sábado, 4 de março de 2006

Os desatinos das essquerdas

Muitas esquerdas de hoje cometem os mesmos erros históricos de seus antepassados. Com a idéia de que o governo Lula é uma decepção, optam pelo curto caminho de atacá-lo. E esquecem análises de conjuntura e de estrutura: sem Lula e o PT, Chávez, Morales e Kirchner também vão para o brejo.
Flávio Aguiar

Ao contrário do que se pensa no vulgar, a esquerda tem uma longa história no Brasil, e este é um país muito longevo. O país é herdeiro de Portugal, aquele que é a nação mais antiga do mundo moderno, e de fronteiras mais estáveis por mais longo tempo, desde o século XIII, descontados os períodos de ocupação pelos espanhóis e pelos franceses.No arquivo da esquerda brasileira, sem levar em conta os tempos coloniais, podemos listar: a maçonaria vermelha (primeira metade do século XIX), os republicanos e abolicionistas exaltados (segunda metade), os maximalistas (começo do século XX), os anarquistas, até chegarmos à fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922, junto com a Semana de Arte Moderna e, em 24, à revolta do Forte de Copacabana. Ainda há os movimentos camponeses, como o de Canudos. E desse conjunto ainda fazem parte um romancista como Lima Barreto e um pensador como Manuel Bonfim. E lá atrás um militar como José de Abreu Lima, que lutou como Simon Bolívar. Não vamos mencionar os “meramente” progressistas, para não alongar a lista.Buenas, mas tudo isso é muito desconhecido, e o fato é que as esquerdas brasileiras acham que se inventam a cada momento histórico, e que, como um Luís XIV ao contrário, decretam: avant nous, le rien; antes de nós, o nada. E ao lado também, pois nossos companheiros de caminho, que seguem por outras rotas, não passam de vis traidores da causa, e desde sempre.No Brasil republicano, em nível federal, tivemos quatro momentos de movimentação à esquerda, e neles as esquerdas, ao lado de lutas extraordinárias por sua generosidade (provavelmente de origem cristã) incorreu também em equívocos notáveis, motivados por um erro de paralaxe, entre a avaliação de sua posição e a análise da conjuntura política. Antes de prosseguir, explico a expressão, não por acaso: a origem do “erro de paralaxe” está na fotografia, mais diretamente na diferença que existe na leitura da cena fotografada entre a do visor, no olho do fotógrafo, e a da lente, no coração da máquina.Os momentos foram: a Revolução de 30, o segundo governo de Vargas, de 51 a 54, o governo de João Goulart, e a agora o governo de Lula. Examinemos.Na Revolução de 30, Prestes e o Partido Comunista incipiente não tomaram parte. Foi um erro. Prestes foi provavelmente o líder político mais impoluto da história do Brasil. Cometeu erros tremendos, mas jamais em nome de algum proveito pessoal. Na conspiração de 30, recebeu dinheiro para compra de armas na Argentina. Não tomou um único centavo para si. Entregou a grana para o Partido Comunista, em ajuda aos companheiros no exílio, para pagamento de dívidas e outras funções revolucionárias. Um exemplo, para quem andou recebendo carros de presente e achou que podia sair de fininho. Mas a recusa dele e do Partido quanto à participação no movimento de 30 privou este de uma esquerda organizada, ainda que, no contexto, ele fosse popular, libertário, e inovador; e privou as esquerdas de uma participação no movimento mais importante que já houve no Brasil, no sentido de sua modernização. O movimento ficou preso no círculo de giz liberal, as esquerdas ficaram presas no círculo de giz de sua imaginação revolucionária, que andava longe, nessa altura, do “real brasileiro”, o conjunto de circunstâncias da conjuntura e de aspirações das camadas sociais emergentes ( e também das detergentes, as classes dominantes).Ao final do segundo governo de Vargas houve, quanto às esquerdas, um movimento patético. O Partido Comunista, ainda que fora da lei, era o movimento hegemônico de esquerda. Padecia de alianças populistas, em nome da “revolução nacional e burguesa”, que tinha por aliada uma burguesia recalcitrante, não