quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Revolução, anestesia e incertezas

Revolução, anestesia e incertezas

O governo egípcio, pela voz do vice-presidente Omar Suleiman, a nova cara da ditadura, está dando por iniciada a transição --e com Mubarak-- ao anunciar a criação de comissões para a reforma da Constituição e até um cronograma para a chegar à democracia.

Se vai funcionar ou não, está por se ver. Na sexta-feira, conforme reportagem desse excelente Samy Adghirni que a Folha despachou para o Cairo, o movimento já dava sinais de cansaço.
Natural: a fila anda (ou a vida continua, escolha a sua frase preferida) e as pessoas têm que continuar sua luta diária para pôr o pão pita na mesa da família.

Não há, pelo menos não no Egito, revolucionários profissionais. Há, sim, anti-revolucionários profissionais, pagos pelo regime, o que complica ainda mais as coisas.

Mesmo assim, nesta terça-feira, a praça Tahrir, uma espécie de QG revolucionário a céu aberto, permanecia lotada. A BBC diz que é a maior manifestação desde o início do movimento.

Ajuda a explicar a tentativa de anestesia, seja qual for a ótica pela qual se olhe. Pelo lado do regime, trata-se, como é óbvio, de ganhar tempo para fazer aumentar o cansaço dos manifestantes e, por extensão, tirar ou reduzir a pressão vinda da rua. Não está funcionando mas é o único movimento possível, fora um banho de sangue.

Pelo lado da parte politicamente estruturada da oposição, para dizer de alguma forma, o que já foi conquistado parece importante embora insuficiente. A desistência de Hosni Mubarak de disputar em setembro mais um mandato e a retirada de seu filho Gamal da lista de eventuais candidatos é o triunfo da revolução, mas em "slow motion".

Depois do ímpeto que alcançaram as manifestações, parece que a rua quer pressionar o "fast forward". A ver.

De parte dos Estados Unidos, as mensagens emitidas são contraditórias. O enviado especial de Obama, Frank Wisner, disse que a transição deveria dar-se com Mubarak. Houve desmentidos posteriores, mas o regime egípcio não os levou em consideração. Afinal, é pouco razoável que o enviado especial de um governo dê palpites pessoais, em vez de oficiais, mais ainda em uma conjuntura volátil como esta e em uma região permanentemente volátil como é o Oriente Médio.

O presidente Barack Obama voltou ao mantra de "transição agora", que é muito simpático, pelo menos para o meu gosto, mas também algo irrealista.

Para quem entregar as chaves do Palácio? A oposição não tem um líder que seja plenamente aceito pelos diferentes grupos e menos ainda pelos jovens que lançaram e continuam liderando os protestos.

A Europa, por sua vez, está completamente tonta, sem saber direito o que fazer, em um momento em que "seu futuro está em jogo", segundo um dos acadêmicos mais ouvidos no continente, Timothy Garton Ash, em artigo para "El País".

Esse catedrático de Estudos Europeus da Universidade de Oxford lembra: "O arco em que se está produzindo a crise árabe, desde o Marrocos até a Jordânia, é o vizinho do lado da Europa. E decênios de migrações fazem com que os jovens árabes que gritam irados nas ruas do Cairo, Túnis e Amã tenham primos em Madri, Paris e Londres".

Pode-se gostar ou não das posições europeia e norte-americana (ou da ausência delas), mas é forçoso reconhecer que o Ocidente está diante do que o jornalista francês Jean-Marie Colombani, ex-chefe de redação do "Monde", chama de "contradição fundamental" suscitada pelos acontecimentos: "De um lado, o tripé autoritarismo-estabilidade-garantia dos equilíbrios internacionais; do outro, liberdade, coerência de valores e incertezas".

Está diante também de algo que o mais famoso colunista norte-americano, Thomas Friedman, confessa na coluna do "New York Times" de terça-feira jamais ter visto em seus 40 anos escrevendo sobre Oriente Médio. Friedman foi correspondente primeiro em Beirute, depois em Jerusalém, périplo que resultou no livro "De Beirute a Jerusalém", indispensável para qualquer um que queira ser jornalista mas também para quem queira entender melhor uma região extremamente complexa.

Esse ineditismo abre, como é óbvio, o espaço para a incerteza apontada por Colombani. Mas, já que as certezas oferecidas pelos autoritarismos estão ruindo, viva a incerteza.

Afinal, como escreveu nesta terça-feira para "El País" o filósofo francês André Glucksmann: "Jamais deve-se lamentar a queda de um tirano".

Quanto ao ritmo da transição, cito de novo Glucksmann: "Levemos em conta que, no Egito, há cerca de 40% de mortos de fome e uns 30% de analfabetos. Isso faz com que a democracia seja difícil e frágil, mas não impossível, porque, caso contrário, os parisienses não teriam jamais tomado a Bastilha".

Bingo.


Clóvis Rossi

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