sábado, 14 de janeiro de 2006

Para entender a crise

POLÍTICA

O PT, a crise e o deslocamento do imaginário social

Um dos efeitos da crise é o deslocamento do imaginário social em relação ao PT e à esquerda em geral. Aos olhos da população, não somos mais o que éramos. Ignorar isso é um erro que pode significar a perda definitiva de nosso norte estratégico.
Estamos completando sete meses de uma prolongada agonia. Há cerca de três meses, refletindo sobre a crise, apontávamos que ainda não havíamos chegado ao fundo do poço, entendendo esta percepção como a evidência dramática e previsível de que os desdobramentos da grande crise gerada pelas opções políticas da chamada maioria partidária ainda não tinham se esgotado. Estamos agora no final de 2005 e esse diagnóstico permanece atual. Este artigo pretende defender três pontos que julgamos fundamentais para entender a dimensão e os efeitos da crise sobre os rumos do PT e do projeto que viemos construindo ao longo dos últimos 25 anos. São eles:
1) Um dos principais efeitos da crise é um deslocamento do imaginário social em relação ao PT e à esquerda de um modo geral. Aos olhos da população, não somos mais o que éramos. Fazer de conta que isso não aconteceu é um erro gravíssimo. Pode significar, definitivamente, a perda de nosso norte estratégico.
2) A partir do reconhecimento da existência desse deslocamento, é preciso afirmar que muitas coisas permanecem “não ditas” e interditadas dentro do partido. É preciso falar sobre isso que permanece interditado, como condição para voltarmos a ter uma estratégia.
3) Precisamos ter em mente por que escrevemos e para quem escrevemos. Os melhores dirigentes têm, mais do que nunca, essa obrigação: ter a ousadia de falar o que não está sendo falado e não apenas ficar produzindo textos de ocasião, onde as mediações táticas, impregnadas pelas emergências eleitorais, acabam deixando intocados os problemas que angustiam hoje a militância do PT e todos os brasileiros que depositaram confiança em nós como um projeto diferente para o país. O preço de não fazer isso é se iludir com diagnósticos falsos e otimismos exagerados, além de interditar, como foi dito acima, o debate sobre o nosso horizonte estratégico.
Para abordar esses três pontos, inicialmente vamos reconstituir sinteticamente a composição do cenário que nos levou ao ponto onde estamos. O governo assumiu uma linha programática, no fundamental, contrária e até mesmo diametralmente oposta àquela que, e com a qual, havíamos desenvolvido nosso trabalho, nosso crescimento, nossa afirmação e nossas vitórias nos vinte anos anteriores. Isto já está entendido para a militância como uma opção por uma política econômica que manteve alguns dos principais fundamentos macroeconômicos do governo anterior.
Essa política foi conduzida de tal maneira que ela simplesmente impediu, bloqueou ou limitou políticas sociais em relação às quais tínhamos a expectativa de que seriam a parte dominante da expressão social do governo. Então, tivemos: uma política econômica inaceitável e uma política social muito frágil. Quando o escândalo aparece, a partir de maio, ele encontra já, de fato, o governo ainda com prestígio mas com brutais desgastes em relação às expectativas que sua eleição tinha gerado, e grandes decepções em distintos setores por políticas como a Reforma da Previdência, como a ausência de intervenções firmes e corajosas em temas como o dos transgênicos ou o dos desaparecidos, apenas para citar estes dois. Portanto, o governo começava a se enfraquecer.
Se pensarmos qual era a situação do partido neste momento, lembraremos (e até escrevemos sobre isso) que ele estava completamente subordinado e transformado em linha auxiliar do governo, para quem assumia plenamente a linha Lula, e paralisado, impotente e sem voz, para quem já tinha uma visão crítica dentro do PT. Então, o resultado era: ruim na política nacional, ruim na política para a sociedade e péssimo na forma de atuação do PT nessas mesmas circunstâncias. Dito de outro modo, já o partido, bem mais do que o governo, estava enfraquecido. Portanto, se o programa e o partido central deste programa, que representava um dos suportes de nossa existência, já estava comprometido, e se desabou o outro suporte que era a postura ética e moral e razoavelmente exemplar com que se construiu essa longa caminhada de mais de duas décadas, em cima do que mesmo que nós nos sustentamos?
Sobre a relação entre as escolhas econômicas do governo Lula e a crise política, vale a pena refletir sobre o que disse o economista Enéas de Souza, em seu artigo “A crise do Brasil: as finanças e a morte da utopia”:
“O que nós vamos perceber nestes anos do governo Lula é um combate onde a esquerda foi derrotada, onde o PT foi batido, onde o projeto nacionalista de desenvolvimento foi desarmado. A marca e o avanço das finanças ficou indelével na arquitetura do Estado. E foi este confronto com o projeto nacionalista de desenvolvimento associado que culminou por desatar o desabamento da crise. Sem dúvida, a falta de uma estratégia efetiva que sustentasse este projeto permitiu que a dança das cadeiras se fizesse ao ritmo da música da corrupção. E só poderia, porque se as utopias desapareceram, se as classes que comandam o país estão agrupadas com as finanças, o que sobra para os partidos políticos - dada a fratura do Estado, e o domínio do capital financeiro na política econômica restrita - é um projeto de poder pelo poder, um projeto puramente pragmático. Ou seja, um projeto de mando e não um projeto estratégico”.
