sábado, 29 de novembro de 2008

A persistência do conservadorismo político

A política é um esforço tenaz e enérgico para atravessar grossas vigas de madeira. Tal esforço exige, a um tempo, paixão e senso de proporções. É perfeitamente exato dizer – e toda a experiência histórica o confirma – que não se teria jamais atingido o possível, se não se houvesse tentado o impossível. (Max Weber)



“Se quisermos que tudo fique como está é preciso que tudo mude”, escreveu Giuseppe Tomai di Lampedusa. (1974: 42) A história brasileira confirma a máxima lampedusiana e revelam o amálgama entre o elemento conservador e o liberal; são “revoluções pelo alto” que silenciam ou incorporam, nos limites da ordem política e social liberal-democrática, determinadas demandas dos de baixo.[1] A ascensão dos movimentos sociais pressiona parcela das elites na direção mudancista. Diante da manifestação das massas na cena política, estes setores terminam por se dobrar à realidade e, então, procuram ansiosamente impor limites, integrar e promover a domesticação das forças contestadoras.

A direita raivosa range os dentes e fica à espreita; mas os setores esclarecidos da elite brasileira, à maneira do personagem lampedusiano que encarna a aristocracia economicamente decadente, se molda aos novos ventos e tenta evitar o turbilhão. Se a política da ordem se mostrar inviável, isto é, se a radicalização dos de baixo produzir uma situação que dificulte a estratégia de mudar para que tudo permaneça igual, a solução historicamente adotada pelas classes dominantes consiste na imposição dos seus interesses políticos através de meios autoritários. Observemos os curtos períodos democráticos em nossa história, aliado à própria fragilidade da democracia e os recorrentes períodos de regimes políticos ditatoriais.

A política da ordem depende da integração das forças de esquerda, isto é, que estas se reconheçam no sistema vigente. No passado recente, essa política se traduzia na estratégia pecebista colaboracionista pela revolução nacional e democrática. A derrota do reformismo em 1964 pareceu dar razão aos seus críticos, os que propugnavam por uma estratégia socialista para o Brasil e apontavam os limites do caminho pacífico da revolução brasileira propugnado pelo partidão. A repressão que se seguiu ao golpe militar foi indiferente às divergências na esquerda brasileira, atingindo ferozmente uns e outros. Sem desconsiderar este aspecto, fundamental para compreender a derrota dos revolucionários, é preciso também observar que este período revela o calcanhar de Aquiles da esquerda brasileira: a distância entre a retórica socialista e a prática reformista; entre as grandes estratégias revolucionárias traduzidas na idéia de partido ou vanguarda armada, mas profundamente incapaz de se enraizar nas massas.

O surgimento do Partido dos Trabalhadores expressa a tentativa de superar o duplo dilema: a política populista que pressupõe a condução da massa passiva ou mobilizável segundo critérios e controle da liderança; e, o vanguardismo tradicionalmente vinculado à herança marxista-leninista. Tratava-se de ultrapassar a concepção política burguesa eleitoralista, fundada numa relação paternalista e/ou tuteladora; e, por outro lado, possibilitar a ultrapassagem da política da esquerda fundada no mito do partido que expressaria os interesses da classe e a razão revolucionária.

O Partido dos Trabalhadores surge como um paradoxo que oscila entre a obediência e a contestação da ordem. Prisioneiro da legislação, tudo faz para se legalizar e, neste sentido, ser aceito pela ordem burguesa.[2] Simultaneamente, potencializa o discurso e a prática contestatórios amparados em forças sociais populares que lhe dão sustentação. Seu crescimento eleitoral indica não apenas transformações substanciais da sua linha política, uma inflexão na direção da integração à ordem política em seu conteúdo liberal-burguês, mas também se dá numa fase de descenso do movimento operário e popular.

