segunda-feira, 21 de abril de 2008

As duas esquerdas da América Latina

Ainda que vizinha dos Estados Unidos, a nação mais formidável e poderosa do mundo, e ocupando um tanto mais do que a metade do continente americano, o conjunto de países que formam a América Latina, território que abarca uma extensão de terras, rios e lagos, que vai do deserto do Novo México até a Terra Fogo, continua longe de compor uma área prospera. Mesmo assim Jorge Castañeda, o cientista político mexicano, vê alguns sinais positivos no presente.


Cultura relevante política ruim

Jorge Castañeda
Se bem que nela encontram-se bolsões urbanos relativamente desenvolvidos, como é o caso de Buenos Aires, Montevidéu, Santiago do Chile, São Paulo, ou Cidade do México, a pobreza, quando não a miséria, é a tônica dessa parte do mundo.

Refletindo sobre isso, o escritor mexicano Carlos Fuentes ponderou certa vez que a maior contradição da América Latina é que se sua cultura - com seus pintores, escultores, arquitetos, músicos, poetas e romancistas - não deve nada a ninguém, a política e a economia são um desastre só.

Tanto uma como a outra, conjugadas, são as maiores responsáveis pela perduração do subdesenvolvimento e demais desatinos que periodicamente a acometem, formando com isso situações "construídas com sangue, com ilusões e esperanças", como afirmou o escrito argentino Ernesto Sábato.

Se seus artistas estão entre os melhores do mundo (um Jorge Luís Borges, um Lezama Lima, um Roa Bastos, um Pablo Neruda, uma Gabriela Mistral, um Machado de Assis, um Jorge Amado, um César Vallejo, um Gabriel Garcia Marques ou ainda um Mário Vargas Llosa, para içarmos apenas os romancistas e poetas mais conhecidos), não ficando a sombra se comparados aos bons nomes da literatura internacional, infelizmente isso não impede que a América Latina sirva como abrigo da tirania, do caudilhismo, da violência institucional, do desprezo ao constitucional, e dos incontáveis golpes militares e quarteladas que se misturam com um sem fim de revoluções sangrentas. Permite assim que se mostre ao mundo como se ela fora um triste monumento erguido às devastações cometidas pelos desmandos dos poderosos e pela insanidade das massas.


Duzentos Anos de Independência

Em 1810, tiveram início tanto em Guanajunato no coração do México como na distante Buenos Aires à beira do Rio da Prata, os levantes insurrecionais que levaram a América Latina à independência.

Desaparecidos os quatro grandes vice-reinados espanhóis depois de 1825, ocuparam o seu lugar uma constelação de novas repúblicas, enquanto que o Brasil proclamou-se um império independente, rompendo assim o Reino Unido com Portugal.

Aproxima-se, pois, o ano do bicentenário do começo da emancipação latino-americana, momento em que merece se fazer uma reflexão geral pelo menos sobre seus acontecimentos mais recentes, dos últimos dez ou vinte anos para cá.

Esta é a proposta de Jorge Castañeda, o afamado cientista social mexicano, biógrafo de Che Guevara, e um dos mais conhecidos e qualificados estudiosos dos movimentos da esquerda continental, para quem hoje se deve sim comemorar, pelo menos à luz dos feitos recentes, a existência de alguns bons sinais.


Tempos melhores

Analisando o resultado das últimas pugnas eleitorais do continente, Castañeda, além de exaltar a oportunidade e a lisura da maioria delas, fato raro de ocorrer na América Latina, identificou entre os presidentes vitoriosos, eleitos entre 2005 e 2007, o fato deles pertencerem a dois tipos de esquerdos bem distintos entre si.

Só o fato de elas terem sido realizadas e os eleitos terem sido empossados sem maiores problemas ou ameaçados por golpes militares (exceção do caso mexicano no qual o candidato derrotado Lopez Obrador do Partido da Revolução Democrática, por bem pouco número de votos, 250 mil num universo de mais de cem milhões de eleitores, levantou suspeições sobre o resultado que favoreceram a Felipe Calderón do PAN), já é um sintoma positivo dos novos tempos.

