O filho de um piauiense com uma paulista se diz "um político brasileiro", nascido em família conservadora e religiosa, que despertou para a esquerda graças a uma vizinha "de idéias muito abertas, irmã do urbanista Lúcio Costa, Magdala Ribeiro da Costa", que lhe deu livros do socialismo francês. Acabaria, na mocidade, já formado em história, filiando-se ao PT e, em 1988, disputou sua primeira eleição, para vereador, quando foi o mais votado do Rio de Janeiro. Hoje é deputado federal pelo PSOL, partido de cuja fundação participou com outros dissidentes do PT, por discordâncias da linha política do governo Lula.
Leia a entrevista publicada na revista Caros Amigos de abril.
Entrevistadores: Carlos Azevedo, Sérgio de Souza, Thiago Domenici, Renato Pompeu, Roberto Manera, Wagner Nabuco.
Carlos Azevedo - Sua trajetória no PT foi de 1987 até 2005?
É. Uma longa trajetória. Mal comparando, é como na vida afetiva, na qual temos relações mais marcantes, duradouras e pelo tempo de convivência têm um peso muito relevante. Diria que, do ponto de vista de um casamento político, meu tempo no PT é inesquecível, mais para o bem do que para o mal. Mas foi um processo extremamente doloroso.
Sérgio de Souza - Quando e por que começa seu estranhamento com o PT?
No meu caso, no PT, o impasse mais significativo foi com minha candidatura à prefeitura em 1996, quando a cúpula do partido, Gushiken, José Dirceu, Lula, insistia que o partido tinha de se abrir. O Rio sempre foi uma moeda de troca, pro PT fazer acertos nacionais, dentro de um campo que incluía os chamados partidos progressistas. Na militância, as bases e as convenções sempre batiam de frente. Então, em 1996 havia essa orientação, mas o partido fortemente optou por uma candidatura própria à prefeitura, por uma aposta ousada, contra todas as possibilidades e contra o núcleo duro da direção nacional. Apesar disso, deu certo. Lula só foi no último comício, a três dias da eleição. Até fez uma autocrítica, dizendo que tinha que ter apoiado antes.
Com o Zé Dirceu já tinha tido alguns arranca-rabos. Por ali começou, dois anos depois teve uma intervenção direta pra tirar a candidatura de Vladimir Palmeira e impor a aliança com o PDT do Garotinho. Vai criar cobra pra te picar lá no Butantã... Em 2002, quando me candidatei a deputado federal, a gente viveu uma contradição. Havia um movimento de base, de ruptura com o peleguismo, e o Lula candidato mais uma vez; dessa vez vitorioso.
Também houve a nossa célebre reunião, na qual até acabei sendo protagonista quando perguntei para o Delúbio (tesoureiro do PT): “senhor tesoureiro, e esse tal de Marcos Valério?” Sabia apenas que a Articulação (tendência majoritária do PT) tinha esquemas, algumas campanhas pareciam milionárias. "É apenas um amigo meu, que quer colaborar com o partido." Então - disse eu - na próxima campanha eleitoral, em 2004, vamos colocar todas as nossas contas de campanha em tempo real”. E ele falou uma frase que ficou famosa: "Ô, Chico, transparência demais é burrice". Norberto Bobbio (cientista político italiano) diz: "A democracia é o regime da transparência e nela não pode haver nenhum segredo". É ou não é uma contradição?
Carlos Azevedo - Você acha que o PT passa por essa transformação depois de entrar nesse descensão? Em que medida descensão influencia?
Suponho que essa relação é sempre dialética. Há quem diga que partido político é necessariamente uma estrutura institucional e, quanto mais tempo passa nas estruturas formais, disputando eleições, ocupando cargos, mandatos parlamentares ou executivos, vai arrefecendo sua pujança mudancista, revolucionária. Haveria uma incompatibilidade entre partido e revolução...
Carlos Azevedo - Enfraquece sua relação com as raízes populares?
Vai criando estruturas. Mas no Brasil - aí é tese de um historiador menor - o peso da institucionalidade é muito grande, inclusive pra luta da esquerda. Todas as nossas lutas mais marcantes da geração cinqüentona e sessentona tiveram um viés de institucionalidade: Anistia, Diretas Já, Constituinte. Aquele Brasil bonito das Diretas Já produziu as maiores manifestações de massa com sentido político da nossa história. Mas mesmo antes, a própria Aliança Libertadora Nacional de 1935 tinha um conteúdo de institucionalidade, um programa de reformas. Também a luta pela democratização no fim do Estado Novo; o Manifesto dos Mineiros não era socialista nem revolucionário, mas um duto de liberdades democráticas que muita gente progressista assimilou. O movimento das reformas de base no Jango, também pelo viés da institucionalidade. O movimento pela legalidade contra as tentativas de golpe, de impedir a posse do vice-presidente que estava na China. Até no plano cultural, de mudanças mais profundas na sociedade, o movimento modernista, que acontece em São Paulo (1922) e não na capital federal, que era o Rio, um pouco pra fugir do oficialismo, também não deixa de ter conexões com a institucionalidade da época, questionando a dominação oligárquica.