O tema do deslocamento do imaginárioEste é um tema que nos parece extremamente importante nesta etapa da vida partidária em que acabamos de sair do PED. Na verdade, trata-se de saber como está a cabeça do povo brasileiro, ou alguém acha que ela está do mesmo modo que estava no início do ano? Neste momento, pós-PED, estamos refletindo sobre a força e o significado dele para a revitalização partidária. Alguns companheiros, por desejo, generosidade ou ingenuidade deduzem rapidamente da realização do PED já um forte sinal de recuperação. Uma visão, aliás, voluntarista, provavelmente ilusória e inquietantemente autista. Sustento que houve, há e haverá ainda mais um deslocamento desse imaginário, em relação à existência política do governo, do Partido dos Trabalhadores e da figura de Lula.
Há vários indicadores que apontam nesta direção. Segundo a pesquisa CNT/Sensus, divulgada no dia 22 de novembro, o percentual de eleitores que não votaria em Lula se as eleições fossem hoje atinge 46,7%. O aumento foi de mais de 7 pontos percentuais em relação ao índice de rejeição ao presidente constatado na última pesquisa, em setembro (39,3%). A pesquisa, realizada de 14 a 17 de novembro em 195 cidades de 24 Estados, mostrou, além do aumento da rejeição, que a aprovação pessoal do presidente oscilou negativamente de 50% em setembro para 46,7% em novembro - o pior nível desde a posse. Foram realizadas 2.000 entrevistas, com uma margem de erro de 3 pontos.
O que é mais inquietante é o registro contínuo de queda nas últimas seis pesquisas CNT/Sensus. Em fevereiro deste ano a aprovação de Lula era de 66,1%. O maior nível atingido pelo presidente, em janeiro de 2003, chegou a 83,6%. Na opinião de 72,6% dos entrevistados, a imagem de Lula foi afetada pela crise política a ponto de prejudicar sua reeleição. Para 42,8% dos entrevistados o presidente participou dos atos de corrupção denunciados atualmente e 41,3% dizem que não. A grande maioria (82,1%) afirma que não votaria, de jeito nenhum, em um político envolvido em irregularidades, enquanto 13,9% disseram que o importante é o que ele faz pelo povo. O levantamento revelou ainda que se a maioria dos pesquisados (77,5%) acredita que ainda podem surgir novos fatos sobre as denúncias de corrupção e 64,6% afirmam que a crise política vai influenciar seu voto nas eleições.
As pesquisas de opinião não trazem nenhuma surpresa exatamente. Vivemos sete meses de bombardeio sistemático, por conta da percepção de nossos adversários de que têm a oportunidade de suas vidas, não apenas para nos desgastar um pouco para ganhar a próxima eleição, mas para nos aniquilar, para nos varrer do mapa, para “acabar com essa raça por trinta anos”, para usar a expressão de uma das maiores figuras da direita, que é Jorge Bornhausen. Essa expressão mais do que racista, carrega a noção de extermínio de um partido e de um campo popular. É uma tentativa de neutralizar a capacidade de resistência e de organização de interesses que não são os da elite brasileira. Ele chama de raça, mas está falando de classe, ele chama de raça, mas está falando de luta, de resistência, algo que eles detestam desde os tempos da escravatura e da casa grande.
A frase de Bornhausen sobre o destino da raça petista foi uma espécie de senha para a abertura dos portões aos agentes políticos do grande capital. Os termos nos quais foi posto o debate do referendo sobre o desarmamento e o resultado do mesmo, somados agora à vitória da bancada ruralista na CPMI da Terra propondo o indiciamento do MST como autor de atos terroristas e crimes hediondos, são sinais claros e evidentes de que está em curso uma grande ofensiva da direita no país. Diante deste cenário e se aceitamos a hipótese do deslocamento do imaginário, é vital entendermos a natureza e a extensão deste fenômeno.
O processo do referendo é um bom terreno para fazermos essa reflexão, na medida em que todo mundo diz e percebe que ele também se deslocou do seu eixo temático para se tornar quase um plebiscito sobre o governo Lula, produzindo uma associação altamente indicativa de como o imaginário nacional funciona hoje. Por que ocorreu esse deslocamento? As primeiras pesquisas apontavam uma vitória tranqüila do “sim”. Como é que virou essa tendência? Que valores agregaram as imagens de um e de outro programa? A campanha do “sim” pode ter tido incompetências, a do “não” pode ter sido mais competente. Isso é uma parte própria daquilo que nós falamos sempre sobre as campanhas publicitárias eleitorais cada vez mais americanizadas e, portanto, cada vez mais dependentes dessas injunções que não nascem tanto das necessidades da sociedade, no sentido mais tradicional, mas do que se imagina serem elas. Quem lidar melhor com isso, acaba vencendo. Acabou de acontecer. Esse é o mais forte indicativo pós-escândalo que temos sobre a ocorrência do deslocamento de imaginário que estamos tratando aqui. O sociólogo Emir Sader resumiu bem esse quadro no artigo “Paradoxos e Desafios de um Referendo”, publicado no site da Agência Carta Maior:
“A esquerda, as forças democráticas, as pessoas com valores humanistas, saímos derrotados e a foto que sai do referendo é muito perigosa. O fracasso das políticas atuais de segurança pública e a ausência de alternativas no campo democrático é um alimentador desse autoritarismo racista. Mas o fracasso do governo Lula em encarnar valores alternativos é outra fonte de desengano, de gente que vai buscar explicações e refúgio nas visões naturalizadoras da violência, que fazem recair sobre os pobres o ônus mais grave – de supostos agentes da violência, mas que na realidade são vítimas privilegiadas dela. O isolamento social da esquerda é muito grande, a grande mídia privada – o verdadeiro partido das classes dominantes – forma e deforma a opinião pública a seu bel prazer. Os programas sensacionalistas na TV, com o pretexto de pedir justiça para casos de violência, na verdade insuflam sentimentos ruins, que multiplicam a cultura da violência. O próprio fato de que grupos de esquerda, que se pretendem “classistas”, não incorporarem questões democráticas como a regulação estatal do comércio de armas, revela como há um enorme campo a ser trabalhado, inclusive dentro da esquerda”.