Basta recordar que há trinta ou mais anos atrás, na época dos Regimes Militares, praticamente não havia eleições na América Latina, ou quando isso se dava já se sabia previamente qual era o resultado (como era o caso do México dominado então pelo PRI, o Partido Revolucionário Institucional, que não perdia uma só eleição à magistratura máxima desde 1929). Em suma, presentemente mais de 250 milhões de latino-americanos foram às urnas e aqueles que eles elegeram estão agora no exercício do poder com toda a lisura e a legitimidade possível.



Diferentes culturas políticas

Além das diferenças sociais e de classe serem muito mais acentuadas do que as dos Estados Unidos, se desconhece na América Latina o "espírito de compromisso" que faz com que os cidadãos norte-americanos ainda que divergindo profundamente entre si, se envolvidos em acaloradas divergências, encerrada a votação, saiam depois para tranqüilamente jantar juntos.

As falhas institucionais e as diferenças entre a letra da lei e a sua aplicação, são a tônica da política latino-americana, entre outros motivos pela total ausência do Estado de direito.

Não que não existam constituições e códigos de toda a ordem, inspirados nas melhores das boas intenções, mas isso não significa que a justiça seja aplicada ou que as conquistas asseguradas nas cartas constitucionais sejam de fato garantidas.

Há um abismo entre a teoria e a prática, entre aquilo que foi aprovado num artigo constitucional e o que realmente é executado.



Cobrando da democracia

Ao mesmo tempo, como que obedientes ao culto latino-americano pela panacéia, há uma excessiva exigência em relação à democracia recém conquistada, desejando com que ela assuma a função um tanto mágica de prover todas as necessidades materiais e demais carências sociais de um continente profundamente marcado pela miséria e pela violência institucional.

Democracia não é para isso, mas sim para que "os cidadãos optem entre as diversas soluções para resolver os problemas, sejam eles oriundos das desigualdades, da insegurança, da discriminação ou do racismo".


Terra e Liberdade, Diego Rivera

Na verdade, ela por si não consegue responder aos desafios da pobreza e da desigualdade. Mesmo assim ela tem sido preferida em todas as pesquisas realizadas até agora. Ainda que existam os partidários da "mão forte", a "linha dura", entre 60 a 70% dos consultados continuam se inclinado por ela.


Da estagnação à retomada do crescimento

Nos últimos vinte anos a situação da economia latino-americana deparou-se com variados obstáculos, em grande parte em função da grande mudança estrutural imposta pelo fim da política desenvolvimentista até então adotada.

Segundo a doutrina econômica até então vigente, cabia ao Estado a função de ser o condutor do processo de transformação por meio do seu ministério do planejamento, sendo que as empresas estatais desempenhavam fundamental papel estratégico (principalmente as de petróleo, minas, energia, eletricidade, transportes e comunicações em geral).

O resultado disso era o convívio com uma inflação crônica que por sua vez propiciou um enorme endividamento externo, entre outras razões para tapar o enorme déficit que as macro-empresas nas mãos da burocracia estatal acumularam nos decênios anteriores.

O que levou a grave crise da dívida do começo dos anos oitenta, aprofundando-se ainda mais a estagnação econômica provocada pelas medidas que foram adotadas depois do colapso da economia planificada na União Soviética. Fato que acabou por lançar no descrédito a doutrina que exigia a presença do Estado no leme do desenvolvimento. Não sem motivo esse período de reajuste de um modelo estatizante para um privatista foi denominado como a Década Perdida da América Latina.

Todavia esses anos muito ruins parecem agora fazer parte do passado. Desde os começos do novo século, repetidos indicadores acenam para uma gradual melhoria no desempenho geral da economia latino-americano, apontando para um percentual de 5% ao ano. Todavia, nem o México nem o Brasil, que formam conjuntamente a maior parte da produção latino-americana, cresceram de modo significativo se comparados, no mesmo período, à China.

