segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O ex-presidente ideal

O ex-presidente ideal

Não se pode esperar de um homem público, instado a falar de improviso quase todos os dias, sob a pressão dos acontecimentos, que não cometa uma ou outra contradição, um ou outro deslize.

Mas quando a exceção vira regra e estabelece um padrão, o quadro é mais complexo. É o caso do presidente Lula.

Ao longo de seus dois mandatos, conceituou diversas vezes a respeito do que considera o papel ideal de um ex-presidente. Ao fazê-lo, antecipava o seu próprio comportamento futuro, afirmando que, a partir de então, não mais interviria na política, acrescendo sempre insinuações a Fernando Henrique, que estaria fazendo o contrário.

O perfil ideal de um ex-presidente, na óptica de Lula, pode ser resumido assim: um conselheiro discreto, ciente de que já não é a bola da vez, mas, consciente de sua responsabilidade, pronto a contribuir quando solicitado, independentemente de divergências partidárias. A palavra-chave parece ser esta: solicitado.

Resta decifrá-la. FHC tem sido personagem obsessivo de Lula, em suas manifestações públicas. Vira e mexe, o presidente o cita, sempre de maneira crítica, quer para mostrá-lo como exemplo a não ser seguido, quer para atribuir erros a seu governo (que ele, Lula, obviamente, estaria corrigindo), quer para apossar-se de méritos que, como a estabilidade econômica, cabem à administração anterior.

Essas manifestações, que chegam ao ponto de querer transformar a presente campanha eleitoral em plebiscito, para que o eleitor decida qual foi o governo melhor – se o dele, se o de FHC –, impedem que o ex-presidente cumpra o papel ideal que o atual lhe atribui. Se há, pois, alguém que não deixa FHC sair de cena, que o “solicita” obstinadamente, esse alguém é exatamente Lula.

Como mantê-lo fora do jogo se ele, quase oito anos depois de passar o cetro ao sucessor, continua a ser invocado como paradigma negativo do atual presidente e de sua candidata, que não fazem outra coisa, em seus comícios antecipados, senão chamá-lo ao jogo?

Anteontem à noite, em evento que marcou a adesão do PCdoB à candidatura Dilma, Lula desfez o seu arquétipo de ex-presidente ideal, antecipando o que fará quando vestir o pijamão.

É o contrário do que gostaria que FHC fizesse. Disse ele: “Quando eu estiver fora (do governo), vou ter força para evitar que se faça com a Dilma o que fizeram comigo em 2005 (Mensalão). Vou gritar mais, vou ter mais liberdade. Não vou ser instituição. Vou arregaçar as mangas para fazer a reforma política, porque não podemos ficar subordinados ao que um juiz diz que podemos ou não fazer. Vou poder gritar mais, perturbar mais”.

Onde fica então o ex-presidente conselheiro discreto, ciente de seu papel contributivo? E há um detalhe, nada irrelevante: Lula falava partindo da premissa de que Dilma será a vencedora. Mesmo nessa hipótese, promete “perturbar mais”. Mas, e se o vencedor for um adversário, Serra por exemplo? Vai se limitar a “gritar mais, perturbar mais”? Deixou a dúvida (e a inquietação) no ar.

Quanto à reforma política, não explicou como a obterá na condição de ex-presidente, já que não a obteve como presidente. Comete aí o mesmo equívoco que o levou, em outra oportunidade, a dizer que, somente quando se tornar ex-presidente, vai procurar saber o que houve no episódio do mensalão.

Ora, é como presidente que ele terá os meios – além de dever institucional – de saber o que houve.

Ao que parece, ele já sabe, pois anteontem, no mesmo evento do PCdoB, fez menção oblíqua ao episódio, ao queixar-se “do que fizeram comigo em 2005”. Repetiu, em outros termos, o que já dissera em entrevista à TV Bandeirantes, há uns dois meses, quando classificou o mensalão de “tentativa de golpe”.

Golpe, sim, mas contra o erário, conforme está expresso em ação no STF, patrocinada pelo Ministério Público. Nela, o procurador geral da República, Luiz Fernando de Souza, acusa a existência de uma “organização criminosa”, sob o comando do então ministro-chefe da Casa Civil – e portanto principal auxiliar do Presidente da República -, José Dirceu, que, segundo ele, tomara de assalto o Estado. O STF aceitou a ação. Ou seja, viu fundamentos nela.

Lula, porém, não parece ter grande apreço pelo papel do Judiciário. É o que dá a entender quando faz recorrentes menções críticas a sua conduta, sempre que alguma decisão o contraria – quer ao multá-lo por antecipar (como anteontem) a campanha eleitoral, quer ao impugnar obras irregulares.

Anteontem, Lula disse com todas as letras: “Não podemos ficar subordinados ao que um juiz diz que podemos ou não fazer”. Ora, mas esse é o papel do Judiciário no Estado democrático de Direito, como guardião das leis. São as leis que dizem “o que podemos ou não fazer”. E é o juiz quem as aplica. Fora disso, é a tirania.

Ruy Fabiano é jornalista

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