Renato Pompeu - O que o PSOL traz de novo nessa situação? Porque a mídia, quando cobre o PSOL, só fala das denúncias de corrupção. Eu, por exemplo, não sei o que o PSOL entende por socialismo e liberdade. Se é algo semelhante a Cuba, se algo semelhante à Venezuela ou se é algo semelhante à Suécia. Então eu gostaria que fosse explicitado isso. No que o PSOL é novo.
O PSOL é um partido político em formação. Nasce do acúmulo de contradições e decepções sobretudo com o PT. A gente tem alguns elementos fortes do PT pré-delubiano, vamos chamar assim, em termos de organizar um partido por núcleos, ter uma interlocução muito forte entre as direções e a base, um chamamento à participação, sobretudo, os setores da juventude, uma busca de inserção não diretiva nos movimentos sociais, aprendendo com eles, para romper com aquela idéia do partido condutor, do partido de vanguarda. Uma revisão, inclusive, de certas categorias que a esquerda marxista-leninista consolidou muito, mas que no século 21 não têm mais cabimento. Porque a estrutura de classes da sociedade, embora ainda haja opressão, exploração e alienação, não é a mesma do século passado, de vinte, trinta anos atrás. O que é a classe operária hoje, o que é o povo, essas categorias todas? Então, o PSOL está nesses setores, está em constituição. Realizou seu primeiro congresso em agosto passado, no Rio, e aprovou o primeiro documento básico, se propondo a enfrentar o desafio de um partido que se quer socialista, mas reconhece que não há um paradigma socialista no mundo de hoje. A experiência, por exemplo, do velho Partidão (comunista) tinha o farol da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o ícone da Revolução Russa. Hoje não. A gente reconhece que, por exemplo, a China reúne hoje o que há de pior no capitalismo, que é a espoliação violenta da mão-de-obra, com o que há de pior no socialismo real, que é o autoritarismo e o controle total da sociedade pela máquina estatal. Por outro lado, Cuba, experiência exitosa e admirável em muitos aspectos, não superou ainda essa realidade de não produzir novas lideranças e mecanismos de oxigenação da própria sociedade com a diversidade dela. Que deve ser, inclusive, partidária. Não é um axioma verdadeiro que, tendo liberdade partidária, o socialismo acaba. E, se for isso, é grave; é uma contradição. A gente está num processo - o mundo, os trabalhadores, a população, os que não estão satisfeitos - nessa idéia neoliberal fortíssima, de que a história acabou e que o capitalismo liberal, que é o capitalismo puro e duro, tem as respostas máximas para a sociedade do ponto de vista das oportunidades econômicas e das liberdades democráticas. Aí o PSOL tem alguns elementos como contribuição para isso, que não vai ser tarefa de um partido só, nem de uma só formação social, como a brasileira. Isso é uma tarefa mundial, planetária, de todas as forças vivas que acreditam em outro mundo possível que não esse hegemonizado pelo capital. Isso é um paradigma da esquerda. A socialização dos meios de produção, hoje, tem de caminhar junto com a socialização dos meios de governar e com a socialização da informação. Quer dizer, o PSOL se afirma na perspectiva do pluralismo, na perspectiva do socialismo com democracia, que a nosso juízo o capitalismo neoliberal não viabiliza plenamente. Agora, sem modelo é muito duro. É evidente que experiências como a da Venezuela, tirando um pouco o personalismo do Chávez, como a da Bolívia, que tem uma riqueza maior, o Movimento Ao Socialismo e as características do próprio líder maior que é o Evo, como o Equador do Rafael Correa, são experiências que nós prezamos muito.
Sérgio de Souza - Qual é a diferença, ou diferenças, entre o programa inicial do PT e o programa do PSOL?
A diferença básica é de momento histórico. O PT nasceu na crítica ao socialismo então existente. Lembro-me de um encontro nacional em São Paulo, quando tinha acabado de ocorrer o massacre da praça da Paz Celestial. E o encontro teve uma forte marca de denúncia. Agora as experiências concretas de um partido que sempre afirmou esse ideário ético-político socializante, com a experiência do poder central no Brasil, nos mostram seu fracasso. É uma diferença significativa. Para chegar ao poder, o PT trouxe para o governo o PRB da Igreja Universal.
