, ainda fará, ou é um fantoche? Um fantoche dele mesmo? Um equívoco? Uma frustração?

A democracia — e só a democracia — possibilita esse processo: eleger um presidente despreparado para governar e depois, criticando-o por seu despreparo, tentar mudar sua política ou a ele próprio. Quem acha que mudança admite golpe está errado. Tanto quanto quem declara que a crítica é um golpe. Tomara que nossa frágil democracia resista a ambos. E cresça.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006).

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