Então, resumindo, algo mudou na percepção da sociedade brasileira, que não vê mais na estrela o que via, não vê mais em Lula o que via e, no geral, se isso tudo era a tal da esquerda, ela já vê a esquerda de uma maneira muito menos esperançosa e muito menos respeitável do que via antes. Onde é que foi parar isso? A hipótese que estamos levantando aqui sobre o resultado do referendo nos parece muito sugestiva. O que se sugere aqui é que, tragicamente, estamos chegando, no final de 2005, perto de alguns elementos que dominaram o imaginário na década de 90, quando o discurso neoliberal de que o aparelho de Estado era aquele elefante no bazar, de que era preciso implementar um processo de privatizações, etc., tornou-se dominante. Aquilo foi uma espécie de vitória resultante de um processo de desconstituição e desqualificação da idéia de socialismo. A ocupação de espaços pelas forças vencedoras foi total: na ideologia, na forma de organizar a economia, na cultura, no elogio do salve-se quem puder, na maximização da noção de darwinismo social. A dimensão dessa ocupação de espaços não deve ser desprezada, como assinalou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, durante a entrega do prêmio Juca Pato 2005:
“A dimensão individualista e anti-republicana destas formas de vida e de consciência, aliada à decadência econômica engendrada pelo rentismo periférico, deságua na anomia social e na impotência do Estado, cada vez mais inabilitado para o cumprimento de suas funções essenciais de garantir a segurança dos cidadãos, promover a universalização das políticas públicas de saúde, educação e previdência.”
Estávamos começando a retomar um pouco deste espaço, conseguindo mobilizar grandes setores de população em processos como o do Fórum Social Mundial, que significaram, entre outras coisas, uma agregação de forças que estavam dispersas, recompondo uma visão crítica sobre a absoluta selvageria da hegemonia neoliberal. No Brasil, tivemos uma situação peculiar, porque era completamente atípico (comparando-se ao que acontecia na maior parte do mundo) o protagonismo do PT que acabou resultando na vitória de Lula. Tanto que se dizia muito pelo mundo afora: espera-se muito da vitória de Lula. Essa frase tinha validade, continua tendo, mas como o governo Lula tornou-se o que é, o contra-efeito da expectativa gerada é algo muito complicado. Falando em termos de imaginário, lembremo-nos de quem fez o Orçamento Participativo. Fomos nós. Nossos adversários tiveram que ver a pujança do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Podemos dizer, com a devida modéstia, que estávamos ocupando terreno com fórmulas novas. Tínhamos não o custo Brasil, mas a variante Brasil pela esquerda, que estava começando a se desenvolver nesta sucessão que conhecemos. A variante Brasil como alternativa de posição progressista acabou de levar um duríssimo golpe.
Por isso sugiro que podemos pensar daqui em diante em uma analogia com os anos 90, onde a hegemonia neoliberal foi esmagadora, onde boa parte da juventude se voltou para outras coisas. O que vem por aí, então? Se virou o imaginário, se aqueles que o tinham incendiado o enterraram, como é que vai ser daqui pra frente a alma política do cidadão comum brasileiro, depois de uma saturação de mais de sete meses onde nós somos a cara do mal, nós somos a cara da não confiabilidade, a cara da corrupção, do “mensalão”, onde nós somos apresentados como o nome do desastre e a cara do ladrão.
A “Revolução Permanente” delesO que nós assistimos na mídia é que, abertas as brechas que nós geramos, o inimigo fez a parte dele. A nossa parte foi, infelizmente, gerar práticas absolutamente inaceitáveis e, a partir disso, abrir para o inimigo uma vulnerabilidade inédita. Isso parece ser óbvio, mas não é bem assim. Nós sempre lutamos contra eles, mesmo em condições de inferioridade que perduraram décadas, com a força de nossa causa e o vigor de nossa atitude, de nossa postura. Nós fornecemos para eles, de graça - para que somassem ao furor de sua inconformidade e à violência mal contida com que esperavam o momento de aniquilar, não tanto as políticas do governo Lula, mas o significado do PT -, uma nova arma, ao poder contar com a nossa desmoralização e com a desautorização de uma das razões estruturantes da ação e da personalidade política do PT.