Roberto Manera - O PSOL saiu do PT ou foi expulso?
Alguns foram expulsos diretamente, como a Heloísa Helena, a Luciana Genro, o Babá e o João Fontes, que hoje está no PDT. Esses três eram deputados federais. Votaram contra a reforma da Previdência, foi nosso primeiro drama. E nós ficamos em um caminho intermediário no grupo, de não votar a favor da reforma constitucional. Aí fomos punidos com uma suspensão e outros foram expulsos. Depois o contencioso foi aumentando e, em 2005, um novo grupo saiu. Volto a dizer, tendo chegado ao poder da República, sair e começar um novo partido é uma tarefa que eu não vou dizer heróica, mas é duríssima. Porque o esquema político está muito consolidado com os partidos de clientela. Partidos de idéias e causas estão fora de moda. As empreiteiras dão dinheiro para todos. Os bancos dão para os pólos principais. E o PSOL fez a opção, pela qual a Heloísa se bateu muito, de não receber de qualquer empresário. Nosso estatuto não chega a proibir isso, mas proíbe receber de bancos e de empreiteiras que tenham obras com o governo. Na nossa campanha de 2006, nenhum empresário, como pessoa jurídica, estava autorizado a dar qualquer centavo. Então foi paupérrima, por escolha nossa. Não tem que chiar, ajoelhou, tem que rezar! Há elementos para dizer que esse financiamento que está mantido no Brasil é a porta da corrupção política - e com ela você fica de rabo preso. E as corporações cobram, cobram... Você perde a independência. O PT entrou direto nesse tipo de política.
Roberto Manera - Com seus programas tão semelhantes, os partidos políticos parecem monolíticos e, no entanto, a opinião coletiva dos partidos é de uma variabilidade absurda. Um cara que ontem defendia isso, amanhã se coloca contra porque outro grupo está no outro extremo da gangorra. Não tem sido isso?
Eu acho que o PT exacerbou essas incoerências. Agora, sinceramente, no Brasil, aí concordando em partes com você, há partidos como o PSB, o PDT, o próprio PPS, o PT, o PSTU, o PC do B, o PSOL que têm um aspecto semelhante no seu programa. Todos esses, sem exceção, falam de socialismo, da importância do Estado, da importância do controle social, da participação, da organização dos trabalhadores, dos explorados, oprimidos, vilipendiados e tal. E dessa meta de construir uma sociedade diferente, socialista. O programa, para falar do programa, - o papel aceita tudo, é verdade -, os programas do PSDB, do PFL, do DEM, do PTB, e até com nuances um pouquinho mais para retórica trabalhista, do PP, do PL, hoje PR, do PMDB, estão num outro campo da economia de mercado, da democracia liberal como a realização plena do seu ideário. Pode ler lá. Agora, isso é pouco, e aí você tem toda a razão. O que conta mesmo, e, aliás, essa é uma afirmação clássica de esquerda, é a prática: a prática é o critério da verdade. Talvez o grande mal para a esquerda que o PT tenha causado, os segmentos dominantes do PT, tenha sido o de a prática não coincidir com o ideário. Mas há muita gente séria, boa, cada vez mais desiludida, no PT.
Roberto Manera - E vocês estão de braços abertos para eles?
Claro que estamos. Há uma hegemonia no PT que dá a fisionomia do partido hoje, que tem uma incoerência entre o programa e a prática, entre a intenção e o gesto, entre o proclamado e o praticado, sem constrangimentos agora. Isso é que é terrível. Às vezes, os bons companheiros que ainda sobrevivem na bancada do PT, em Brasília, pedem para nós poucos, Ivan Valente daqui de São Paulo, Luciana Genro do Rio Grande do Sul, e eu. Falam: "Pô, pega firme nisso aí que vocês têm condição, a gente não pode bater tanto". Porque tem a tal desgraçada governabilidade parlamentar. Alguém tinha feito uma pergunta também aguda: será que o que acabou como expressão não é a forma "partido político"? Eu digo que não. Não se inventou ainda outro instrumento que não o partido político para fazer uma disputa com um mínimo de regras e ocupar espaços do poder institucional que, volto a dizer, não é todo o poder.
Sérgio de Souza - Que contradições são essas?
