domingo, 14 de setembro de 2008

Um balanço sobre o resultado do referendo

Com 67,8% de apoio, Evo Morales superou em mais de 14% os votos que em, 18 de dezembro de 2005, catapultaram-no como o primeiro presidente eleito com maioria absoluta desde a recuperação da democracia, em 1982. Conseguiu, assim, a terceira vitória com mais de 50% de seu mandato cumprido, depois do triunfo para a Assembléia Constituinte, em 2006.

Pablo Stefanoni - Brecha (Uruguai)

Evo Morales superou a aposta mais arriscada de seu governo com uma porcentagem de votos inesperada mesmo pelos governistas mais otimistas: com a quase totalidade dos votos contabilizados, 67,8% dos bolivianos disse Sim à continuidade no poder do presidente boliviano no referendo revogatório realizado neste domingo com a finalidade de remover pacificamente os entraves ao projeto nacionalista popular liderado pelo governante indígena, enfrentado uma oposição fortemente regionalizada.

Assim, e apesar de dois anos e meio de crises e tensões políticas e institucionais, Evo Morales superou em mais de 14% os votos que em, 18 de dezembro de 2005, catapultaram-no como o primeiro presidente eleito com maioria absoluta desde a recuperação da democracia, em 1982. Conseguiu, assim, a terceira vitória com mais de 50% de seu mandato cumprido, depois do triunfo governista para a Assembléia Constituinte, em 2006. E esta situação contrasta com seus antecessores na presidência, que se mantinham no governo graças a acordos parlamentares baseados em um pragmatismo forçado e que garantiam maiorias artificiais às quais os eleitores não tinham dado seu aval nas urnas.

Não obstante, também foram ratificados todos os prefeitos opositores, o que limita a potência política da vitória presidencial. Rubén Costas foi ratificado em Santa Cruz com 67%, Ernesto Suárez em Beni com 64%, Mario Cossío em Tarija com 58% e Leopoldo Suárez em Pando com 56%. Como prêmio consolação, o governo conseguiu mandar embora o governador de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, pondo um freio à expansão em direção ao oeste da "meia-lua" autonomista liderada por Santa Cruz, e o de La Paz, José Luis Paredes, dois opositores que ganharam a eleição de 2005 em dois bastiões do Movimento ao Socialismo (MAS), graças ao voto cruzado com Morales.

Assim, apesar da contundência de sua vitória, o cartão-postal da Bolívia que surgiu da votação é o de um ocidente indígena unanimemente alinhado com Evo Morales e um oriente autonomista onde combinaram-se um importante crescimento do projeto governista e a massiva ratificação do projeto autonomista inspirado no modelo espanhol. Por isso, depois de uma jornada pacífica todos festejaram e é neste fato aparentemente auspicioso que reside o drama da Bolívia: a dificuldade de deixar para trás o "empate catastrófico" entre dois blocos étnico-regionais com visões de país enfrentadas. Com o risco de que cada bloco utilize a legitimidade das urnas —e escute sua própria "mensagem das urnas"— em uma fuga para adiante que pode convulsionar novamente o país. O virtual fracasso da mesa de diálogo, que nesta quinta-feira ficou em nada depois de várias horas de reuniões, no meio de acusações cruzadas de "falta de generosidade", antecipa um futuro de escaramuças que poderiam crescer em intensidade.

"(O referendo) é um respaldo à decisão popular tomada nos referendos autonômicos, que abre a porta para a aplicação dos estatutos de autonomia", avaliou o governador Mario Cossío assim que foram conhecidos os resultados. "O que foi planejado como uma emboscada mal-intencionada foi derrotado nas urnas", acrescentou o governador Costas, em greve de fome em protesto por um recorte tributário do estado central. Considerou que a consulta não vai resolver os problemas da Bolívia e chamou Evo Morales de "macaco", sem nomeá-lo diretamente, e Hugo Chávez de "macacão", artífices, segundo ele, de um novo terrorismo de Estado. Anunciou, além disso, a criação de uma força policial e de uma agência tributária locais, e a convocatória para eleições —sem base legal— para uma espécie de Parlamento local chamado Conselho Departamental. Ou seja, o avanço em direção a uma autonomia de fato, com perigosas conseqüências de desconexão política e institucional.