Ao mesmo tempo, ocorre o agigantamento da máquina partidária e a sua crescente burocratização. Os fatores do crescimento eleitoral também influenciam os setores radicalizados. Todos passam a ter interesses materiais a defender e os anseios revolucionários têm que ser mediados e/ou reduzidos à retórica. Economicamente, a vida de centenas e milhares de pessoas fica indissoluvelmente ligada à existência da organização partidária: o emprego, a sobrevivência dos militantes e das suas famílias passam a depender dela. Neste processo, a organização deixa de ser um meio e transforma-se no fim.

Esse fenômeno não é específico do Partido dos Trabalhadores, mas é algo observável na trajetória da social-democracia européia e nos partidos operários de massa. Como ressaltou Robert Michels:

“Quanto mais necessita de tranqüilidade mais se atrofiam suas garras revolucionárias e ele se transforma num partido ostensivamente conservador que continua (o efeito sobrevivendo à causa) a utilizar a terminologia revolucionária, mas na prática não desempenhará outro papel senão o de um partido de oposição constitucional”. (229)

A tendência conservadora dos partidos políticos de origens operárias e de massas também foi analisada por outros olhares argutos.[3] Tomemos mais um exemplo ilustrativo:

“A social-democracia está hoje evidentemente a ponto de converter-se em uma poderosa máquina burocrática dando ocupação a um exército de empregados, a um estado dentro do estado. (...) A questão é quem tem de temer mais tudo isto a longo prazo, a social-democracia ou a sociedade burguesa. Eu, pessoalmente, penso que é a primeira (...), isto é: aqueles elementos que nela são portadores de ideologias revolucionárias. Já hoje todo mundo conhece a existência de certas oposições dentro da burocracia social-democrata. E quando possam desenvolver-se totalmente as oposições entre os interesses materiais de sustento dos políticos profissionais, por um lado, e a ideologia revolucionária , de outro (...) Só então correrá a virulência revolucionária verdadeiramente sérios perigos e será mostrado que por este caminho a longo prazo não será a social-democracia quem conquistará as cidades ou o estado mas, ao contrário, será o estado quem conquista o partido. (Muito bem!) E não vejo por que a sociedade burguesa como tal há de ver um perigo nisto”.[4]

As palavras de Max Weber expressam a realidade social-democrata nas primeiras décadas do século XX e revelam-se atuais. Comparativamente ao PT, e resguardadas as circunstâncias e especificidades históricas, a impressão é de déjà vu.

O Partido dos Trabalhadores que, finalmente, conquistou o governo federal contradiz os seus princípios e valores dos primeiros anos, é outro partido. Tanto os indivíduos quanto as instituições se transformam com o tempo. Porém, o caráter resultante dessa metamorfose não é determinado a priori, mas depende das opções feitas. As transformações das instituições políticas estão vinculadas às decisões políticas majoritárias ou a incapacidade da minoria em impor outro caminho ou mesmo de conciliar para manter o espaço conquistado.

A tendência ao conservadorismo, à transformação da organização de meio em fim, influi sobre o conjunto partidário. A militância profissionaliza-se, o partido adota meios e valores criticados em suas origens e até mesmo o discurso ético é abandonado ou “esquecido” em nome do imperativo pragmático. A crescente dependência econômica dos recursos provenientes do Estado fortalece aproxima-o das forças políticas conservadoras (o partido começa a justificar alianças políticas que antes seria inaceitáveis e consideradas espúrias); fortalecem-se os vínculos com os interesses da ordem.

Esta dinâmica atinge o partido em seu conjunto. Mesmo seus setores considerados à esquerda resvalam no conservadorismo político: atenuam a crítica interna, adaptam-se à luta política internista sem colocar em risco seus interesses políticos e materiais, adiam interminavelmente a ruptura, voltam-se romanticamente para um passado mitológico – algo como o retorno ao “PT das origens” – e elaboram discursos justificatórios da permanência no interior do partido.