O Ivan Valente, do PSOL, chega lá e diz: "Assina aqui a CPI dos cartões". "Claro. Sem dúvida." "Agora, assina aqui a CPI da dívida pública." Teve até petista indo tomar cafezinho... Só temos setenta assinaturas, dificilmente iremos conseguir. E as isenções fiscais, que são uma farra? Eu até anotei, estava conversando com o ex-petista Paulo Ruben Santiago. Uma coisa impressionante, a farra dos incentivos fiscais. Veja: só de renúncias fiscais, nós chegamos a cerca de 65 bilhões e 500 milhões de reais. Uma vez e meia os gastos com saúde pública no Brasil nos últimos quatro anos. E olha outra posição histórica do PT: nas assembléias, nas câmaras, qualquer governo que propunha isenção fiscal, aqui ou ali, a gente contestava. Afinal, a livre iniciativa não tem que se constituir sem o "papai Estado"? E, no entanto, tem uma farra tremenda desse tipo aí. Então tem muita coisa que o PSOL verbaliza, faz, e a mídia grande não dá a menor bola, não interessa. Mas pelo menos falam que a gente denuncia o "acordão" da CPI dos cartões, e que a gente tomou uma iniciativa contra o Renan, senão ninguém tomaria. E, no mínimo, o cara saiu da presidência. Então eu acho que o PSOL cumpre um pequeno mas importante papel.
Roberto Manera - O que você acha que resultaria da auditoria da dívida?
O resultado seria um reforço da idéia de você criar um fórum internacional dos países do Terceiro Mundo, dos países "de baixo", para rediscutir mundialmente as relações vigentes.
Thiago Domenici - O Lula sempre falou que peitaria o status quo quando chegasse no poder; agora, alguns integrantes do próprio partido e até do governo dizem que quando se chega no poder - e eles chegaram - a máquina não permite você peitar da mesma maneira como faz no discurso, que a prática não permite. Você acha isso? Ou você acha que ele nunca teve a intenção de fazer o que falou?
Não. O Lula não é um quadro - e nem poderia ser, talvez só seja o Lula no que há de meritório na sua trajetória - orgânico da esquerda. Uma pessoa que conviveu muito com ele me disse: "Olha, nessa convivência eu descobri que o Lula não tem ideologia".
Carlos Azevedo - Ou seja, ele tem uma ideologia.
É, nesse sentido: não ter uma ideologia socialista de esquerda; o Lula é um pragmático extraordinário. Alguns companheiros dele, das antigas, de sindicato, falavam que nas reuniões (que foi a universidade do Lula), num momento agudo de greve, se discutia e tal, deliberava-se uma reunião e ele tinha que encaminhar como a maior liderança. Antes de ir lá para o palanque falar para a multidão, ele preferia dar uma percorrida no meio da massa mesmo, para sentir o pulsar ali, e aí ele tinha a capacidade, admirável como método, de acabar conduzindo uma mediação muito pragmática que permitisse, por exemplo, se fosse o caso, sair da greve sem muita dificuldade, ou continuar na greve, mas já abrindo a porta para a negociação com o patrão. Quer dizer, o Lula é um pragmático. Se ele tem de conversar com o pior inimigo, que já não é mais inimigo, ele pega o telefone, e depois conta: "Eu fiquei invocado, liguei e falei: 'Bush, qual é a tua?' ". Você quer mais pragmatismo que isso? Só que pragmatismo que tenta conciliar preservação da Amazônia com agronegócio, ampliação da fronteira agrícola, eucalipto, soja, transgênicos, fica difícil. A ministra Marina Silva acaba virando uma marca muito bonita, muito charmosa até, mas é sempre derrotada. Você achar que pode fazer política de mudança com aliados de partidos que têm como lideranças Jader Barbalho, Romero Jucá, Renan e outras oligarquias que tais aí, Quércia, Sarney, fica difícil. É aquilo que eu falei, parece que não há mais nem constrangimento. Isso é pragmatismo. O Brasil, não por acaso, é considerado por Condoleezza Rice como o exemplo de um processo de democratização confiável ao império. É ou não é?
Sérgio de Souza - Agora, dentro do governo, os homens do PT têm esse pensamento único?
Não. Há contradições. Por isso que eu considero que os governos não são iguais.
Sérgio de Souza - Seria bom você citar pessoas, políticos, ministros, para o leitor ter uma noção do que ocorre no centro do poder.
Eu continuo a acreditar na idéia da hegemonia. Você tem uma política hegemônica dentro do governo, que é, nas suas linhas gerais, a chamada política neoliberal.
Sérgio de Souza - Quem sustenta isso e quem é contrário dentro do governo?
Há pontos de tensão e questionamento de alguns. Se você pega a votação na Comissão Nacional de Biotecnologia, que decidiu por sete votos a quatro liberar as sementes do milho transgênico, patenteadas apenas pela Bayer e pela Monsanto... Isso é um aspecto pontual de uma decisão que envolve todas essas visões. Os ministérios do Meio Ambiente, da Saúde...
Sérgio de Souza - Quem faz parte dessa comissão? São todos do PT?
Não. São os ministérios do governo. Mas aí você já tem uma revelação.