Todos diziam, em 2002: “essa é a eleição de nossas vidas”, a chance singular que temos na história brasileira e, por isso, até faremos algumas concessões para vencer. Até podíamos compreender que fazíamos essas concessões pela força do inimigo. Mas isso significava também que deveríamos ter uma enorme consciência das características, comportamentos e interesses do inimigo. Mas parece que esquecemos disso ao dar a eles a oportunidade, que potencializou enormemente a sua capacidade de ofensiva, de falar não apenas da política que defendíamos, mas da nossa conduta, algo que eles nunca tinham tido a chance de fazer. É isso que nós temos que agradecer à maioria partidária, aos companheiros e ex-companheiros todos que conduziram essa política e que hoje estão nas páginas dos jornais. Essa enorme abdicação de referências incluiu inclusive isso: uma incompreensão de qual era mesmo o “confronto de classes” em curso no país, mesmo que tivéssemos produzido algumas flexibilizações, mesmo que tivéssemos vencido as eleições.
Aqui, devemos considerar o famoso tema da correlação de forças. No início do governo Lula, muitos dirigentes petistas usaram e abusaram do discurso segundo o qual a correlação de forças desfavorável no cenário nacional e internacional não permitia grandes mudanças na economia. Ou seja, nem a esquerda nem o país estavam em condições de um enfrentamento com o capital financeiro. O que é incrível é que essa percepção de fragilidade não foi considerada no momento de definir políticas e práticas que acabaram por desmoralizar, junto à população, o maior partido de esquerda do país. O conceito da correlação de forças desfavorável serviu para justificar a política econômica, mas foi completamente desprezado do ponto de vista de uma tarefa básica: não abrir um flanco ainda maior para a direita. Ele só informou a política de concessões, quando deveria ter valido também para não perdermos partes do programa e da postura ética. O custo foi, é e será altíssimo.
Afinal, nós éramos o partido do andar de baixo, éramos aqueles que não devíamos ter chegado aonde chegamos. O fato melancolicamente metaforizado por uma espécie de aceitação da figura presidencial, pelos ícones da elite brasileira, era uma das expressões mais tristes desse processo. Para alguns, houve um encontro, materializado numa aliança de verdade e numa pactuação, gostássemos ou não, o que representaria uma nova etapa da história brasileira. Então, essa conduta vulnerabilizou completamente a imagem partidária e a cruzada justa para enfrentar elementos de corrupção e de ruptura da legalidade formal, transformou-se em uma Revolução Permanente deles, ação permanente deles, ataques permanentes deles. Neste contexto, vale a pena pesquisar com mais profundidade como atuou a mídia em sua totalidade. Empiricamente, a visão que ficou fácil de guardar foi a de que todos os nichos, todos os tipos de segmentos de público, todos os níveis de horário e compartimentações de audiência foram atendidas com uma incessante explicitação de ataques, denúncias e caricaturização da ação do governo e do partido.
É importante reconhecer que eles não inventaram o assunto. Fomos nós que o fizemos. Mas a mídia deu a ele uma intensidade extraordinária, decuplicando o significado das coisas e ampliando de forma extraordinária a sua divulgação. Programas como o Casseta e Planeta, o Jô Onze e Meia, a revista Veja, novelas e os noticiários em geral – particularmente os da Rede Globo – unificaram e massificaram os temas da crise de um modo que praticamente todos os nichos midiáticos foram ocupados por eles. Há pesquisas que mostraram que, nos dois primeiros meses da crise, cerca de 85% da população estava informada sobre o tema. Do ponto de vista do Brasil real de 170 milhões de habitantes, de profundos interiores e distância, provavelmente não há registro na história do país de um assunto que tenha se irradiado com tal intensidade, onipresença e medida de saturação. Saturação no sentido militar do termo, do bombardeio que satura uma posição inimiga com tal intensidade que não sobra nenhuma forma de vida ali.
Há uma noção de saturação absoluta envolvendo todas as clientelas da televisão, atuando já há mais de meio ano. E ainda não terminou. Está clara a decisão de ampliar as comissões parlamentares de inquérito por mais alguns meses. Duas delas irão até abril de 2006, fechando praticamente um ano. Elas vão puxar de qualquer lugar supostas acusações, várias delas visivelmente inconsistentes e operacionalizadas apenas para estender e potencializar o impacto da crise ainda este ano e transferi-lo para o ano da eleição. Portanto, o objetivo é manter a prática da saturação e do ataque permanente.
O símbolo da estrela fraturadaEntão, tem sentido falar em deslocamento do imaginário. É impossível olhar para essa dinâmica na nossa sociedade, durante os últimos sete meses, e não perceber as suas várias singularidades: a gravidade da crise, a desconstituição de elementos que compuseram historicamente a identidade do PT. A estrela vermelha passou a ser uma marca, para usar a linguagem deles, tão reconhecida como a marca da Coca-Cola ou do MacDonald’s, para dar exemplos de mau gosto. É óbvio que uma marca só chega a ter tal dimensão, quando ela, em sua existência (no caso do PT, uma existência de luta) conseguiu ir entrando em todos os poros da sociedade, pela sua reiterada ação e pelo fato de que sempre a sua ação correspondia à identidade que ela havia esboçado. Agora, tudo o que é denunciado, que aceitamos ou rejeitamos, é o contrário da identidade que essa síntese simbólica que a estrela representava.
