segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

GASSET E AS MASSAS

GASSET E AS MASSAS


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 3 de dezembro de 1977

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Nem este volume nem eu somos políticos. O assunto que aqui se trata é prévio à política e pertence a seu subsolo. A missão do chamado "intelectual" é, em certo modo, oposta à do político. A obra intelectual aspira a esclarecer as coisas, enquanto a do político, pelo contrário, consiste em confundi-las. Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil, ambas com efeito são formas de hemiplegia moral. Há um fato que, para bem ou para mal, é o mais importante na vida pública européia. É o advento das massas ao pleno poderio social. Como as massas, por definição, não devem nem podem dirigir a sua própria existência e menos reger a sociedade, quer dizer-se que a Europa sofre agora a mais grave crise que a povos, nações, culturas cabe padecer. Chama-se esta crise "rebelião das massas".
Para compreender este formidável fato convém evitar um significado exclusivo ou primariamente político. A vida pública não é apenas política, mas, ao mesmo tempo, e ainda antes, intelectual, moral, religiosa. Compreende todos os usos coletivos e inclui o modo de vestir e o de gozar.
Visualmente denomino este fato da aglomeração, do "cheio". As cidades, casas, praias, hotéis, trens estão cheios. Começa a existir um problema —encontrar lugar. Mas o que nos surpreende tanto? As cidades não foram feitas para abrigar grandes populações, os trens não foram construídos para transportar grandes contigentes? Os componentes desta multidão não surgiram do nada. Os indivíduos que a integram preexistiam, mas de forma diferente, repartidos pelo mundo em pequenos grupos. Se antes a multidão existia, passava inadvertidamente, ocupava o fundo do cenário social, hoje adiantou-se, está no proscênio, é o personagem principal.
A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois fatores: minorias e massas. As minorias são indivíduos especialmente qualificados. Massa são aqueles sem qualificação especial. Não se confunda massa com "massa operária". Massa é o homem médio —deste modo o que era quantidade vira qualidade. Esta divisão decorre de outra mais radical sobre a humanidade: temos a classe de criaturas que exigem muito de si e acumulam sobre si exigências crescentes e a classe das que não exigem de si nada especial. A rigor dentro de cada classe social há massa e minoria autêntica. Mesmo nos meios intelectuais. Repilo toda interpretação que não descubra a significação positiva oculta sob o atual império das massas. Todo destino é dramático e trágico em sua profunda dimensão. Para onde nos leva a massa? É um mal absoluto ou um bem possível?
A meu juízo quem não entende esta curiosa situação das massas não pode compreender nada do que hoje começa a acontecer no mundo. A soberania do indivíduo genérico —meta da democracia— passou de ideal jurídico a um estágio psicológico.
Quando algo que foi ideal se faz ingrediente do cotidiano, inexoravelmente, deixa de ser ideal. A generosa inspiração democrática pretendia tirar as almas humanas da servidão interna. Queria-se que o homem médio fosse senhor. Então, não se estranhe que ele agora atue por si, que reclame todos os direitos e prazeres, que imponha, decidido, sua vontade. O nível médio de hoje acha-se onde, antes, só tocavam as aristocracias. A vida humana, na totalidade, ascendeu —o soldado de hoje tem muito do capitão de ontem.
Não ressalto que a física de Einstein seja mais baixa do que a física de Newton, mas que o homem Einstein é capaz de maior exatidão e liberdade de espírito que o homem Newton.
As minorias idealistas e progressistas supõem que o desejado por elas inexoravelmente se realizará. Protegidos por esta certeza soltaram leme da História, deixaram de estar alerta, perderam a agilidade e a eficácia. A vida se lhes escapou das mãos, ficou insubmissa. Certas de que o mundo irá em linha reta retraem sua inquietude sobre o porvir e acomodam-se num presente definitivo. Não estranhe a ninguém que o mundo pareça hoje vazio de projetos, antecipações, ideais. A deserção das minorias dirigentes acha-se sempre no reverso da rebeldia das massas. A natureza está sempre aí, sustenta-se a si mesma. Mas a civilização não está aí, não se sustenta a si mesma. Se querem aproveitar-se das vantagens da civilização é preciso preocupar-se em sustentar a civilização.



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José Ortega y Gasset (1883-1955), ensaísta e filósofo espanhol, de origem aristocrática. Foi também ativo jornalista, editor e político. Chefiou a oposição intelectual republicana na ditadura de Primo de Rivera (1923-1930). Foi deputado na segunda República espanhola e governador civil de Madri. Com a eclosão da guerra civil exilou-se na Argentina e depois em Portugal. De lá, após a 2ª Guerra Mundial, reaproximou-se gradualmente da Espanha até que, em 1948, voltou definitivamente. A partir de então dedicou-se apenas à filosofia, fundando o Instituto de Humanidades. Ortega foi o líder da mais profícua escola filosófica espanhola dos últimos três séculos. Escritor prolífico, sua primeira obra foi "Meditaciones del Quijote" (1914), mas a que lhe deu fama internacional foi "A Rebelião das Massas" (1930). Nela trouxe para a ciência social, o senso trágico do pensamento espanhol: a vida é um naufrágio, não apenas para indivíduos mas para as sociedades e as medidas desesperadas empreendidas para não soçobrarem constituem a cultura humana. A noção da aristocracia do talento perpassa toda a obra de Gasset. O trecho abaixo foi extraído de "A Rebelião das Massas" (ed. Lial, Rio, 1971) em tradução de Herrera Filho.

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