Renato Pompeu - Mas vamos esclarecer: que ministros votaram contra essa decisão da CTNBio?
Um deles foi o Ministério da Saúde.
Renato Pompeu - Quem é?
O Temporão. Ele é da cota do PMDB, mas nunca foi militante do PMDB, é um cara da reforma sanitária, daquelas origens lá dos sanitaristas do Rio. E também o Ministério do Meio Ambiente, a Marina Silva. Os que votaram a favor da liberação foram os ministérios da Agricultura, da Justiça, da Defesa, das Relações Exteriores, do Desenvolvimento, da Ciência e Tecnologia e da Casa Civil. De qualquer forma, foi sete a quatro. Esse é um dos embates que o governo tem no seu interior, mas que não gera nenhuma seqüela. Quer dizer, a aceitação da política que tem como fiador o próprio Lula é hoje geral, os focos de resistência diminuem cada vez mais e o chamado desenvolvimentismo que o Mantega poderia representar está inteiramente assimilado pelo setor do capital financeiro, pela ortodoxia que o Meirelles, do Banco Central, representa. Não há mais embates, a política de juros está devidamente acomodada. É impressionante a lógica do poder para essa geração de petistas. Ela sempre acaba determinando, em última instância, um acerto.
Carlos Azevedo - Em 2002, quando o Lula ganhou a primeira vez, você achava que ia ser diferente?
Acreditava sinceramente. Claro que as sinalizações começavam a preocupar.
Thiago Domenici - Mas você já sabia que ele era um pragmático.
Sim. Sabia que era um pragmático, mas a gente apostava naquilo que a eleição dele reavivou, que foi a chamada força social de mudança. Eu lembro do discurso do Lula na posse: "Mudança é a palavra-chave, reforma política, reforma tributária, reforma econômica”. O nosso Frei Betto falava: "Vamos conjugar agora uma nova gramática do poder". Tinha todo esse ânimo e eu acreditando piamente. "Esse é o governo dos nossos sonhos." Meus filhos perguntavam: "Quem foi o melhor presidente da República?" Eu falava: "Está chegando agora". Aliás, é uma pergunta também muito estreita. De repente, no período oligárquico, Rodrigues Alves foi razoável. O Getúlio Vargas pode ser o céu e o inferno. Juscelino tem aspectos aqui e ali. O Jango, para mim, foi o melhor dentro do contexto. Talvez por isso tenha sido brevíssimo. Mas a gente acreditava. "O processo liderado pelo Lula vai instituir uma democracia de alta intensidade e uma República efetivamente mudancista no Brasil. E vai politizar o nosso povo." Hoje o povo está menos politizado. Está lendo menos, está perdendo o espírito crítico. A gente tem uma certa anestesia geral e poucas certezas.
Roberto Manera - Mas o que você acha que causa essa anestesia?
É o contexto internacional. O capitalismo neoliberal, na sua fase financeira, na sua hegemonia, na revolução tecnológica, tem a ver com isso também. Incrível e admirável em muitos aspectos, eles exacerbam o individualismo de uma maneira trágica. Nós estamos tendo de recuperar algumas coisas da Revolução Francesa, como a idéia de cidadania participativa, de controle social do poder. Há uma espécie de grande monarquia do invisível e uma reconstituição, com todos os elementos da modernidade, de um império inabalável.
Sérgio de Souza - De onde vocês tiram essa percepção de que a juventude está anestesiada?
Eu digo que há uma indução à anestesia e absolutização do presente.
Sérgio de Souza - Mas há uma efervescência na periferia, a gente percebe daqui da redação. Então, por isso eu pergunto de onde vem essa percepção.
Em primeiro lugar, há uma percepção da predominância da valoração e da indução da sociedade ao consumo imediato como sentido de vida. Claro que um mercado muito importante é o da juventude, porque ela massifica, se mobiliza e você tem um poder. Mas a gente vive a domesticação dos símbolos de rebeldia, de mudança para uma outra sociedade, de outras relações. É incrível como esse sistema transnacional, mundializado, capitalista, tem uma capacidade fantástica de fazer tudo virar mercadoria. Uma grande anestesia do ponto de vista de que não há mais capacidade de mudar a História e você não deve se interessar pela sua constituição como ser histórico e entender o seu momento. É evidente que há focos crescentes de contestação a isso, de busca da sua raiz, inclusive de formação étnica nas periferias, na juventude. Mas a gente vê um desinteresse...
Sérgio de Souza - Pelos partidos, né?
