segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Lula e o escrivão

Lula e o escrivão
Em recente entrevista à TV Brasil, Lula prometeu, ao final de seu mandato, registrar em cartório as realizações de seu governo. Gesto inovador (e soberbo), que, segundo ele, além de garantir posteridade e autoria às suas realizações, servirá de desafio a seus sucessores, que terão que ir além do que foi.
A opção, que trai a cultura cartorial ibero-brasileira (afinal, nossa descoberta é marcada pela carta de um escrivão, Pero Vaz Caminha), indica compromisso público e solene, sem direito a recuos. Mais: passível de cobrança judicial, política e moral.
O repórter pega então a deixa e pergunta se Lula faria o mesmo em relação à proposta de um terceiro mandato, que ele diz não desejar e, mais ainda, não aceitar. Lula desconversa: “Não há necessidade”. E muda de assunto.
Ficam, porém, algumas dúvidas: necessidade por necessidade, também não há a de registrar em cartório o que fez seu governo, já que essas realizações constam do noticiário (e, por extensão, servem de registro para os historiadores). O que diferencia uma atitude da outra? O grau de compromisso, óbvio.
Claro está – e não é preciso ler Freud para constatá-lo – que o terceiro mandato, proposto, através de emenda à Constituição, por um deputado amigo (Devanir Ribeiro, do PT de São Paulo, freqüentador da intimidade presidencial), é hipótese não rejeitada de todo pelo presidente. Ainda lhe faz cócegas no inconsciente.
Não se exporá fazendo proselitismo a respeito. Não é besta. Mas também não assumirá compromisso com sua rejeição liminar. Não é besta de novo. Lula sabe que não possui herdeiros no PT. Sua popularidade, segundo pesquisas recentes, bateu recordes, mas sua capacidade de transferi-la a algum aliado não se evidenciou.
As pesquisas expõem um paradoxo: Lula é o mais popular presidente da história, mas os favoritos à sua sucessão – José Serra e Aécio Neves, nessa ordem – são da oposição.
Quando a oposição vence uma eleição, o que se deduz é que o governo foi derrotado. Seria, portanto, numa leitura linear, um governo impopular e reprovado. Não é o caso, porém. Também os índices de aprovação à sua gestão são altos.
O que seria então? Eis um doce mistério, a exigir dos exegetas malabarismos encefálicos. O recado mais claro parece ser o de que a sociedade brasileira postula a prática de um princípio básico da democracia: a alternância no poder.
Não vê entre Lula e Serra (que lidera todas as pesquisas sucessórias, em todas as hipóteses aferidas) grandes disparidades. Se Lula governa bem – e, goste-se ou não, é como a maioria o percebe -, acredita-se que Serra é quem melhor consolidará sua obra. Esse – goste-se ou não outra vez – é o recado explícito da pesquisa. Se a alternância contraria os militantes do lulismo, não contraria a maioria dos entrevistados.
A sociedade brasileira tem relação com a política que fere a lógica partidária. Antes de mais nada, porque não crê nos partidos. Distingue pessoas de legendas. Descola-os. Lula não é visto como extensão do PT. Lula é Lula e PT é PT. O presidente é bem avaliado. O partido é visto na vala comum das demais legendas, que merecem desprezo ou indiferença da quase totalidade do eleitorado.
Crises como a do mensalão tiraram-lhe o cinturão da castidade. Lula escapou. Deu a volta por cima e soube tirar proveito pessoal do bom desempenho da economia. Serra é visto como homem sério, experiente, capaz de dar seqüência à obra em curso.
Não há, de fato, entre ele e Lula abismos ideológicos. Serra é egresso da esquerda e purgou também adversidades ao tempo do regime militar. Teve a prudência de perceber o fenômeno do lulismo e jamais bateu de frente com ele, nem quando o enfrentou cara a cara, na sucessão de 2002. Ao contrário de Alkmin, que o acusou de corrupto em 2006, buscando extrair dividendos eleitorais do mensalão, Serra cultiva boas relações com o presidente.
São relações pragmáticas, que a ambos convêm. Alkmin percebeu tardiamente o fenômeno e, na campanha em curso para a prefeitura de São Paulo, admitiu que “Lula, tudo bem; o problema é o PT”. Diante de tal situação – a popularidade do presidente e a ausência de aliados competitivos -, a idéia do terceiro mandato, posta em banho-maria, renasce com força no universo lulista.
O presidente a percebe, sente-se lisonjeado e evita comentá-la. Mas estimula sua difusão. Quem sabe venha a protagonizar o segundo “Fico” da história (o primeiro é o de dom Pedro I, que deu a senha para a Independência).
O “fico” lulista nada tem a ver com aquele. Seria precedente gravíssimo para a democracia, ferindo o princípio da alternância no poder e conferindo aos institutos de pesquisas – e não à Constituição – a primazia de estabelecê-la ou não. Diante dos rumores que o tema provoca, somente uma ida de Lula ao cartório restabeleceria a tranqüilidade.

Ruy Fabiano é jornalista

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