O maior problema, entretanto, continua sendo a questão da distribuição da riqueza ou da renda, que é uma espécie de herança maldita que assombra os países latino-americanos desde os tempos da colonização ibérica, fazendo com que a maior parte da população, particularmente os descendentes de indígenas e dos africanos escravizados, não sinta os efeitos da prosperidade.

O concreto é que a desigualdade não tem sido reduzida. Ainda que a pobreza em geral tenha diminuído, nem o Chile, país apontado como caso exemplar da aplicação da política neoliberal, que registra, há alguns anos, uma taxa de crescimento maior do que 5% obteve sucesso no que toca a atenuação das diferenças entre ricos e pobres.

Ainda assim vários sinais anunciam que em diversos setores da economia, é o caso do transporte aéreo, as coisas melhoraram substancialmente. Como no caso do México, por exemplo, onde uma nova companhia aérea que atua com preços baixos registrou que 47% dos seus passageiros confessaram que era a primeira vez que eles faziam uma viagem de avião. A democratização de um transporte tido até então como de elite é suficiente para perceber-se a alteração para melhor que está ocorrendo. Mas ainda assim avançar contra pobreza não significa sucesso contra a desigualdade.



As vitórias da esquerda

De certo modo era evidente o que passou a ocorrer nas últimas eleições: candidatos afinados com as massas pobres venceram a maioria das contendas eleitorais na América Latina. A simples lógica indica que quanto mais estendido for o direito de voto, maior a possibilidade de isso vir a acontecer de agora em diante.

Entretanto, apesar deles serem considerados de "esquerda", com toda a complexidade e nuança ideológica que isso implica, Castañeda os separa em dois grandes grupos bem diferentes entre si.*

No Brasil, Uruguai e no Chile, observou-se a ascensão de uma esquerda, representada por Luís Inácio Lula da Silva, Tabaré Vázquez e Michelle Bachelet, que aceita a globalização e não se opõe a uma economia de mercado, nem pretende substituir o regime da democracia representativa. Defende os direitos humanos e mantém uma relação cordial com os Estados Unidos, não importando se o seu supremo mandatário é do partido democrata ou do republicano.

Os quadros superiores dessa esquerda "reformista globalizada" são compostos por ex-comunistas, por ex-guerrilheiros e veteranos das batalhas estudantis de 1968, os quais podem perfeitamente ser identificados como representativos do outrora Movimento Comunista Internacional e que terminaram, por força da evidência, por aceitar o processo de integração econômica corrente hoje no mundo inteiro.

Poderia dizer-se deles que são os exemplos vivos do que ele denominou num dos seus livros como "utopia desarmada", ex-militantes que abandonaram para sempre a bandeira da revolução social conquistada pela força das armas, como outrora desejavam Fidel Castro e Che Guevara.

A esquerda nativista

A outra esquerda tem origem totalmente diversa dessa "moderna e globalizada". Kirchner, Hugo Chávez, Evo Morales, Correa, Daniel Ortega e mesmo o derrotado candidato peruano Humala, ainda que pertençam a culturas políticas distintas, tão diferentes como a da Argentina ou a da Venezuela, pertencem à mesma cepa, a que livremente poderíamos designar como "esquerda nativista".



Hugo Chávez e Evo Morales, próceres da esquerda nativista

A que deita suas raízes no velho populismo latino-americano, cujos representantes maiores no passado foram, entre outros, Juan Domingo Perón, Getulio Vargas, Haya de La Torre, ou o General Lázaro Cárdenas, e cujo denominador em comum era a preferência por um Estado centralizado, autoritário e intervencionista, ao tempo em que, se bem que anticomunistas, mantinham forte tensão com os Estados Unidos. Por igual não eram simpáticos à democracia representativa nem entusiastas seguidores dos direitos humanos.