só em fazer uma revolução, mas até em ser uma burguesia digna do nome, achando mais importante manter os anéis em detrimento da independência dos próprios dedos. Mas, além disso, olhando para seu passado, as esquerdas amargavam não só a terrível repressão durante o Estado Novo, como a disputa das massas com a sombra e, pior, a presença de Vargas. Quando a direita começou uma campanha feroz contra o nacionalismo de Vargas, e o trabalhismo, as esquerdas entraram ou simplesmente não se opuseram à cantilena. Foi um desastre. Arrastadas na campanha contra “o ditador”, e contra “o mar de lama”, foram completamente surpreendidas pelos acontecimentos de 24 de agosto de 1954.Até hoje, historiadores de esquerda se deixam levar, graças à dubiedade com que vêem a figura de Vargas, pela versão de que naquele dia houve um “mero” quebra-quebra. Na verdade, pelo menos no Rio de Janeiro e em Porto Alegre houve levantes populares desorganizados. Não havia lideranças de maior alcance; em primeiro lugar, porque o grande líder e sua morte eram o motivo do levante; em segundo lugar, porque as lideranças de esquerda, como as de direita, tinham uma leitura completamente defasada do país em que habitavam. As últimas achavam que resolveriam a crise como na República Velha: um acerto entre cúpulas, e fim de conversa. Não contavam com o fato de que a política de Vargas tinha despertado o detestado monstro: o tal de “o povo”, que saiu às ruas para depredar seus inimigos. Muitas das esquerdas achavam que estavam se livrando de um inimigo histórico, que usurpara o “seu povo”, que o acaudilhava, etc.Muita gente de esquerda saiu à rua, naquele dia, para festejar “a queda” do ex-ditador. Ao receberem a notícia do suicídio, caíam em si, e na melancolia e no absurdo da situação; e ao saber que as multidões saíam às ruas não para comemorar, mas para depredar os partidos e jornais da direita, caíam na real: o país lhes mostrava uma face insuspeitada. Em Porto Alegre houve um momento notável, que seria cômico, se não fosse trágico. A multidão, ao ouvir a Carta-Testamento transmitida pelo rádio, saiu às ruas para depredar tudo, inclusive a sede do Partido Comunista, cujo jornal atacava Getúlio. Naquela circunstância houve a auto-crítica feita em tempo mais relâmpago na história mundial do Partido: militantes foram às manifestações para desvia-las daquela sede, e leva-las para outros objetivos. O resultado de tudo foi penoso: três mortos, centenas de feridos, um paraplégico, um jovem que pulou do segundo andar da rádio Farroupilha, dos Diários Associados, incendiada pela multidão enfurecida, e quebrou a espinha dorsal.Quanto ao governo de João Goulart, o maior problema esteve em seu fim. Em 64 as esquerdas não se comportaram do mesmo modo obtuso; mas cometeram, muitas delas, um grave erro de avaliação do significado do que estava acontecendo. Acharam que estávamos diante de uma quartelada tradicional, cujos efeitos seriam superficiais na vida do país. Líderes governistas, como Brizola e Arraes, tiveram uma análise mais adequada da situação, antevendo o tamanho da caverna sem saída em que entrávamos. Poderíamos continuar a evocação de erros e acertos – pois na resistência as esquerdas sempre tiveram desempenho notável – mas acho que os exemplos evocados são suficientes para ilustrar o que quero por em pauta. Hoje muitas esquerdas estão cometendo alguns dos erros historicamente apontados.Com a idéia de que o governo Lula é uma decepção – o que pode até ser verdade, ainda que não do mesmo modo como a mídia apregoa – optam pelo caminho de que atacá-lo, assim como rir no Reader’s Digest – é o melhor remédio. Esquecem análises de conjuntura e de estrutura, não as produzem, ou se as produzem não as divulgam, não as debatem, enveredando pelo caminho fácil da pauleira no governo e no presidente, e no seu partido, sem levar em conta as conseqüências de suas atitudes, inclusive as reflexas, isto é, sobre si mesmas. Pois acham que serão herdeiras de uma terra virgem, a de um caminho inteiramente novo, recém fundado, com