O advento do governo petista sugeriu aos mais otimistas e esperançosos que, finalmente, entrávamos numa fase que possibilitaria a ruptura com o padrão conservador. A ascensão do Companheiro Lula à presidência foi vista como resultante e tradução dos anseios populares por mudanças. Em política, erros de análise geram ilusões e frustrações que podem ser irreversíveis. Não demorou muito e logo surgiram os perplexos e desiludidos.[5] A recorrência à política conservadora, agora sustentada por um discurso que advoga, de maneira determinista, os imperativos da política econômica e a necessidade de garantir a governabilidade, produz, é claro, a sua oposição à esquerda.

Pode parecer um paradoxo que forças da esquerda oriundas do partido lulista passem a combater o governo. As divergências demonstram a fragilidade das análises maniqueístas e o quanto a realidade política é complexa – para além de raciocínios dicotômicos. A esquerda têm as suas contradições, e se alimenta destas. A ascensão do PT e seus aliados ao governo federal acirram as diferenças e produz os novos radicais.

A nova fase política inaugurada com a vitória de Lula à presidência da república contribui para delimitar os campos. Os desiludidos tendem a ampliar o coro dos descontentes e a crítica à esquerda opera como um centro de atração, repetindo um ciclo político observável na história dos partidos operários: a tendência à conservação é tensionada pela tendência à fidelidade aos princípios originais. Os novos radicais, com erros e acertos, cumprem um papel fundamental na construção de novos caminhos opostos ao servilismo dos que usufruem as prebendas governamentais, às vezes, em flagrante contradição com a própria trajetória política. Os hereges expressam a consciência crítica e o mal-estar dos novos conservadores que imaginam poder congelar o tempo e obstruir o florir das primaveras.

Muda o discurso, refaz-se o arco de alianças, e os inimigos de ontem substituem os companheiros dos primeiros tempos que teimaram em erguer a bandeira da contestação da ordem. O governo Lula repete o padrão conservador presente na história brasileira. Vez ou outra, intelectuais lúcidos como Manoel Bonfim erguem-se em meio aos deslumbrados pelo poder para denunciar a persistência da lógica lampedusiana que metamorfoseia contestadores de ontem em conservadores de hoje.[6]

O conservadorismo político nem sempre se assume. No Brasil a direita é envergonhada e a esquerda termina por se confundir com esta ao se identificar com o centro pantanoso, oportunista e fisiológico; esta simbiose aglutina interesses específicos relativos às demandas regionais e ao usufruto do aparato do Estado e aprofunda o descrédito em relação à política e os políticos. O governo de plantão repete a lógica de governar pela distribuição de prebendas públicas, em nome da necessidade de manter a base aliada, isto é, do realismo e pragmatismo político. Os deslumbrados, à maneira das antigas ordens religiosas, assimilam as necessidades profanas e elaboram o discurso legitimador desta política pusilânime e conservadora. Repetem os que hoje se dizem na oposição.

A permanência do conservadorismo conta com o concurso dos partidos e lideranças originados no campo popular integrados ao aparato do Estado. A política do governo petista expressa o desenlace de uma dinâmica cujo ponto de inflexão é marcado por dois momentos: o V Encontro Nacional do PT, realizado em finais de 1987; e, a derrota de Lula na disputa com Collor, em 1989. Desde então, o PT e seu eterno candidato se prepararam para assumir o governo e, neste caminho, não titubearam em levar às últimas conseqüências a máxima de que os fins justificam os meios. Mas para isso o PT e as suas lideranças máximas tiveram que borrar o próprio passado.

