quarta-feira, 16 de março de 2011

Dilma: chance para a democracia?

Dilma: chance para a democracia?


Rubem Barboza Filho - Janeiro 2011




Lula anuncia a possibilidade de voltar em 2014, desmente o corte de recursos do PAC anunciado por Mantega e torna explícito o significado que ele atribui ao governo Dilma: a continuidade de um enredo cuja origem e significado pertencem a ele, Lula, que poderá retornar numa gloriosa carruagem de fogo caso sua sacerdotisa não consiga preservar a integralidade de sua mensagem salvífica. A analogia com uma perspectiva religiosa ou teológica não é casual: é nela que o mundo político moderno encontrou a inspiração para a criação de uma noção de história como sucessão de “tempos dos príncipes”, por oposição à ideia republicana, que vê o fluxo do tempo como a possibilidade de uma narrativa de crescente liberdade e reflexividade.

A história como sucessão de tempos monárquicos alimenta-se da percepção de cada reinado como um “agora eterno”, como um gigantesco instante indiferente ao que vem antes ou ao que vem depois, como um tempo fechado cujo significado é dado pelas essências redentoras e expressivas do rei. O rei é deus in terris, o primeiro motor e o grande ator que reclama o seu reinado como expressão imediata de sua essência, como totalidade emanada de sua vontade, como “história” narrada do seu ponto de vista supremo e absoluto. Portanto, história como “revelação” e expressão de sua natureza redentora, da ideia moral e intelectual que habita o seu interior e dá sentido à vida dos homens e à sociedade. Nessa perspectiva, o fluxo do tempo é visto como a sucessão de reinados, de tempos fechados, de ciclos autorreferidos, dotados de uma qualidade própria, original e irrepetível.

O tempo republicano, ao contrário, supõe a continuidade e a tradição, como a Roma republicana de Cícero, pois se a res publica é de todos, ela é de todas as gerações de romanos que nasceram após a fundação de Roma, e não apenas daquela existente em um determinado momento. A cada geração está atribuída, no caso de Roma, a preservação do sentido da origem, sentido que se transforma em auctoritas, em autorização para a ação comum e o exercício do poder. A Igreja, observa Hannah Arendt, preservou essa noção de tradição, reclamando Cristo como origem, como garantia da ordem religiosa e de sua estabilidade. As revoluções políticas modernas, ao se insurgirem contra a tradição do antigo regime, foram obrigadas a buscar um substitutivo para essa concepção do fluxo do tempo como preservação e extensão de um sentido original. A melhor resposta foi dada pelos Estados Unidos, que celebram sua origem — uma guerra e uma constituição da liberdade — como fontes de significado para todas as gerações subsequentes àquela dos pais fundadores, recriando uma perspectiva republicana do tempo capaz de abrir a possibilidade de cada presente como realização reflexiva ainda mais perfeita dos sonhos e expectativas fundacionais.

Foi esta angulação que Obama mobilizou para superar, ainda na campanha, uma crise potencialmente catastrófica causada pelo seu amigo Jeremiah Wright, um pastor negro que aproveitou as primárias para uma denúncia radical da opressão sofrida pelos índios, pelos negros e pelos descendentes de japoneses, anunciando a vitória de Obama como vingança de todos contra os brancos opressores. Obama não podia aceitar esse significado para a sua candidatura, tanto pela ameaça de fuga dos votos dos brancos quanto por não se ver como instrumento de vingança. Por outro lado, não podia ignorar a denúncia de seu pastor, não só pelo risco de perder o voto dos negros como pelo fato de que Obama conhecia de fato a opressão sofrida pelos negros. Ele afasta a crise e se afirma como liderança efetiva ao pronunciar um dos seus mais célebres discursos, intitulado A more perfect union, frase retirada da introdução à Constituição norte-americana. Ele lembra os homens que pensaram a Constituição e o sentido que lhe deram: a liberdade, a igualdade, a união. Recorda que os pais fundadores deixaram a questão da escravidão para ser resolvida pelos pósteros. E rememora os passos históricos construídos para eliminar, primeiro a escravidão, e depois a segregação. Reconhece a opressão sofrida pelos negros, e conclama a compreensão dos brancos para a revolta de seu pastor. Mas afirma que era a hora de um passo adiante, de um novo estágio nessa narrativa de luta contra a desigualdade e a segregação: a liquidação da ideia de raça, da diferença dada pela cor, e a transfiguração dos Estados Unidos numa sociedade comandada pela ideia da “mais perfeita união”.