É, pelos partidos, mas há também uma cultura, e é claro que nós contribuímos para isso, que estimula o desencanto e a não-participação. Eu vejo no Congresso Nacional, como via na Assembléia Legislativa, como via na Câmara dos Vereadores, ou seja, a história vem de longe. Quando temos qualquer votação importante e as galerias começam a se encher, o incômodo dos representantes do povo é enorme. "Que pessoal é esse? Quem está trazendo? 'Presidente, limita: ó, já lotou o espaço'." Deve ser o contrário do craque do futebol, que vibra com o estádio cheio. Como nós somos, na maioria, uns pernas-de-pau, ficamos com medo. Então, o desencanto com a política interessa muito aos que estão cada vez mais voltados para o mundo particular deles mesmos.
Sérgio de Souza - Mas e os meios de comunicação? Não têm uma responsabilidade grande?
Têm muita. Qual o programa que você tem na televisão hoje? Outro dia fui numa tevê em Brasília, UHF, um universo pequeníssimo. É ligada à igreja evangélica. Foi um programa de debates sobre o cartão corporativo, votação de orçamento, com um cientista político da Comissão de Direitos Humanos. E lá o telespectador está assistindo, telefona e fala. Eu até, depois, falei pro apresentador, “e se o cara mandar pra...?” “Bom, a gente tem que ter fairplay, se ele xingar.” Agora, imagine se a Globo vai fazer isso! Ou qualquer rede grande. Só a TV Cultura tem programa de debate, Roda Viva e outro.
Léo Arcoverde - Opinião Nacional.
Opinião Nacional, né? Tem um na TV Brasil também. O resto é noticiário, mais ou menos aberto, mais ou menos induzido ou censurado. E só. E vamos passar rápido pra novela e pro entretenimento, que são fundamentais - cada vez mais - pra estimular a vaidade, o ego, o hedonismo. E isso não é um discurso moralista, não, a gente apenas quer a grandeza do ser humano.
Sérgio de Souza - Você já é candidato a prefeito do Rio?
Sou pré-candidato porque não existe candidatura oficial. Senão, vem o TSE (Tribunal Superior Eleitoral)...
Sérgio de Souza - E o PSOL vai com você?
Vai. Um partido de esquerda sem disputa interna! Por outro lado, suspeito que o poder local, hoje, pode ser muito mais gerador de políticas públicas amplas, efetivas. O Márcio Moreira Alves, ex-deputado, jornalista, fez um livrinho da experiência de Lages, Santa Catarina, que ficou famoso: “Lages, a Força do Povo”. A gente tinha alguns encontros ainda em plena ditadura. Encontro Nacional de Prefeituras, onde havia experiências de participação popular. Nem se sonhava ainda com orçamento participativo, mas acho que, mesmo com esse refluxo dos grandes temas, há um crescimento de mobilizações mais localizadas. Você pode, a partir dos municípios, recuperar essa dimensão política.
Roberto Manera - Você acha que o PT tentou isso no Rio Grande do Sul?
Tentou. Viveu contradições, é uma experiência ainda recente. Tem que ver o que permaneceu e o que se diluiu. Porque, se governos - depois do Olívio - desconstituíram as experiências participativas do governo, é sinal de que não se consolidou uma nova relação.
Thiago Domenici - Você falou que Brasília cheira podre. É isso mesmo?
Brasília, não.
Thiago Domenici - O Congresso.
Aliás, botei na minha agenda um poema maravilhoso, do Nicolas Behr, um brasiliense da época da contracultura: "O que mais fascina em Brasília? A cidade ou o poder? O céu." Mas olha as contradições do poder em Brasília: a Câmara dos Deputados aprovou, contra o nosso voto, mais 185 milhões para as obras de transposição do rio São Francisco. Fez-se uma audiência pública. Os artistas lá. E vai o Osmar Prado à tribuna do Senado e começa a chorar. Sabe por quê? Ele disse: "Eu ouvi muitos discursos, muita informação técnica, palavras muito colocadas. Mas ouvi pouca gente aqui falar do nosso povo, demonstrar autenticidade de compromisso com nossa gente". A representação política está muito degradada.
Léo Arcoverde - Já dá pra saber quem manda mais no Congresso? A bancada ruralista ou a que você chama de partidos empreiteiros?
Quem manda mais no Congresso é o governo. Sem dúvida nenhuma, manda muito. E qualquer governo. Há uma atrofia dos legislativos, é um fenômeno mundial, mas no Brasil isso é particularmente forte. E há uma tendência atávica de o governo, qualquer que seja, formar maioria. O adesismo é a regra. Bom, basta ver o que você tem aqui: quem adere ao governo Lula, hein? Houve uma reação inicial, mas, olha, tudo para cobrar espaços, os cargos resolvem tudo. Dentro do Congresso Nacional, um terço dos parlamentares foi eleito com dinheiro de empreiteiras. Outro terço com dinheiro dos bancos, do sistema financeiro. Então, dois terços representam grandes empreiteiras e o sistema financeiro, incluído aí o agronegócio. O resto são corporações menores, representações de trabalhadores, de movimentos rurais. Mas nós, deputados que representamos os interesses da grande maioria da população, a tal "nova gramática do poder", de novas formas de governar, somos menos de cem, em 513 deputados.
