sábado, 27 de junho de 2009

O coveiro da CPI da Petrobras escapou da cassação, livrou-se da Justiça e voltou a mandar no Senado


O homem do cafezinho e a mulher da limpeza, o jovem garçom do restaurante e a taquígrafa já aposentada, o segurança novato e o decano dos gráficos, o motorista do ponto de táxi e o motorista do carro oficial, o repórter aprendiz e o colunista oficial ─ todos os minimamente familiarizados com o Senado sabiam, no fim do inverno de 2007, que o presidente Renan Calheiros tinha culpa no cartório. Também sabiam que escaparia do merecidíssimo castigo sem maiores explicações.

Renan continua com culpa no cartório e continua devendo explicações, confirmou a enquete realizada pela coluna para identificar a lista de prioridades dos leitores. Para 264 (34% do total de 768), o atropelador compulsivo da lei e da ética deve começar pelo mistério das notas fiscais fraudadas e das empresas fantasmas. Outros 200 (26%) preferem o milagre da multiplicação dos rebanhos de gado inexistentes. Para 160 (21%), é mais urgente o caso da mesada paga pelo lobista de uma empreiteira a Mônica Veloso, mãe da criança nascida fora do casamento. E 144 (19%) acham que na frente da fila está o preço em dinheiro vivo das vitórias eleitorais em Alagoas.

Em 12 de setembro de 2007, fizeram de conta que não havia pecados a pagar nem explicações a oferecer os 40 pais da pátria que rejeitaram a cassação de Renan (aprovada por 35) e os seis senadores que se abstiveram. ”Achei melhor esperar o fim das investigações”, recitou Aloizio Mercadante, líder da coluna do meio. Na oposição, o senador do PT paulista nunca precisou de provas, nem sequer indícios, para decidir que um adversário inocente era culpado. Nomeado estafeta de Lula, foi à luta para absolver o neocompanheiro Renan por ordem do chefe. Certos atos de covardia exigem mais coragem que demonstrações de bravura em guerras de verdade.

A caminhada para fora do gabinete da presidência durou 139 dias. Começou em 30 de maio, quando a reportagem de capa de VEJA divulgou o teatrão fora-da-lei em que Renan contracena com a jornalista Mônica Veloso e um lobista da Construtora Mendes Júnior. Ao usar o amigo para o pagamento de despesas pessoais, quebrara o decoro parlamentar. Como tal infração justifica a cassação do mandato, a sensatez recomendava que deixasse a presidência para esperar com a discrição possível que a poeira baixasse.

Preferiu ficar onde estava, confiante na cumplicidade corporativista, e transformou o que deveria ser um discurso de explicações numa declaração de guerra aos fatos, à verdade, à sensatez e aos códigos legais. O beija-mão liderado pelo comparsa Romero Jucá no fim do falatório sugeriu-lhe que a impunidade havia chegado. Ainda não, soube nos 100 dias seguintes.

Na edição de 8 de agosto, depois de outra drenagem no pântano, VEJA fez revelações que ampliaram notavelmente o prontuário do réu. Acuado, Renan empreendeu mais uma contra-ofensiva desastrosa. Apresentou ao Conselho de Ética do Senado notas fiscais com marcas evidentes de fraude e entregou documentos sobre uma única transação que apresentavam entre si uma diferença na venda declarada de 511 cabeças de gado — equivalentes a R$ 600 mil, quase um terço do que Renan dizia ter juntado com atividades agropecuárias desde 2003.

Convocados para o exame do papelório, três peritos da Polícia Federal informaram, num parecer de 20 páginas, que as notas fiscais continham uma série de “inconsistências formais”. A principal era a ausência ou a duplicidade do Selo Fiscal de Autenticidade, instrumento destinado ao controle da emissão dos documentos fiscais. Em duas notas, não havia o número do selo. Em outra, o número se referia a uma segunda nota. Algumas estavam sem data, outras exibiam campos rasurados ou haviam sido emitidas fora da ordem cronológica.

Aberrações semelhantes comprometeram também 100 Guias de Trânsito Animal reunidas pelo senador para provar que ganhara R$ 1,9 milhão com o comércio de gado nos quatro anos anteriores. “Várias informações preenchidas nas guias são divergentes daquelas presentes nas notas fiscais, apesar de as datas dos dois documentos serem as mesmas”, constataram os policiais. “E grande parte dos destinatários do gado vendido, cujos nomes constam das GTAs, não coincide com aqueles informados nas notas fiscais de venda apresentadas”.

Segundo os códigos em vigor, Renan Calheiros cometeu crimes contra a ordem tributária suficientes para que fosse punido com dois a cinco anos de prisão e uma multa de bom tamanho. Não houve castigo nenhum. No começo deste ano, virou líder da bancada do PMDB. Com a eleição que devolveu José Sarney ao centro da mesa diretora, Renan tornou-se presidente de fato e voltou a mandar no Senado. No momento, também exerce as funções de coveiro da CPI da Petrobras.
Revista Veja

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