terça-feira, 22 de abril de 2008

O caminho democrático

Não há democracia para valer com uma voz única, sem os inevitáveis protestos públicos e sem a possibilidade de contrariar as verdades das grandes mídias que hoje têm enorme influência na formação do espaço público do país.

Luís Carlos Lopes

A partir do final da década de 1970, quando começou a longa agonia da ditadura militar brasileira, foi costume dizer que o chamado ‘estado de direito’ seria o remédio para o regime de exceção. O lento e progressivo retorno dos direitos democráticos prometiam resolver o mar de arbitrariedades e outras inúmeras violências que assolaram o país por duas décadas. Por fim, a decadência da ditadura completou seu ciclo e foram convocadas as primeiras eleições diretas, em 1989.

O primeiro eleito pelo voto direto tinha muito a ver com o passado, bem como com o ‘partido’ (ARENA/PDS) oficial dos apoiadores do regime militar. Antes dele, havia governado o país um velho político das oligarquias nordestinas, que antes fora presidente do mesmo ‘partido’. Este chegou ao poder pela excrescência do voto indireto e pela tragédia do falecimento do real escolhido. Seu sucessor, eleito pelo voto popular, conseguiu em mil dias traumatizar o país, por alguns aspectos, mais do que foi obtido em igual período da ditadura. Terminou sendo, democraticamente deposto, algo impossível no regime anterior. Portanto, a transição ainda continuava, dez anos depois de começada.

A democracia formal brasileira foi sendo instalada de crise em crise, de plano econômico para outro, encontrando na atual fase, seu período de maior estabilidade. O ‘estado de direito’ está instalado, ficou para trás o período onde os desejos e as vontades dos governantes estavam acima de qualquer outra coisa ou providência. Vive-se para bem e para o mal o império da lei, sendo esta votada por um parlamento democraticamente eleito. Mesmo que nem sempre os eleitos sejam fiéis aos seus eleitores, beneficiando-se do fato que não podem ser depostos por esses, depois de empossados. É preciso esperar a próxima eleição ou uma ‘briga de branco’ entre eles. Os juízes não são mais aposentados por darem sentenças contrárias ao poder de plantão e, teoricamente, qualquer um pode ser julgado por seus crimes.

O que ainda não se sabia, por ingenuidade ou ignorância política, é que o império da lei não garantiria igual tratamento de todos frente à mesma. Não se compreendia que era possível dar substância antidemocrática ao texto legal, tanto no que se refere ao seu conteúdo e, mais ainda, à sua aplicação. Não se sabia que o sistema de privilégios aristocráticos e raciais oriundos do passado colonial escravista não seria alterado. Não se imaginava que continuariam existir os foros privilegiados e um tratamento diferenciado e incompatível com uma verdadeira democracia. O logro do formalismo pegou a todos de calças curtas. Rapidamente ficou claro que algo não havia mudado. A todo momento, esta cruel verdade continua a aparecer para quem quiser vê-la, mesmo em casos de crimes que sobrelevam o clamor público. Obviamente, existem os que se esforçam para negar o que estoura na frente das retinas dos brasileiros.

O caminho democrático escolhido pelos brasileiros, desde o histórico e imenso movimento pelas diretas, no início da década de 1980, tem ainda muita lenha a queimar. Falta ainda muito chão a ser pavimentado pelas forças democráticas e progressistas do país. É verdade que se corre o risco de um imenso retrocesso, tal como se vê, por exemplo, na Europa atual. A rota democrática pode ser atropelada de modo sutil, antes que se alcance um maior nível de justiça social e um maior controle público das instituições de Estado. Não se pode imaginar o progresso político do país com a continuação dos atuais níveis de miséria e ignorância, e sem que existam alterações que permitam o desenvolvimento real dos direitos de cidadania. A luta pela democracia vem explodindo por toda parte, como se está vendo, por exemplo, na coragem dos estudantes da UNB.

Não há democracia para valer com uma voz única, sem os inevitáveis protestos públicos e sem a possibilidade de contrariar as verdades das grandes mídias que hoje têm enorme influência na formação do espaço público do país. Em suma, não se pode falar em democracia, se pequenos grupos se apropriam do público, privatizando-o e impedindo que seus verdadeiros donos se aproximem. Isto vale para os grandes espaços, como também para o que se vive no cotidiano social e profissional. No caso da epidemia da dengue, este problema pode ser visto por várias dimensões. A política e a consciência social continuam, para a vida e para a morte, organizando a vida de todos.

Luís Carlos Lopes é professor.

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