terça-feira, 15 de abril de 2008

O último dos tibetanos

Sob o aço e concreto do progresso chinês, a identidade cultural regional está sendo enterrada

Ian Buruma*

Estariam os tibetanos fadados ao mesmo destino dos índios americanos? Será que vão ser reduzidos a nada mais do que uma atração turística, mascateando souvenirs baratos de uma cultura antes notável? Esse triste destino está parecendo cada vez mais provável, e o ano olímpico já tem sido azedado pelos esforços do governo chinês para reprimir a resistência a isso.

Os chineses têm muitas coisas a responder, mas o destino do Tibete não é apenas uma questão de opressão semicolonial. É freqüentemente esquecido o fato de que muitos tibetanos, principalmente pessoas instruídas das cidades maiores, ficaram tão ávidas em modernizar sua sociedade em meados do século 20 que encararam os comunistas chineses como aliados contra o regime dos monges sagrados e senhores de terras proprietários de servos. No início da década de 1950, o próprio jovem dalai-lama ficou impressionado com as reformas chinesas e escreveu poemas louvando o presidente Mao.

Infelizmente, em vez de reformar a sociedade e a cultura tibetana, os comunistas chineses acabaram destroçando-a. A religião foi esmagada em nome do ateísmo marxista oficial. Os mosteiros e templos foram destruídos durante a Revolução Cultural (muitas vezes com ajuda de membros da Guarda Vermelha Tibetana). Nômades foram obrigados a morar em feios assentamentos de concreto. As artes tibetanas foram congeladas na forma de emblemas folclóricos de uma “cultura minoritária” promovida oficialmente. E o dalai-lama e seu séquito foram forçados a fugir para a Índia.

Nada disso foi exclusivo do Tibete. A destruição da tradição e a arregimentação cultural forçada ocorreram por toda a China. Em alguns aspectos, os tibetanos foram tratados com menos crueldade do que a maioria dos chineses. Nem foi o desafio à singularidade tibetana típica dos comunistas. O general Chiang Kai-chek declarou em 1946 que os tibetanos eram chineses e ele certamente não teria lhes concedido a independência se seus nacionalistas tivessem ganho a guerra civil.

Se o budismo tibetano foi gravemente prejudicado, o comunismo chinês mal sobreviveu às devastações do século 20, também. Mas o desenvolvimento capitalista tem sido ainda mais devastador para a tradição tibetana. Como muitas potências imperialistas modernas, a China reivindica a legitimidade de suas políticas apontando para seus benefícios materiais. Depois de décadas de destruição e negligência, o Tibete tem se beneficiado de enormes quantias em dinheiro e energia chineses para modernizar o país. Os tibetanos não podem reclamar que foram deixados para trás na transformação da China de um desastre do Terceiro Mundo numa maravilha de desenvolvimento urbano .

Mas o preço para o Tibete tem sido mais alto que para outros lugares. A identidade regional, a diversidade cultural e as artes e costumes tradicionais foram enterrados debaixo de concreto, aço e vidro por toda a China. E todos os chineses estão tendo dificuldade em respirar o mesmo ar poluído. Mas ao menos os chineses da etnia han podem sentir-se orgulhosos do restabelecimento de sua sorte nacional. Eles podem aproveitar o ressurgimento do poder e da riqueza material da China. Em contraposição, os tibetanos só conseguem compartilhar desse sentimento na medida em que se tornarem plenamente chineses. Se não, só podem lamentar a perda da própria identidade.

Os chineses têm exportado sua versão do desenvolvimento moderno para o Tibete não apenas em termos de arquitetura e infra-estrutura, mas também de população - numa onda após a outra: comerciantes de Sichuan, prostitutas de Hunan, tecnocratas de Pequim, autoridades do partido de Xangai e lojistas de Yunnan. Hoje em dia, a maior parte da população de Lhasa não é mais composta de tibetanos. A maioria das pessoas das áreas rurais é tibetana, mas o estilo de vida delas provavelmente não sobreviverá à modernização chinesa mais do que o estilo de vida dos apaches sobreviveu nos Estados Unidos.

Uma vez que o chinês é o idioma da instrução nas escolas e universidades tibetanas, quem quiser ser mais do que camponês pobre, mendigo ou vendedor de quinquilharias precisa se adaptar às normas chinesas, isto é, tornar-se chinês. Até mesmo os intelectuais tibetanos que queiram estudar sua própria literatura clássica precisam fazê-lo na tradução chinesa. Enquanto isso, chineses e outros turistas estrangeiros vestem o traje tradicional tibetano para tirar fotos de lembrança tomadas em frente ao velho palácio do dalai-lama.

A religião é agora tolerada no Tibete, como o é no restante da China, mas sob condições rigidamente controladas. Mosteiros e templos são explorados como atrações turísticas, enquanto agentes do governo se encarregam de garantir que os monges se comportem. Como pudemos perceber em decorrência dos recentes eventos, o governo ainda não foi totalmente bem-sucedido, pois o ressentimento entre os tibetanos é muito profundo. Nas últimas semanas esse ressentimento transbordou, primeiro nos monastérios e depois nas ruas, contra os migrantes chineses da etnia han, que são tanto os agentes como os beneficiários da rápida modernização.

O dalai-lama tem repetido que não busca a independência. E certamente o governo chinês está errado quando o culpa pela violência. No entanto, enquanto o Tibete continuar fazendo parte da China, fica difícil ver como sua identidade cultural distinta possa sobreviver. As forças humanas e materiais aglutinadas contra o Tibete são esmagadoras. Há muito poucos tibetanos e chineses demais.

Fora do Tibete, porém, é uma outra história. Se os chineses são responsáveis por extinguir o antigo estilo de vida dentro do Tibete, são, também, inadvertidamente, responsáveis por o manterem vivo fora do Tibete. Ao imporem o exílio ao dalai-lama, garantiram o estabelecimento de uma diáspora tibetana, que pode muito bem sobreviver numa forma mais tradicional do que seria provável mesmo num Tibete independente. Diásporas vicejam nos sonhos nostálgicos do retorno. As tradições são ciumentamente preservadas, como bens preciosos, para serem passadas de geração em geração enquanto esses sonhos persistirem.

E quem pode dizer que esses sonhos nunca se concretizarão? Os judeus conseguiram agarrar-se aos seus por quase 2 mil anos.

*Ian Buruma é professor de direitos humanos no Bard College. Seu livro mais recente é Murder in Amsterdan: The Killing of Theo van Gogh and the Limites of Tolerance (Assassinato em Amsterdã: A Morte de Theo van Gogh e os Limites da Tolerância).

Investida pré-olímpica
QUINTA, 10 DE MARÇO
A China anunciou a prisão nos últimos dez dias de 35 suspeitos de planejarem ataques terroristas com gases e explosivos durante as Olimpíadas, em agosto. As prisões ocorreram na Província de Xinjiang, ao norte do Tibete, onde se concentram separatistas muçulmanos.

Nenhum comentário: