sábado, 18 de abril de 2009

A ponta do iceberg

Os escândalos administrativos que envolvem a Câmara e o Senado estão longe de constituir fato isolado no âmbito do Estado brasileiro. São apenas a ponta de um imenso iceberg. Reproduzem-se nos demais poderes e nas demais esferas da federação.

O Legislativo, sendo o poder mais aberto, é o mais facilmente flagrável. Não se pense, porém, que tem o monopólio da infração. Basta lembrar o escândalo ainda recente, dos cartões corporativos, envolvendo Planalto e Ministérios.

Como se recorda, era permitido (ainda é?) a seus titulares - ministros e assessores mais graduados - sacar dinheiro em espécie nos caixas eletrônicos, o que anulava sua principal função, que era a de facilitar o controle de gastos, via extratos mensais, procedimento adotado com êxito na iniciativa privada.

Os usuários governistas, no entanto, faziam coisa diversa: além de garantir renda suplementar, custeavam seu lazer. Registraram-se casos prosaicos, como o da ministra que pagava jantares a seus amigos e do ministro que comprou tapioca com o cartão.

Foram casos que valeram menos pelo que custaram e mais pelo que simbolizaram como confusão entre o público e o privado. Essa confusão, como é óbvio, gera despesas bem maiores, como o caso do telefone celular cedido pelo senador Tião Viana (PT-AC) à sua filha, que, em pouco mais de suas semanas de férias no México, produziu uma conta de quase R$ 15 mil.

Ou ainda o caso do deputado Fábio Faria (PMN-RN), que usou seu crédito de bilhetes aéreos para convidar artistas para participar de um empreendimento comercial particular – o carnaval fora de época, em Natal - e para viajar com a namorada.

Soube-se também que é praxe e perfeitamente legal, na Câmara e no Senado, usar essa verba para fretar jatinhos (caso, entre outros, do senador tucano Tasso Jereissati) ou, mesmo para os que já não integram o Legislativo – caso de três ministros do governo Lula – a reverterem em crédito para uso particular.

Nada disso surgiu agora e nada indica, passada a onda de denúncias, que irá de fato cessar. O uso da máquina pública para fins privados está na memória muscular do país. Pero Vaz Caminha, escrivão da frota de Pedro Alvarez Cabral, concluía sua carta ao rei pedindo um emprego na corte para o sobrinho, que estava na África. Não teve qualquer constrangimento em profanar um documento histórico – a descoberta de um continente - com um pedido de tal monta. Nem consta que o rei o tenha estranhado.

Na corte, vale tudo. O que justifica que o Palácio do Planalto tenha mais servidores em sua estrutura administrativa que a Casa Branca? Os EUA, que têm uma população que é quase o dobro da nossa, um território maior e lidam com demandas geopolíticas mundiais, empregam, em seu centro de poder, 1.800 pessoas.

O Planalto emprega quase o dobro: 3.431 funcionários, entre concursados e terceirizados. No fim do governo FHC, eram 2.133, número ainda assim excessivo. O aumento foi de 57%.

Se isso ocorre em locais de intensa visibilidade, o que dizer de outros fora do olhar da mídia? Basta examinar o que ocorre nas câmaras e prefeituras municipais, país afora. Em Montes Claros, por exemplo, município mineiro, com 350 mil habitantes.

Lá, cada vereador, entre salário direto (R$ 7.430) e verba indenizatória, recebe, segundo o jornal O Estado de Minas, R$ 20.630. O que justifica uma verba indenizatória de tal porte? Bilhetes aéreos, auxílio-gasolina, franquia telefônica, auxílio-paletó?

Em São Paulo, a Assembléia Legislativa possui 67 diretorias. E os deputados que integram a mesa diretora mantêm os privilégios da função quando a deixam: dois gabinetes e o mesmo número de assessores. São exemplos aleatórios, extraídos do varejo, que encontram similares em todo o corpo legislativo, judiciário e executivo da federação, e formam um atacado colossal.

Expressam uma visão tortuosa da coisa pública, que remonta aos tempos da Colônia. E demonstram uma coisa simples e inapelável: a república, entre nós, ainda está por se proclamar de fato. Só o será quando se promover uma reforma política pra valer. Quando (e se) isso ocorrer, será possível um saneamento administrativo efetivo e estruturador.

Enquanto isso, o país continuará enxugando gelo, submetido a espasmos cíclicos de indignação, quando a mídia o coloca diante do varejo profano de seus dirigentes. “Não há nada de novo sob o sol” – o epíteto bíblico do Eclesiastes resume com perfeição o ambiente político-institucional brasileiro.


Ruy Fabiano é jornalista

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