Léo Arcoverde - A influência dessas oligarquias que você falou não é mais acentuada no próprio Congresso que no governo Lula em especial? Porque você pega hoje a mesa diretora do Senado, onze caras. Sete são caciques, isso não tem como negar.
Eu não saberia afirmar, mas elas parecem muito satisfeitas com o governo Lula. Isso é uma realidade, não é discurso de psolista, não. É realidade, porque a gente vê lá. De vez em quando fazem uma pressão e o governo sempre cede, inclusive nos projetos de lei. Porque eles têm força mesmo. Aí fica aquela história: bom, não dá pra peitar. Agora, você só peita com mobilização! Vou dar um exemplo claro. Luiza Erundina, prefeita de São Paulo. Ela enfrentava problemas inclusive dentro do próprio PT. Ela, que veio de um setor mais à esquerda do PT, teve um processo de cassação na Câmara, porque talvez não tenha cedido os cargos que a governabilidade pedia. E aí tava tudo já encaminhado, porque qualquer parlamento, querendo criar uma situação de impeachment pra um governante, cria. É claro que o governante tem como se defender fora do parlamento também. Houve uma baita duma mobilização. Eu me lembro, eu vim aqui e havia 10.000 pessoas cercando a Câmara no dia que iam votar o impeachment dela. Aí a coisa recuou. A maior parte dos prefeitos lá de Porto Alegre, o Olívio, o Tarso, o Raul, governou sem maioria. Só que naquela época o PT apostava na força social de mudança e de pressão, ia para a briga. Mas a escolha política do governo Lula foi esta: vamos contemporizar. Quando um governo de esquerda se alia com a direita, quase sempre é a direita que dá a linha. Porque ela tem mais experiência, mais capacidade de exercer o poder, de se infiltrar nos escaninhos, nos mecanismos. É insidiosa, esperta, e tem cinco séculos.
Wagner Nabuco - Como é que você acha que o governo perdeu a votação da CPMF, o "imposto do cheque"?
Na Câmara, eles tinham maioria, passou com folga. Não negociaram minimamente. A gente ainda apelava, pois havia uma discussão dentro do PSOL, porque não era o pior dos tributos, embora haja muito engodo dizendo que é imprescindível, taxa grandes movimentações, é justo... Não é bem assim, não. Mas isso é uma discussão específica. De qualquer maneira, passou tranqüilo lá. Mas o governo foi de uma empáfia, de uma arrogância total. No Senado, vai e vem e, quando resolveu bater o martelo, “vota hoje”, faltou voto. Quem derrotou a CPMF foi a própria base do governo. Senadores da base não votaram. Talvez tenha faltado a garantia dos últimos cargos... Porque é assim que funciona.
Sérgio de Souza - E o Rio?
Continua lindo, inferno e céu. O Rio é uma cidade singular, né? É uma belíssima paisagem pra uma humanidade muito machucada. E que tem vivido, do ponto de vista do poder político, algo que contraria a tal proverbial rebeldia do povo carioca. Ultimamente, acabou fazendo nas urnas a opção por um padrão técnico-burocrático-autoritário. Então, a gente vive uma era de governos absolutamente tecnocráticos que operam no senso comum e não mobilizam. Montam uma câmara de vereadores com base no que eles chamam de vereadores da comunidade, do clientelismo, do paroquianismo, e assim vai... Quer dizer, a política carioca tá apequenada.
Sérgio de Souza - E o governador, os problemas que estão aí?
Qual problema?
Sérgio de Souza - Violência, por exemplo.
Não é apenas o governador. A questão da segurança pública e da violência só é enfrentada a médio e a longo prazos, com políticas integradas que envolvam todas as instâncias da federação - Estado, município e União -, com a transversalidade de políticas públicas. A segurança pública é algo tão grave, tão dilacerador, que não pode ser só um caso de polícia, mesmo a polícia investigativa, inteligente e honesta. Nesse momento em que a gente está conversando aqui, já 8 da noite de sexta, até segunda de manhã, no mínimo 25 jovens terão sido executados, mortos a bala, nas três grandes regiões metropolitanas mais violentas: Rio, São Paulo e Recife. Vitória está nesse caminho. Salvador também. Por ano, o Brasil perde, por homicídios, 45.000 pessoas. Então a gente está numa situação muito dramática. Agora, a pura repressão não resolve. Nesse sentido, de novo a frustração: o governo federal elaborou um programa nacional de segurança pública, lá em 2002, acompanhei. Era do Luiz Eduardo Soares, não sei se vocês já ouviram falar, acho que já, né? Ele é uma pessoa muito preparada, que poderia dar uma contribuição grande, mas é sempre escanteado. Foi escanteado pelo Garotinho: ele tem cabedal, os governos chamam, mas depois, opa! Está indo muito longe.
