sexta-feira, 26 de março de 2010

Fio tênue

A midiatização da política está levando não apenas a que as qualidades de um candidato sejam medidas mais pela sua capacidade de comunicação com o eleitor do que por suas propostas.

A política vivenciada como espetáculo faz com que um presidente como Lula transforme-se em um eterno candidato, mesmo quando já não pode mais se candidatar.

Se não sai dos palanques, se sua prioridade do último ano de mandato é eleger sua sucessora, a agenda governamental transforma-se em uma maratona de inaugurações, mesmo que as obras estejam inacabadas.

Essa maneira de fazer política exclui o debate, afasta também a possibilidade de entendimentos com adversários para políticas de Estado.

A política transforma-se em uma permanente disputa corpo a corpo, "nós contra eles", num espírito de pelada que não contribui para o desenvolvimento da cidadania.

O problema é que políticos como Lula querem tornar o que é eventual em permanente, negando a validade de uma das pilastras da democracia, a alternância de poder.

E ele não se contenta com pouco. Tem uma popularidade que causa inveja aos políticos de todas as partes do mundo, mas quer a unanimidade.

Quando outro dia mais uma vez queixou-se da imprensa, ele simplesmente disse que os jornalistas que o criticam deveriam olhar as pesquisas de opinião para constatarem que estão indo de encontro à opinião de 83% da população brasileira.

Este é um raciocínio perigoso para um chefe de governo que se diz um democrata convicto. É como se pensar diferente da maioria estivesse proibido, como na prática está proibido na Venezuela, país que segundo Lula tem "democracia até demais".

Ontem, Guillermo Zuloaga, presidente da rede de TV venezuelana de oposição Globovisión, foi impedido de sair do país devido a uma denúncia de um deputado governista que o acusa de ter dado "declarações desrespeitosas e ofensivas contra o chefe de Estado".

A prisão de Zuloaga se soma a do político oposicionista Oswaldo Álvarez Paz, preso após uma entrevista à mesma Globovisión, em que comentava uma investigação realizada na Espanha que liga a Venezuela a grupos que apoiam o narcotráfico, como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), e o grupo separatista basco ETA.

Há nesses constantes embates entre governos, democráticos ou não, com a chamada mídia, questões distintas. Uma é permanente em políticos, seja de que tendência for, que querem ver seus feitos glorificados.

O presidente Lula reclama que a imprensa tem "predileção pela desgraça" e "não quer escrever a coisa certa e escreve a coisa errada". Nesse caso, "escrever a coisa errada" é criticar o governo em vez de elogiá-lo.

Mas essa reclamação "até de notícia boa" não é privilégio de Lula. O governador paulista José Serra tem essa fama entre os jornalistas, e ele veio em socorro a Lula repetir o discurso do presidente contra a imprensa.

Assim como Lula acha que a grande imprensa é dominada por uma conspiração contra seu governo, Serra também acha que a Ptpress domina a imprensa, e ontem se queixou de que não faz reportagens sobre suas realizações e obras.

Lula inaugurou duas mil casas e "não saiu uma linha". Serra inaugurou um centro de reabilitação para doentes mentais, e, segundo ele, ninguém da imprensa ligou.

O próprio presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, vem tendo uma confrontação quase permanente com o canal Fox, de propriedade do magnata da mídia Rupert Murdoch e de tendência conservadora.

Obama acusa a Fox de se dedicar totalmente a atacar seu governo, sem exibir nenhuma reportagem positiva sobre sua gestão.

São reações naturais de políticos que seguem a tradição de não separar notícia da propaganda. Tudo o que os governantes querem que seja publicado é propaganda. O resto é notícia.

Outra questão mais séria é quando os governos tentam controlar a informação, cerceando a liberdade de expressão. O caso da Venezuela é o mais grave entre todos, pois o país ainda não é uma ditadura formalizada e tenta manter uma aparência de democracia.

Enquanto o governo brasileiro se contentar em criticar a "mídia" dia sim outro também, estará tensionando o ambiente democrático do país, e incentivando atitudes mais radicais contra os meios de comunicação por parte de seguidores menos equilibrados, ou daqueles que, dentro do governo, tentam impor limitações à liberdade de imprensa.

Esse é o limite que o governo tem que resguardar, se não consegue respeitar o direito à informação como um valor em si.

Mas as constantes tentativas de "controle social" dos meios de comunicação, surgidas desde o primeiro ano de governo com o Conselho Nacional de Jornalismo, e repetidas em diversas ocasiões desde então, demonstram que Lula é mais do que simplesmente um ranzinza em busca de elogios unânimes.

Ele não entende a liberdade de expressão como um valor democrático, como por exemplo, Thomas Jefferson, autor do seguinte depoimento: "Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última solução".

A necessidade de a imprensa ocupar um lugar antagônico ao governo foi percebida com clareza pelos fundadores dos Estados Unidos, e por isso tornaram a liberdade de imprensa a primeira garantia da Carta de Direitos.

"Sem liberdade de imprensa, sabiam, as outras liberdades desmoronariam. Porque o governo, devido à sua própria natureza, tende à opressão. E o governo, sem um cão de guarda, logo passa a oprimir o povo a que deve servir", explicou o famoso jornalista americano Jack Anderson.

Entre a reclamação dos governantes e a tentativa de controle da informação está o tênue fio que sustenta a democracia.

Merval Pereira

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