Então, é claro que as revistas semanais recorreram ao símbolo fácil da estrela toda fraturada. Isso era rigorosamente verdadeiro, no sentido de que estava em curso uma desconstrução metódica. A discussão não passou por um debate se a nossa posição sobre a reforma agrária, sobre nossa relação com o MST, no mérito era uma posição equivocada. Não passou por uma discussão sobre nossa posição em relação aos grandes abusos da transgenia. Não, o debate é sobre quem é esse que está falando. Desde quando essa estrela tem moral agora para falar disso ou daquilo? A discussão gira em torno do tema ético, o que nos alerta que ele não é um ornamento de nossa conduta, mas um elemento estruturador.
Quando se fratura completamente o fundamento ético isso é como bater na parte que sustenta o resto. E é isso exatamente o que aconteceu. Ao se dar a desconstituição destes símbolos – mesmo com os elementos interessantes do PED como a participação de mais de 300 mil filiados no primeiro turno, como o segundo turno valioso, uma nova proporção na direção, como a possibilidade de deslocar um pouco práticas que estavam completamente enraizadas por uma maioria já viciada e viciosa – o que fica no imaginário popular é que a estrela não é mais aquela. Se ela não é mais aquela e Lula também não é mais aquele e o governo Lula não é aquele que dizia que seria, tudo isso funciona como elemento de uma desconstituição simbólica central. Mesmo que centenas de ações positivas estejam sendo feitas horizontalmente no governo, elas não tem nenhuma força, a não ser local, para disputar a preservação dos símbolos centrais de irradiação nacional.
Tsunâmi ou mutação genéticaEntão, a ambição dessa reflexão, no momento em que começamos a fazer balanços e a tentar prospectar o futuro, é propor a seguinte questão: no fundo, apesar das diferenças sensíveis entre o campo crítico do PT – a chamada esquerda partidária – e o que hoje já se chama de ex-Campo Majoritário, estamos atuando todos, com diferentes inflexões, como se tivéssemos sofrido uma gravíssima tragédia, mas que, na verdade, teria sido uma espécie de acidente. Em uma grande tragédia como no caso de uma tsunami, por exemplo, podem morrer 200 mil pessoas, mas as águas retornam para o seu lugar. Não foi isso que sofremos, não foi uma tsunami. Foi algo mais grave, uma mutação genética. Em que sentido? No sentido que mais importa que é o político, para os que nos vêem e nos julgam, para os que votam, nos seguem ou nos odeiam. Se há uma mutação e ela é uma modificação que nos trouxe grandes perdas, na verdade, a preparação eleitoral para 2006, com uma obsessão cada vez mais intensa no nosso partido, ela ainda está muito presa ao código genético anterior. Ou seja, houve uma grande tragédia, mas continuaremos andando pelas sendas que já havíamos desbravado.
O problema é que, se houve um deslocamento do imaginário tal como o caracterizamos, não podemos seguir pelo mesmo lugar por uma razão muito singela. Porque não somos mais reconhecidos pelos nossos símbolos anteriores, uma vez que os perdemos. O nosso capital político será reduzido de uma forma muito grande. As denúncias que nos atingiram acabaram provocando uma grande derrota para nós. Os melhores valores da história do PT, que não eram propaganda e sim baseados na vergonha na cara e na revisão dos padrões éticos da política brasileira, foram abandonados por alguns ex-companheiros dirigentes. Quero dizer que não caiu a máscara quando se identificaram esses crimes. O que aconteceu é que ao chegar ao nível máximo de poder não soubemos dirigir o extraordinário desafio que temos em mãos e, a partir daí ocorreram inflexões em nível de orientação política e de orientação organizativa interna do partido que são inaceitáveis.
O PT não vai parar nem deixar de existir, mas entramos num período complexo e grave da crise de nossa existência. O uso do termo “derrota” é justamente para provocar um contraste. Nós, numa democracia, em cima de uma vitória de 53 milhões de votos, com um enorme enraizamento nos movimentos sociais do país, comprometermos tudo isso é um crime contra tudo o que nós e gerações passadas fizeram. Por isso dizemos que essa é a pior derrota vivida pela esquerda brasileira. Ninguém está sendo torturado, mas na alma de milhões de petistas há uma dor profunda. Morre um pouco da nossa esperança, num futuro melhor mais próximo. A estrada vai ficar mais difícil de ser percorrida. Não há a menor dúvida sobre isso, embora alguns achem que o pior já passou.
No fundo, há uma confusão que não é determinada por nenhuma má fé. É que as pessoas não sabem se se movem como se moviam antes, nas suas melhores coisas, ou se é preciso pensar uma forma nova, com conteúdos diferentes, com referências explícitas ao que acaba de acontecer. De que maneira o capital político e o patrimônio de cada um vai operar neste processo? De que maneira a trajetória social de cada quadro vai se comportar? Para muitos, só restará esse patrimônio individual, a própria biografia, para se agarrar. Outros podem se agarrar no dinheiro e irão jogar em outro departamento.