elas, a percorrer, e não de uma terra devastada, aquela que a novel aliança da direita (PFL/PSDB e partidos que acorrerão) irá herdar. Divulgam a idéia inteiramente equivocada de nascença, de que um governo futuro dessa aliança será igual ao do PT, já que este teria, “meramente”, “continuado” o do PSDB. Ivo engano: se a direita retomar o Planalto, a repressão sobre os movimentos sociais será brutal, ainda que disfarçada de modernidades e sem as “maricotas” (máquinas de dar choque) de antanho. As novas “maricotas” serão jurídicas e legais, apoiadas num Congresso pusilânime como este de agora diante dos ditames da direita dominante.Partes dessas esquerdas elogiam (com justiça) Hugo Chávez e Evo Morales, e escarmentam Lula. Mas não conseguem ver que sem Lula no Planalto e sem um PT a apoiá-lo a Sul-América hispânica vai pra o brejo. A Argentina vai ficar na mão, o Paraguai vai ficar sem mão, a Venezuela vai ficar isolada, a linha direita vai se aprofundar na Colômbia, o Uruguai vai ficar emparedado à esquerda e com a direita reforçada, e a Bolívia de Evo Morales simplesmente não se sustentará. Não sabemos ainda o que acontecerá com o Equador, com o Peru, com as Guianas, mas sabemos que Cuba ficará muito mais isolada. E que os Estados Unidos e a Alca comerão a todos. Porque sem Lula não existe o Itamaraty de hoje, e sem o Itamaraty de hoje o Brasil retornará ao de ontem, isto é, o de diplomacia sempre competente, como de costume, mas com a costumeira política de subordinação defensiva, ou de defesa subordinante.Enfim, que as esquerdas escolham seu caminho. Vamos tentar aprender com os erros, ao invés de reitera-los, por outras veredas. E o erro maior, aquele que é a espinha dorsal dos outros, é o do desconhecimento do Brasil, de sua circunstância e sua conjuntura. As esquerdas, como as classes dominantes, parecem olhar por vezes (as classes dominantes quase sempre) o país como um modelo mal realizado de alguma outra coisa com que se sonha, ou se delira. Retomemos aquele momento mágico da história brasileira, em que o Cavaleiro da Esperança podia ter se unido com quem estava a cavalo do movimento que iria transformar o Brasil num país moderno. Esse momento até teve o seu registro. Em 1929 Prestes fez uma viagem secreta a Porto Alegre (ver Hélio Silva, 1926: a grande marcha. Porto Alegre: LP&M, págs. 312 – 318) para avaliar a situação política. Reuniu-se com Osvaldo Aranha e com Vargas, com este no Palácio Piratini. Teria ido a uma sessão de cinema no Cine Guarany (oh!, que lembrança!), na Rua da Praia, em frente à Praça da Alfândega. Estaria com Siqueira Campos e Osvaldo Araújo. No intervalo do filme, apareciam cartazes na tela: Com Getúlio, pelas urnas! (Aplausos). Se as urnas foram roubadas, com Prestes, pelas armas! (Mais aplausos). Consta que Siqueira Campos teria se levantado, apontando o Cavaleiro, consagrado em seguida por mais aplausos. Ouçamos o historiador: “Prestes não tomaria parte na Revolução de 30. O revolucionário de Santo Ângelo amadurecera seu desajustamento, na caminhada rude, até o conflito ideológico que iria marcar a divergência com os antigos companheiros, na reunião de Calle Gallo [em Buenos Aires], que precedeu a última jornada da Siqueira Campos. O dinheiro recebido [por Prestes] foi aplicado no pagamento das dívidas dos emigrados, no repatriamento dos que desejavam voltar. O saldo ele o guardou para sua revolução. Isso mesmo será dito anos mais tarde, numa dramática cena, depondo como réu de deserção, babando sangue pela boca esmurrada por um soldado da Polícia Especial, na sala de sessões do Tribunal de Segurança Nacional”.Respeitemos os motivos, o exemplo, o ethos estóico do nosso Cavaleiro. Mas aprendamos que leituras erradas são possíveis. Especialmente aquelas que, na adesão a modelos de método, terminam por não se valer deles para explicar o Brasil, mas por se valer do Brasil apenas para justificar a adesão. O resultado, em geral, é confuso.
Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.

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