Obama descobriu um “lugar” de onde falar, de onde reconstruir uma perspectiva republicana capaz de interpretar, de uma forma superior, o sentido original da sociedade e de descobrir a possibilidade de um passo adiante. Este “lugar” não existe no Brasil. Como entre nós a república não é do povo, mas dos vitoriosos seduzidos pela natureza de reis e príncipes, não há a possibilidade de interpretar a história do país como a tentativa de expansão da própria soberania popular e da autoconsciência do povo. Cada momento de nossa história é segmentado do passado e capturado por um enredo especial que nasce dos vitoriosos, e que faz do povo um personagem obrigado a vestir o figurino exigido para a representação da eficácia desse enredo salvador, único e irrepetível. Essa volúpia da ruptura e do reinício faz de nossa história uma sucessão de “tempos fechados”, de regimes ou governos que se livram do passado por um piparote mental, pela abstração do passivo de problemas e desafios deixados pelo tempo fechado anterior e pela anulação das possibilidades democráticas que poderiam constituir uma tradição nacional progressivamente reflexiva. Dilma é ela mesma uma criatura do enredo concebido por Lula, e só existe como continuidade do tempo monárquico inventado por ele. Por isso a dinâmica de sua campanha reduziu-se a celebrar a natureza e os feitos desse “novo” Brasil, mas sem nenhuma capacidade reflexiva para enfrentar problemas reais, de se pôr como modalidade de autoconsciência do povo e de sua história. Na verdade, a campanha da candidata vitoriosa revelou um dos traços mais preocupantes e característicos desse tempo monárquico-lulista: a ausência de uma teoria efetiva a respeito do Brasil, ou seja, de um modo de interpretação coerente a respeito do país. De um “lugar” de onde se pudesse contemplar a nossa história real, não esta sucessão abstrata de tempos fechados.

Mesmo que nossa história não tenha se desdobrado como narrativa republicana, pelo menos cada “novo tempo” procurava se justificar por uma teoria ampla e modernizante voltada para um futuro que nunca chegava. Pois bem: qual era a grande explicação do Brasil que deu origem ao PT e ao PSDB? A ideia de ruptura, não com o “agora” imediatamente anterior, mas com toda a história “torta” do país. Era preciso romper com a tradição ibérica, com o patrimonialismo, com o predomínio do estado sobre a sociedade, com a prática entreguista e negociadora do PCB, enfim, com todo o passado. Era essa a tônica da produção sociológica da USP — mas não só dela —, que presidiu o encontro de intelectuais de classe média com um movimento sindical em busca de protagonismo e autonomia diante do Estado. O PT nasce deste encontro afirmando sua autonomia, o compromisso com os trabalhadores e com um socialismo depurado das taras do velho comunismo. Ele surge como um ator externo ao processo de transição democrática, recusando-se inclusive a assinar a Constituição de 1988. Se o PT se movimenta entre os “de baixo”, o PSDB é alçado ao poder com a mesma atitude de ruptura, com a ambição de liquidar a Era Vargas e seu pesado encargo de distorções, apostando na estabilidade econômica, na preservação da racionalidade sistêmica, na separação estado-sociedade, na reforma do próprio estado, na organização autônoma da sociedade através de novas formas institucionais, como as organizações não-governamentais.

Sustentado pelo êxito econômico e político do Plano Real, Fernando Henrique tentou traduzir esse diagnóstico produzido, sobretudo, em São Paulo e ainda o aprendizado político do processo de transição. O caminho de Lula e do PT foi menos claro. Para alcançar a presidência, submeteram-se a uma típica operação de marketing, sangrando a cartilha da fundação do partido e lançando uma tranquilizadora carta aos brasileiros. O que restava de autoridade e reflexão no partido foi destroçado no episódio do “mensalão”. De um lado, pela condenação política dos principais líderes do partido e, de outro, pelo êxodo de intelectuais frustrados com o governo e com o próprio PT. O próprio presidente passa a duvidar das suas chances de reeleição. Mas assume a condição de “metamorfose ambulante”, livra-se das velhas teorias — ou de qualquer teoria —, reinventa-se através de políticas para os setores mais pobres da sociedade — bolsa família, aumento do salário mínimo e crédito —, de alianças com setores antes vilipendiados por ele e pelo PT — Sarney é o símbolo dessa nova disposição, assim como Collor —, submete a economia a uma política mais voluntarista e menos “sistêmica”, e traz para dentro do estado todas as organizações e movimentos sociais, como assinala Werneck Vianna. É o seu dedo que toca e salva, através da proteção do estado. Do ponto de vista econômico e social, o segundo governo de Lula é exitoso. Tudo isso sanciona o enredo que ele mesmo cria e desdobra de improviso, por ensaio e erro. E é ele que tudo sustenta, com seu carisma, seu instinto político e suas alianças, sem nenhum competidor, seja dentro ou fora de suas alianças. E o próprio êxito de Lula o afasta do diagnóstico político que fizera nascer o PT: já não se trata de imaginar nada remotamente parecido com o socialismo, mas de incorporar ao capitalismo, a um capitalismo popular, setores até então excluídos do mercado formal de trabalho e de consumo.