O PT preparou-se para governar, e a elite convenceu-se neste processo de que não havia motivos para grandes sustos. Ocorreu a dupla conversão: do PT à política burguesa e de parcelas dos setores burgueses a ele. Por outro lado, a evolução da sociedade nestes anos legitimou o compromisso conservador. Se nos anos 1980 o PT atemorizava amplos setores sociais com o seu radicalismo, nos anos 1990 sua política perde acentuadamente a conotação radical – reservada na linguagem da grande imprensa aos setores minoritários em seu interior[7] – e isto também contribui para a aceitação de grandes setores populacionais, inclusive das classes populares, ideologicamente conservadores. O PT vitorioso nas últimas eleições presidenciais expressa o pacto social pela ordem e estabilidade, encoberto pela retórica mudancista que, inclusive, responde aos anseios de determinados setores organizados.

Lula e o PT que emergem deste processo expressam o positivismo – e, neste sentido, sua política não é incoerente com a campanha eleitoral.[8] Os desalentados de última hora parecem não ter percebido a evolução do lulismo e do petismo. Por outro lado, é compreensível que os indivíduos enfatizem os seus desejos, em detrimento da realidade.

O realismo político do governo petista se traduz num pragmatismo medíocre. A julgar pelo discurso petista atual, não há alternativas, e o próprio Lula seria prisioneiro da contradição entre as boas intenções e as condições para implementá-las. Só lhe resta, então, se preparar pragmaticamente para a reeleição. Se tomarmos a epígrafe como referência, podemos concluir que nem mesmo um liberal lúcido concordaria com esta concepção determinista da política. É o padrão conservador atualizado.




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[1] Ver as reflexões publicadas neste espaço: “O PT no governo: um outro Brasil é possível?” REA, nº 2, julho de 2001; e, “Entre a razão e a emoção”. REA, nº 20, janeiro de 2003.

[2] Esta é uma contradição verificável não apenas na necessidade do PT aceitar determinadas normas para obter a sua legalização, mas presente nos movimentos sociais do período, os quais oscilam entre a crítica ao Estado – em nome da autonomia – e a necessidade de ter este como interlocutor. Por outro lado, os elementos que caracterizam a “novidade” do PT e dos movimentos sociais desta época contrastam com os “velhos” valores que permeiam-nos. O novo não é tão novo quanto parece.

[3] Ver, entre outros, ABENDROTH (1977) e PRZEWORSKI (1989).

[4] “Atas da Assembléia Geral de 1907”, Leipzig, 1908, p. 296. Apud Guimarães,1990, op. cit., págs. 78-79.

[5] Remetemos o leitor à reflexão “Os perplexos, as ilusões perdidas e os novos radicais”, publicada na REA, REA, nº 33, fevereiro de 2004.

[6] Nesse sentido, as palavras seguintes sintetizam bem esta dinâmica integracionista e, por outro lado, mostra que o conservadorismo político deita raízes em nossa formação social: “Parece um paradoxo, tão estranho é: pouco importa a luta, os conflitos, levantes e revoluções que tenham trazido o indivíduo ao poder, uma vez ali, "sentindo as responsabilidades do governo”, o verdadeiro homem se revela; tudo parou, o revolucionário de ontem desaparece, as gentes ponderadas e graves podem aproximar-se – ficarão encantadas de verificar que mundos de sensatez nele se encerram ali; ávida vai continuar tal qual era; “o período de agitação acabou, as responsabilidades, etc., impõem o dever de não criar dificuldades novas”. Quer dizer: todo o esforço agora é para impedir que se dê execução às reformas em nome das quais se fez a revolução, e para defender os interesses das classes conservadoras, a fim de acalmá-las.” (BONFIM, 2000: 735)

[7] Ver: “A Revista Veja, o PT e as Tendências”. REA, nº 18,

“Trabalho e Política - Ruptura e tradição na organização política dos trabalhadores (Uma análise das origens e evolução da Tendência Articulação – PT)”. REA, nº 22, março de 2003; “Os amigos do rei, guardiões da ordem e os radicais”, REA, nº 26, julho de 2003; e,

[8]. Ver: “Lula: O Positivista”. REA, nº 16, setembro de 2002; e, “Crescimento eleitoral e positivismo petista”. REA, nº 41, outubro de 2004.

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