Morales foi ratificado com 80% em La Paz , Oruro e Potosí, e com perto de 70% em Cochabamba, o que representa um "cordão de segurança" para a sua estabilidade política. O voto camponês foi quase unânime e já se fala da "chaparização" da zona rural boliviana, em referência às elevadas porcentagens de votos que Morales costuma conseguir na região cocaleira de Chapare, onde iniciou sua escalada dos sindicatos agrários para o mundo político. Na província de Omasuyos, pertencente a La Paz, ex-baluarte do líder aymara Felipe Quispe, que hoje está fora do jogo, o Sim ao presidente chega a 98,5%. Na província cochabambina de Tiraque o Sim estava perto de 97% e chegava a quase 98% na província de Sajama, pertencente a Oruro. Na província gasífera tarijenha de O'Connor a aprovação chegou a 66%.

O mandatário indígena também “perfurou” a "meia-lua" autonomista: conquistou Pando (na Amazônia) com 53% e virtualmente empatou em Tarija —fronteiriça com a Argentina—, com 49,83% dos votos pelo Sim, frente a 50,17% pelo Não. Em Beni contava com 43,7%, e aumentando, frente aos menos de 20% obtidos em 2005 e tem um piso nada desprezível de quase 40% em Santa Cruz, sua praça mais hostil. Também ganhou Chuquisaca, apesar dos violentos conflitos pela demanda de Sucre de voltar a ser a capital plena do país.

A mistura de identificação étnica e políticas sociais compõe o "carinho por Evo". "As classes médias não dão valor aos 200 Bolivianos (em torno de 30 dólares) mensais da Renda Dignidade para os idosos, mas para um camponês isso eqüivale a quatro cordeiros por mês. A mesma coisa vale com o bônus Juancito Pinto para os escolares", explicou o mandatário em um diálogo com jornalistas. E anunciou que a eletrificação do campo será seguida pelos telefones. "Hoje já há camponeses que cuidam de suas ovelhas falando pelo celular", acrescentou.

Assim, as porcentagens do inédito referendo imaginado para superar a atual crise política mostram um inédito apoio ao governo nacional, cuja construção de hegemonia —que não é a mesma coisa que maioria eleitoral— enfrenta a resistência das elites na região sul-oriental do país, sede das principais reservas de gás e das terras mais férteis, que também conseguiram legitimar-se nas urnas, e, junto com elas, o seu projeto autonômico.

"Evo Morales não perdeu, mas isso não nos importa. Aqui em Santa Cruz nós ganhamos. Com este resultado ele não vai poder continuar enchendo o saco", desabafou o prefeito de Santa Cruz, Percy Fernández, famoso por suas declarações intempestivas, que dias atrás convocou os militares para um golpe de Estado. "(Evo) Não pisa mais em (Santa Cruz)", gritavam em coro os manifestantes concentrados na central praça 24 de Setembro para festejar os resultados, como se o fato de ser "revogado" em uma região o impedisse de governar nessa parte do país.

Entre os obstáculos ao diálogo aparecem os estatutos autonômicos aprovados em referendos ilegais em maio e junho passados, que a dirigência da "meia-lua" não quer levar à discussão, junto com sua rejeição ao projeto de nova Constituição promovido pelo governo nacional. Pretendem, além disso, a restituição dos impostos recortados para pagar a Renda Dignidade e aumentar os orçamentos municipais. Por sua vez, o governo propôs "constitucionalizar" as autonomias, mas no marco do texto aprovado em dezembro pela Assembléia Constituinte —com um perfil nacionalista e indigenista—, e submeter os temas em conflito a um plebiscito nacional "para que o povo dirima".

Mas, por enquanto, as possibilidades de aproximação transitam por um caminho cheio de obstáculos, incluídos um rosário de receios, desconfianças e visões enfrentadas de país, em uma luta entre uma nova elite emergente e outra que perdeu sua influência nacional, mas conseguiu entrincherar-se em suas regiões graças à reativação das identidades locais que remetem às históricas brigas contra o centralismo de La Paz e tocam fibras sensíveis, como a suposta revanche étnica promovida por um governo aymara-quéchua. Os mais radicais, como o grupo independentista Nação Camba, falam inclusive das "hordas do Estado incaico".

Em qualquer caso, os resultados estão tirando do meio dois discursos maniqueístas: que as autonomias não passam de uma demanda de um pequeno grupo oligárquico sem um real apoio popular e, mais ainda, as cotidianas queixas de políticos opositores e analistas assinalando que o de Evo Morales é um governo sustentado por um fundamentalismo indígena que havia perdido as classes médias e governava encurralado na Bolívia andina. A expansão para o oriente do voto do presidente boliviano, combinado com uma a ampla confirmação dos líderes autonomistas deixou claro, também, que uns e outros estão aí para ficar e nenhum bando pode ignorar seus adversários, iludir-se com derrubá-los ou retirar-lhes a legitimidade para governar.

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