sábado, 26 de abril de 2008

Saramago e o Socialismo Feudal

Saramago e o Socialismo Feudal

José Saramago no seu último romance intitulado A Caverna inspirou-se no mito platônico para criticar o desaparecimento do ofício de oleiro, uma arte cujas origens se perdem nos tempos, apontado o moderno processo industrial, tecnológico e comercial como nocivo às antigas profissões e viveres.


Uma Estranha Crítica

"Deste modo surgiu o socialismo feudalístico, metade canto lamentoso e metade pasquim, metade eco do passado e metade ameaça do futuro... sempre ridículo nos seus efeitos pela completa incapacidade de compreender o curso da história moderna."
Karl Marx - O Manifesto Comunista (III, 1, a.), 1848

Em suas andanças de exilado, desde que em dezembro de 1845 deixara a redação da Gazeta Renana, perseguido insistentemente pela polícia prussiana, Karl Marx deparou-se em Paris, em Bruxelas, e depois em Londres, com uma literatura extremamente crítica aos tempos modernos e à expansão da urbanização em geral. Em comum, fossem os autores ingleses, franceses ou escoceses, havia a denúncia da desumanidade causada pelo surgimento da maldita fábrica e um lamento choroso deles sobre o declínio de amistosas relações sociais e de estimadas profissões, submergidas na voragem do maquinismo.


Os Socialistas Feudais

Marx logo constatou que por detrás daquilo gemia o mundo medieval, uma era ferida de morte que ao momento em que entoava seus cânticos fúnebres jogava pedras na desgraçada época contemporânea, sua coveira. Chamou-os de "socialistas feudais", reservando-lhes um subcapítulo no Manifesto de 1848 (III, 1, a), marcando bem a distinção da posição dele em relação ao capitalismo da dos "feudalistas". Identificou-os como simpáticos aos aristocratas, e que, entristecidos com a crescente desimportância histórica daquela casta e odiando os burgueses, deram-se a demagógicos acenos de fraternidade e solidariedade para com os trabalhadores explorados. Olhavam para os bairros fabris, afligindo-se com a sujeira e a feiura deles, do alto das ruínas dos fortins medievais de onde simulavam viver.

Literatos românticos, acompanhando tal tendenciosa nostalgia saudosa dos brasões, chegaram ao ponto de enaltecer, como o fez Walter Scott (morto em 1832), em plena era da propulsão a vapor, cavaleiros como sir Ivanhoé, ou ainda Rob Roy, o lendário guerreiro escocês, um jacobita que empunhara a espada pela manutenção da good old rule, "a velha boa regra". Aquilo sim é que eram tempos.


Na Caverna do Consumo

Pois agora, neste final de século e abertura de um novo milênio, esse romantismo literário, saudosista e lacrimoso - ainda que não apoiado nas mesmas bases sociais -, está de volta, assumido pelo escritor José Saramago (o único prêmio Nobel da língua portuguesa e um marxista confesso). Se é certo que no seu mais recente lançamento, A Caverna, ele não edulcora nenhum espadachim do Minho ou do Douro, vitupera forte contra o presente maldizendo-o pela desaparição do oleiro, do ceramista que desde os tempos dos grêmios medievais esculpia com argila bacias e vasos com arte e diligência, vitimado que foi pela indústria do plástico.

A Aldeia contra a Globalização

Para Saramago os shopping centers (que ele chama de centros comerciais) são um enganador labirinto, uma caverna platônica, onde os homens de hoje estão presos, alienados, escravizados ao consumo. A proposta que ele sugere é radical: Cipriano, o seu personagem, um oleiro, negando-se a habitar tal mundo, refugia-se numa... aldeia. A choupanização contra a globalização!

Se de fato lastima-se a desativação de certas profissões provocadas pela difusão da tecnologia e da produção daí decorrente - a quem ele consagra o seu mais sincero desgosto - , é bom lembrar que foi ela, a modernização, quem sumiu com os traficantes negreiros, o pelourinho, a chibata, os grilhões e as mordaças, a jornada de trabalho de 14 horas, sem férias e sem aposentadoria, e tantas outras infâmias vinculadas então ao trabalho.


A Denúncia de Marx

O curioso é que justamente foram as olarias (se bem que a de tijolos) uma das atividades selecionadas por Marx como exemplo de degradação e aviltamento humano. Enxergou-as como um purgatório do trabalho braçal (O Capital, vol. I, XIII, 8, c). Como demonstração da brutalidade daquele afazer, a quem Saramago hoje derrama loas, Marx apoiou-se nos célebres relatórios dos inspetores ingleses, onde consta: "o pior de tudo é que os oleiros desesperam de si mesmo", assegurando um deles a um capelão que era mais fácil "reabilitar e emendar o diabo do que um oleiro" (Public Healt Report, III-V, 1864-6).


O Revolucionário Equivocado

Uma das situações que mais embaraçam pessoas bem intencionadas, notou Thomas Mann num ensaio, é acreditarem-se revolucionárias quando na verdade são apologistas de formas arcaicas de viver e produzir, refluindo cada vez mais para trás nesta sua rejeição ao mundo moderno. Se Karl Marx foi um contundente crítico do processo produtivo daquela época, ele o fez do ponto de vista da sua futura superação. José Saramago, ao contrário, propõe a marcha ré, à revivência do artesanato praticado embaixo do teto de palha num vilarejo qualquer. Desiludindo-se do comunismo, converteu-se ao socialismo feudal. Vendas Novas de Évora contra Nova Iorque! Aos tamancos pois....

Voltaire Shilling

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