Sérgio de Souza - Teve que fugir, né?
Pois é.
Renato Pompeu - Você falou do prefeito César Maia, mas não falou do governador Sérgio Cabral.
O governador Sérgio Cabral tem uma trajetória política conservadora, do sistema. Ele é homem de composições, é também um político pragmático, sem uma nitidez ideológica, tanto que começou muito jovem ainda. Formado em jornalismo, nunca exerceu a profissão, a não ser brevemente. Fui colega vereador do pai dele, grande figura humana, Sérgio Cabral pai, que estimo. E com o Serginho já tive muitos embates, porque compôs na Assembléia - da qual foi presidente por muito tempo - um segmento fisiológico, corrupto, da política mais rebaixada do Rio de Janeiro, nessa de que "tem que compor". Não é à toa que ele e o Lula estão num love impressionante, se admiram mutuamente. Eles têm esse mesmo pragmatismo. Ele só foi eleito governador porque a polarização foi com a juíza Denise Frossard, que é muito conservadora, apesar de pessoa de ética inabalável. O Sérgio tem muito mais traquejo político, experiência, e deu um banho nela nos poucos debates, típicos das eleições de hoje. Foi eleito no segundo turno com ampla margem.
Pelo que pressinto, ele vai fazer um governo conservador, muito no senso comum. Por exemplo, essa política de segurança, que prioriza a repressão, já se metabolizou, tem o aplauso da sociedade. Porque quando o cidadão está inseguro, qualquer coisa que represente o fim de um bandido que seja, nem que seja uma execução sumária, como ocorreu no Morro do Alemão, tem o aplauso da população. Então o Sérgio é habilidoso, até por ambiente familiar, é muito aberto, gosta da cultura, tem esse espírito carioca, vascaíno, do samba, é simpático, envolvente. Mas é um político conservador que não vai introduzir elementos participativos no governo, e nenhuma transparência. É difícil analisar um governo que não tem um programa pra educação, pra habitação, pra saúde pública, pra segurança pública, a não ser esse programa convencional da repressão. A gente ainda não sabe o projeto do governo Cabral. Foi eleito pelo PMDB, que é um saco de gatos: lá, você pode ter uma figura como Pedro Simon e uma figura como Orestes Quércia, ou como Renan e Jader. Então, o Cabral está aparecendo mais nacionalmente agora, sempre foi um político mais local, foi senador com um mandato muito inexpressivo. Como presidente da Assembléia, cortou certos salários corretamente: gente que ganhava 35.000, 40.000, chefe da garagem que ganhava 30.000. Mas eles ganharam na Justiça, e ele disse que vai pagar em precatórios, está essa confusão lá... Mas isso reforça a aura que ele construiu, de pessoa austera. Ele montou um governo a exemplo do Lula. Por isso eles têm tanta identidade.
Roberto Manera - Concretamente, o que é que o PSOL, no caso de eleito, tem a fazer?
Tem gente dizendo que, se o PSOL entrar de cabeça em eleição municipal, vai acabar como partido e virar uma maquineta apequenada. A maioria de nós discorda. A gente quer estabelecer um programa mínimo básico nacional, seja para administrar Vila Risonha de Santo Antônio da Manga de São Romão, lá nas margens do São Francisco, ou qualquer capital. Para socializar cada vez mais os mecanismos de governar, criar conselhos de bairros, descentralizar o poder, manter interlocução com outras comunidades, ter uma postura autônoma e de cobrança de maior independência em relação a outras instâncias de poder. Porque segurança pública, por exemplo, também é um assunto municipal. E há hoje, numa sociedade com melhores redes de intercomunicação, experiências de cidades superinteressantes, mesmo nos Estados Unidos. Lá você tem cidades - como San Francisco - que contestam a política ambiental destrutiva do Bush. Por isso eu falei que os Estados nacionais estão esmaecidos, mas os poderes locais podem muito. Então a gente quer fazer governos democráticos, participativos, transparentes, que denunciem a guerra do Iraque, além de prestar assistência odontológica.
Sérgio de Souza - Mas isso não passa na Globo.
Não, não passa na Globo, mas isso a gente também pode ir mudando.
[Entrevista publicada na revista Caros Amigos, edição de abril de 2008]