É possível e talvez até provável que esse deslocamento do imaginário abra um caminho muito grande para a direita. Em relação a essa possibilidade também o tema do referendo é muito interessante para ser examinado com mais profundidade e rigor analítico. Há fortes indícios dessa possibilidade no ar. José Dirceu tem razão em relação a um ponto, quando diz que no Brasil de hoje inverteu-se completamente o ônus da prova. O acusado é que tem que provar que é inocente, não o acusador. Isso espraiou-se pela sociedade. Um dos sub-temas e das sub-perversões da forma como a ofensiva da direita se deu, para liquidar e exterminar o PT, está no avassalamento do tal Estado de Direito. E eles passaram dois anos do governo Lula dizendo que nós é que estávamos fazendo isso. Mas eles fazem isso com particular competência e vocação. Se é para arrebentar com a esquerda, vale tudo.
A figura da delação premiada é bastante elucidativa sobre esse processo. Hoje, vivemos em um país de heróis canalhas e de delatores premiados. Acredito que a figura de Roberto Jefferson não será secundarizada ou esquecida. Ele saiu do ar, mas encarnou uma espécie de Macunaíma de direita que cumpre um papel importante. Creio que devemos prestar mais atenção nessa figura do herói canalha, pois ela vem se repetindo como no caso do doleiro Toninho da Barcelona e do juiz Mattos. Essa repetição pode não ser acidental.
É diante desse cenário e das hipóteses levantadas aqui em torno da tese do deslocamento do imaginário nacional, que pretendemos apontar aqui uma insuficiência fundamental no modo como continuamos a nos mover. Se o que nos atingiu foi, não uma tsunami, mas uma mutação genética, os desafios que estão colocados a nossa frente podem ser mais graves e complexos do que imaginamos, exigindo uma reflexão muito mais cuidadosa e rigorosa sobre o chão que estamos pisando. Antes que fiquemos sem qualquer chão para pisar.
A célula-tronco de nossa capacidade de resistênciaEntão, resumindo, esse período de bombardeio permanente, propiciado pelos nossos próprios erros, sobre elementos de centralidade constitutiva de identidade, de perfil de símbolos e de orgulho de existência política nos atingiu gravemente. Na verdade, a excepcional resistência do partido e de alguns destes símbolos é, como muitos têm apontado, uma surpresa diante do bombardeio dos últimos seis meses. Mas não chega a ser totalmente uma surpresa para aqueles que conhecem a história da esquerda. Esse é um velho e positivo reflexo. A célula-tronco de nossa eterna capacidade de resistência, de uma profunda consciência do que constituía nossa identidade, de que lutávamos pelos de baixo, de que sabíamos que sempre era difícil e que necessitava de muito tempo e energia, que custava muitas vidas e liberdades, tudo isso sempre esteve lá no centro estruturante da nossa conduta e da nossa existência. O problema é: é exatamente disso que se trata no momento em que estamos vivendo?
Percebo muita ambigüidade no discurso de muitos de nós, porque, na verdade, em nome desse velho reflexo de resistência, uma das melhores coisas da nossa tradição, o que aparece muitas vezes é mais a busca da proteção de um certo patrimônio, mais eleitoral do que outra coisa. O que as grandes correntes de esquerda já decidiram, mesmo antes de terminar o PED? Que elas não pensam na possibilidade de saída antes de outubro de 2006. Isso é compreensível e muito valioso. Por que não saem? Entre outras coisas, porque lá elas revalidam o mandato de suas figuras públicas. Elas vão colocar fora as figuras públicas que têm? Então, é preciso respeitar essa posição, mas também é preciso lembrar que isso não é um fetiche, que não pode ser examinado. Nós temos várias surpresas recentes, positivas em uma certa medida e discutíveis em outra. O partido, por exemplo, não rachou na dimensão que se poderia imaginar, dada a gravidade dos acontecimentos. O P-SOL andou apenas um pouco e não teve nenhuma grande chegada, durante ou após o PED. Esse é um dado importante. Na história dos partidos de esquerda, os grandes cismas internos se dão quando há grandes razões para que eles aconteçam. Há grandes razões e não houve um grande cisma. Isso nos dá a medida de quão os lençóis freáticos de nossa exigência política e ideológica estão permeados por tantas outras mediações.
Esse é um outro tema importante que precisamos aprofundar: as mediações e os mandatos. O que nós fizemos nos últimos tempos? Mediações, uma atrás da outra. Precisamos eleger nosso companheiro “x” presidente do partido no Estado, o companheiro “y” disputar o primeiro turno e ir para o segundo no PED, depois temos o horizonte das eleições de 2006, antes tínhamos o horizonte de setembro de 2005, e assim por diante. E essas mediações se encontram com o fenômeno dramático do deslocamento do imaginário público, depois de seis meses de guerra total contra nós que acabaram por destruir diversos elementos que compunham nossa identidade. Precisamos nos perguntar seriamente: esse imaginário se deslocou para onde então? Essa pergunta abre uma larga avenida que precisamos percorrer.
O que é mesmo que a população está pensando?Ainda refletindo sobre o tema do deslocamento do imaginário, deveríamos examinar mais a fundo o que pode ter sido alterado no pensamento da população sobre alguns pontos fundamentais. O que as pessoas estão pensando mesmo da política? O que pensam dos partidos e do PT em particular? E, de um modo mais geral: o que estão pensando mesmo da esquerda? Essas não são questões menores.