Todavia é essa esquerda, digamos "nativista-populista", apesar de não apresentar nenhum sucesso econômico significativo (a política de Hugo Chávez está toda ela baseada na alta do preço do petróleo), é a que tem maior sonoridade nos dias correntes, a que faz mais alarde e tem maior popularidade, apesar de parecer-se cada vez mais como um filme já visto.

Enquanto que a "esquerda globalizada", que possui ao seu favor dados mais significativos (estabilidade, crescimento ainda que mediano, respeito às instituições e às regras constitucionais da democracia representativa), não goza da mesma atração nem da mesma simpatia. Não tem a ressonância dos pronunciamentos bombásticos de Hugo Chávez.

Por isso mesmo é importante dar-se a batalha das idéias, continuar apostando na democracia representativa entendendo-se que sem ela periclitará o crescimento econômico, sendo que os dois juntos, a democracia e o crescimento, são os únicos instrumentos que dispomos para enfrentar a pobreza e atenuar a desigualdade.


O grande presente que a América Latina merece receber na data que se aproxima dos seus duzentos anos de independência é, no entender de Castañeda, exatamente a solidificação da democracia, da sua maturidade constitucional e do crescimento econômico.



O retorno do atraso

Para o cubano exilado Carlos Alberto Montaner, por sua vez, um ativista e teórico neoliberal, ao contrário da analise otimista de Castañeda, os últimos desempenhos eleitorais foram um desastre para a América Latina. Além dele não fazer distinção entre os candidatos das esquerdas - não lhe importando qual perfil ideológico aparta Lula de Chávez, ou Tabaré Vázquez de Evo Morales - todos eles, por sua inclinação ou simpatia pelo socialismo, se agrupam entre os apóstolos do atraso.

Ao contemplarem as massas por meio de assistencialismos os mais diversos, aferrolham ainda mais o homem comum latino-americano, o peão, o "cholo", o "matuto", o "cabecita negra", no parasitismo, na dependência do Estado, no paternalismo, aviltando-o ainda mais com uma política que troca o voto por bolsas de toda a ordem.

Prática distributiva que somente se sustenta com a adoção de uma tributação extorsiva, inibindo com taxas e com impostos crescentes exatamente as classes e os setores que são os responsáveis pela prosperidade dos seus países.

O resultado previsível deste olhar para o fundo do espelho do imobilismo latino-americano é a letargia econômica, o aviltamento da classe média, o desestímulo aos empreendedores e a fuga dos capitais.

A ascensão das esquerdas é, para ele, acima de tudo, uma reedição do malogrado histórico latino-americano. Trata-se de uma involução, da desnecessária viagem de volta ao que já foi e não deixou saudades: ao mandonismo caudilhesco, às limitações impostas ao avanço tecnológico, à negativa aos investimentos de ponta, à recorrência às práticas sociais já superadas, feitas bem anteriormente pelo aprismo, pelo peronismo, pelo getulismo ou pelo cardecismo.**

É identificar-se ainda mais com a herança retrograda recebida da Península Ibérica, área européia das mais incultas de onde se iniciou uma colonização que não promoveu o progresso do Novo Mundo mais sim implantou uma pachorrenta morosidade coletiva quase que geral e uma secular e atrofiada dependência do individuo em relação aos poderes do Estado.

* Nos tempos de Moscou e Pequim ou ainda Havana, eram os governos comunistas quem determinavam quem era de esquerda ou não. Atualmente o quadro ficou um tanto confuso visto não haver mais um centro legitimador.

** O Aprismo foi um movimento nacional-populista desencadeado no Peru por Haya de La Torre a partir de 1924, enquanto que o Peronismo na Argentina, também conhecido como Movimento Justicialista, teve seu apogeu autoritário e a favor dos sindicatos entre os anos de 1945 e 1955, havendo ainda um breve retorno a ele entre 1973-4.O getulismo refere-se à adoção da política trabalhista de proteção à classe operária adotada por Getúlio Vargas a partir da Revolução de 1930. O cardecismo resultou das medidas nacionalistas e estatizantes adotadas pelo General Cárdenas no México nos anos trinta.
Voltaire Schilling

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