Esse enredo não foi premeditado. Mas dizer que ele foi feito sem teoria, sem reflexão prévia, não significa dizer que não existiram “teorias” tentando disputar a condução desse processo. A reflexão de Mangabeira Unger, no segundo mandato, a presença de Marina Silva e do ambientalismo, e o Gramsci de Tarso Genro tentaram abrir caminho em meio ao pragmatismo político manejado por Lula. Nada disso, no entanto, conseguia dar sentido ao enredo em expansão, alimentado pelo seu próprio êxito e pelo carisma de Lula. Não por acaso, como observa ainda Werneck Vianna, Lula e o PT fazem uma viagem redonda à Era Vargas. Não, obviamente, para recuperar algum tipo de continuidade, para a construção de uma narrativa republicana, mas em busca da morfologia interna do tempo fechado e das suas possibilidades, exemplarmente materializadas no enredo inaugurado por Vargas em 1930. Era Lula o responsável por saquear a história, ressuscitando seletiva e arbitrariamente Vargas com sua preocupação social, Juscelino com seu programa de modernização acelerada e Geisel com a ideia de planejamento estratégico e do Brasil potencia, para constituir o seu próprio enredo. Na verdade, a imaginação do presidente se alimenta das experiências concretas pelas quais passou durante sua vida e da certeza de que deveria e poderia começar tudo de novo, numa trama que só ele poderia costurar e desenvolver.

O governo Dilma não poderá se basear na manipulação desabusada e enviesada da linguagem dos afetos, no saque descontínuo e arbitrário do passado, na ausência de competição política que, de algum modo, preservou Lula como o único ator político do segundo governo. Na verdade, a presidente e seus principais assessores parecem estar orientados por um programa de rotinização do carisma de Lula e de administração racionalizada de seu enredo. Não se trata de uma operação fácil, de uma sequencia automática e destinada inelutavelmente ao sucesso. Em primeiro lugar, e pelo próprio perfil da presidente, essa operação implica uma atenção maior a demandas sistêmicas, provenientes da economia e da administração política do condomínio no poder e dos setores sociais em ascensão social. Estas demandas não são facilmente conciliáveis por carregarem lógicas distintas, e na ausência de uma expressiva virtù política da presidente, o resultado pode ser um curto-circuito no enredo recebido de Lula. Em segundo lugar, uma negociação extremamente flexível entre todos os atores e todas as demandas pode desfigurar, na perspectiva de Lula, a herança por ele deixada, o que poderá torná-lo um fator de turbulência ao reclamar a preservação do sentido e do alcance da trama imaginada por ele como início de um novo Brasil. Em terceiro lugar, a cena política do governo Dilma será constituída por atores políticos dotados de maior ambição e dispostos a fixar, com clareza maior, alternativas à administração da herança lulista.

Uma operação de rotinização do carisma implica sempre a hermenêutica do enredo inventado pelo líder, a busca de uma ortodoxia que permita a sua manipulação por homens comuns e a adaptação tática ao mundo concreto. Essa é uma ocasião para a organização de uma “teoria”, não no sentido puramente acadêmico, mas prático. O grande problema é que, nas nossas circunstâncias, esta tentativa tem tudo para dar errado, mesmo se der certo. Lula foi um improvisador audacioso, e sua trajetória presidencial dependeu decisivamente de sua virtù pessoal. Difícil fazer uma hermenêutica produtiva, no sentido de se retirar uma ortodoxia qualquer, da ação virtuosa de um presidente que abandonou a ideia de uma reflexividade mais larga e sistemática. Mas admitamos que isso venha a ser feito: estaremos confirmando, sem a exuberância de Lula, a história brasileira como sucessão de tempos fechados que se esgotam no decorrer do tempo. Há, certamente, uma terceira alternativa, e não apenas para Dilma: e de abandonar o projeto do tempo monárquico, de inventar uma tradição republicana tendo o povo como sujeito — e não como ator de uma peça qualquer, por mais generosa que seja a sua trama — e a Constituição como a origem desse povo. Uma Constituição feita para encerrar o regime militar e autoritário, mas também a Constituição do povo brasileiro e de todas as suas gerações. Será pedir demais que nossa República seja efetiva?

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Rubem Barboza Filho é professor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF.




Fonte: Cedes/Uerj & Gramsci e o Brasil

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