A imensa maioria do partido opera hoje como se esses elementos ainda fossem o que eram há dois anos. Nenhum “espetáculo” de política em geral foi mais deprimente do que este que estamos vivendo, desde a queda de Collor. Então, se a política em geral já era vista como o lugar da decepção, talvez agora tenha derrapado mais do que nunca para o lugar da enganação e do estelionato. Parece razoável supor que o fracasso da alternativa de esquerda de propor um projeto diferente para o país possa ter feito com que um bom pedaço da população tenha se convencido de que “não tem mais jeito”. E nós, é preciso lembrar, passamos mais de vinte anos dizendo que “tinha jeito sim”.
Então, se é razoável supor isso, também é razoável supor que houve um rebaixamento do valor da política em geral junto aos olhos da população. Quem são os honestos mesmo, do ponto de vista da percepção da população? Nós não somente nos desqualificamos, mas os desqualificados se qualificaram para nos atacar. Só isso já seria suficiente para nos interrogarmos: o ser de esquerda é um diferencial do quê, do ponto de vista do imaginário social?
Além de tudo isso, precisamos nos perguntar também: qual será o centro temático da próxima eleição, sobretudo a presidencial? Até onde os esforços sérios de delineamento programático recuperarão credibilidade? O que intuo é que eles perderão completamente a nitidez e o interesse, porque o citado bombardeio de saturação colocará de lado o tema dos elos programáticos. Pois essa questão não é um tema da telenovela da política. Para esta, o que interessa é quem é o bandido e quem é o mocinho. Esse problema agrega dificuldades para nós, pois a reconstrução pós-PED do PT teria que passar, necessariamente, por um mínimo de repactuação programática. E quais são as chances reais disso ocorrer?
Outro ponto sobre o qual precisamos refletir está relacionado ao comportamento de lideranças como a do presidente Lula e do ex-ministro José Dirceu. Olhando para o discurso de Lula, cabe perguntar: o que pode, ali, reentusiasmar a população? Na imensa maioria das vezes, é um discurso defensivo, evasivo e, quando vai para a positividade, o faz para defender a política econômica. Há algo de falso na fala e na ação presidencial. Se ele não preserva a simbologia que acumulou historicamente, está, na prática, desconstituindo essa simbologia. Esse também não parece ser um tema menor.
No caso de José Dirceu, sua luta de resistência pela defesa do mandato deu-se no terreno da existência ou não de provas contra ele. Acabou saindo bem melhor do que estava no início do processo no Conselho de Ética. Mas, do ponto de vista do PT, o custo da operação Dirceu é a presença de mais um elemento que freia o processo de investigação interna e de responsabilização dentro do partido. Até agora, o que temos é um processo superficial de investigação que nos deixa devedores aos olhos da população. As pessoas percebem isso.
Afinal de contas, se os nossos símbolos, no contexto do imaginário da população, perderam o seu significado original, eles tornaram-se outra coisa. Se é assim, para a população, a estrela já significa outra coisa e Lula representa outra coisa do que aquilo que representava. Então, temos que lidar com uma dissociação esquizofrenizante entre o que nossos símbolos significavam antes e o que significam agora. É neste quadro que enfrentaremos o desafio do ano eleitoral. Um desafio que pressupõe uma racionalidade programática que se contrapõe ao que vamos chamar aqui de “interferentes hegemônicos”. A racionalidade programática exige que o partido apresente uma proposta de governo. Os interferentes hegemônicos são os elementos que determinam o olhar da população dirigido a nós: são os temas das CPIs, é o valerioduto, o caixa-dois. Qual a relação?
A relação entre esses dois registros consiste em reconhecer que o discurso da racionalidade programática será engolido pelo tema dos interferentes hegemônicos. Para simplificar, o que vai ocorrer é que nós vamos querer falar de programa e eles vão falar do mensalão. Simplesmente isso. É exatamente aqui que estamos. E é justamente para enfrentar esse quadro que propomos aqui uma reflexão sobre algumas perguntas que nos parecem fundamentais, as quais reunimos em dois grupos. O primeiro: Qual o papel da verdade? Qual o papel da estratégia? Qual o papel da fala de nossos dirigentes? E o segundo: O que as pessoas estão pensando da política? O que estão pensando dos partidos? E o que estão pensando da esquerda em geral? Todas essas perguntas estão diretamente vinculadas ao tema do imaginário que serve como fio condutor deste texto.
Se aceitamos como reais os indícios que viemos apontando até aqui – indícios de um profundo deslocamento do imaginário social -, a nossa relação com o tema da verdade (tomada aqui não num sentido messiânico, mas do ponto de vista da credibilidade e da legitimidade de nossas palavras) é tal que praticamente todas as coisas que falamos não são claras aos olhos da população. E não são claras não apenas no terreno das CPIs, mas também no que diz respeito à política econômica, à questão dos transgênicos, ao tema dos desaparecidos durante a ditadura militar, apenas para citar alguns exemplos. As pessoas se sentiam amparadas porque acreditavam na palavra do partido e de seus dirigentes. É isso que estava na base de uma relação de confiança construída ao longo de muitos anos. Se a nossa palavra não é mais clara, essa relação de confiança desmorona. Ou não é assim?
Sobre esse tema, vale a pena pensar nas palavras do prêmio Nobel de Literatura de 2005, o dramaturgo inglês Harold Pinter. Ao falar sobre a relação entre política e verdade ele disse:
“A maioria dos políticos, considerando os elementos de que dispomos, não se interessa pela verdade mas pelo poder e pela manutenção desse poder. Para manter esse poder é essencial que as pessoas sejam mantidas na ignorância, que elas vivam na ignorância da verdade, inclusive a verdade sobre suas próprias vidas. O que nos envolve, portanto, é um vasto tecido de mentiras, das quais nos alimentamos. A verdade é algo totalmente diferente.”
A questão fundamental que temos que responder aqui é: qual a importância de levar isso a sério do ponto de vista da exigência que temos de reconstruir nossos símbolos, nosso programa e nosso horizonte estratégico?
Considerando tudo o que já foi dito até aqui há uma constatação que se impõe. Se a crise é tal que ameaça nossa sobrevivência política como partido de esquerda e se ela mudou radicalmente o modo como somos vistos pela população, estamos autorizados a seguir mantendo uma relação instrumental com o tema da verdade, adiando indefinidamente o debate sobre nossos traumas mais profundos, tudo isso em nome da próxima urgência eleitoral? Se há acordo em que perdemos nosso horizonte estratégico, é razoável não falarmos sobre essa perda, como se isso fosse algo menor? A resposta para as duas questões é uma só: NÃO! Falar de estratégia não é falar de um fetiche, mas sim de um horizonte que deve nos orientar na definição de nossa tática. Se não temos mais um horizonte estratégico, qual é mesmo o nosso projeto de país e de sociedade?
Aqui entramos diretamente na questão do papel da fala, do caráter pedagógico da fala, algo muito caro à tradição da esquerda. Se não falamos sobre essas questões com nossa militância e com a sociedade, como é mesmo que vamos sair do estágio em que nos encontramos? Continuar alimentando a série de déficits que construímos em nossa história recente nos ajudará em que exatamente? Pode ajudar aqui e ali a reeleger um mandato, a manter uma certa estrutura de cargos, mas certamente não ajudará a enfrentar as raízes mais profundas da crise que vivemos. Ou seja, a escolha que temos que fazer é clara: ou temos a ousadia de falar sobre o que não está sendo falado (e de tirar as devidas conseqüências dessa fala), ou seguimos em frente varrendo a sujeira para debaixo do tapete e alimentando a esperança de que ninguém perceberá.
E se a escolha é pela fala e não pela faxina de resultados, então devemos nos perguntar, antes de tudo, por que é mesmo que falamos e escrevemos e para quem o fazemos. Os melhores dirigentes sempre tiveram essa obrigação. Precisam falar e escrever, elaborar diagnósticos e propostas de ação. Pode parecer uma obviedade, mas tudo indica que vivemos dias em que as obviedades devem ser incessantemente lembradas. Dentro desse espírito, é preciso lembrar que toda proposta de ação implica uma certa seletividade da realidade, um conjunto de mediações que dialoguem com essa realidade e com nossa força. O problema é que, sem um horizonte estratégico, essas mediações acabam orientadas apenas por interesses e motivações de curtíssimo prazo. E é assim que vemos hoje dentro do partido, muitos dirigentes dizendo que não é possível falar sobre certas coisas, neste momento, pois isso retiraria o entusiasmo da militância para a próxima disputa eleitoral.
Cabe perguntar então: podemos retirar o que não existe? Ou devemos acreditar que a nossa militância está, de fato, entusiasmada com o rumo das coisas? A participação no PED foi uma demonstração de vigor e entusiasmo sim, mas uma demonstração alimentada, em boa medida, pela indignação e pela vontade de mudar os rumos do partido. Foi, acima de tudo, a expressão de uma vontade de sobrevivência, de defesa de um patrimônio político construído duramente por mais de duas décadas. Extrair dessa vontade otimismos exagerados e diagnósticos falsos é o caminho mais seguro para enfraquecê-la e desrespeitá-la. Afinal de contas, nossa militância enrolou as bandeiras ou não? Tem vergonha de sair às ruas com bandeiras e camisetas ou não? Os nossos símbolos saíram dos carros e das janelas ou não? Em resumo: estamos envergonhados ou não?
Sem encarar a realidade da nossa própria vergonha, como é mesmo que vamos voltar a falar com a população? Relembremos o segundo grupo de perguntas que listamos acima: O que as pessoas estão pensando da política? O que estão pensando dos partidos? E o que estão pensando da esquerda em geral? O que estão pensando do PT? E levando em conta o que foi dito até aqui, cabe perguntar: o que nós estamos pensando sobre isso? Neste texto, estamos apresentando mais perguntas do que respostas. E isso é assim porque acreditamos que essas questões interrogam, não só nosso presente e nosso futuro, mas também nossa memória. E é ela que nos informa sobre por que é mesmo que fazemos política e fazemos dela um modo de vida. Há quem ache que tais questões são inconvenientes, principalmente se levantadas na véspera de uma disputa eleitoral. Para estes, ficam duas perguntas finais, uma de caráter programático e outra de cunho pragmático: O que é mesmo que estamos disputando? E qual é mesmo o prognóstico eleitoral para 2006?
Porto Alegre, 13 de dezembro de 2005

Flavio Koutzii é deputado estadual (PT-RS), membro do Diretório Nacional do PT e conselheiro da Fundação Perseu Abramo

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