sábado, 26 de novembro de 2005

MANIA DE PERSEGUIÇÃO



Juremir Machado da Silva
MANIA DE PERSEGUIÇÃO
Estou sendo perseguido. Implacavelmente. Sou paranóico. Mas os paranóicos também têm inimigos. Sempre cito essa frase de Ricardo Piglia. Ela também me persegue. Acontece que a situação se tornou insuportável. Não consigo escapar. Estou encurralado. Faço o impossível para me livrar de Chico Buarque, Jô Soares, Arnaldo Jabor, Luis Fernando Verissimo e Caetano Veloso. Escrevo contra eles. Ironizo, chuto o balde, tento difamá-los. Não dou trégua. Quando penso que todo mundo entendeu, recomeça tudo.
Retorna o pesadelo. Já vem alguém tentando me dar um presente legal, fashion, sofisticado: um livro do Jô (o pessoal fala assim, sem o sobrenome, ou um livro do Gordo); um CD do Chico (também sem o sobrenome); as crônicas do Jabor (assim, sem o nome); um disco do Caetano; as obras completas do Verissimo. Pelo amor de Deus, não me dêem nada disso. Quero sabonetes, cuecas, canetas, água de colônia, espuma de barba, até um CD do Ivan Lins ou uma coletânea de músicas do Nando Reis. Basta de Chico, Caetano, Verissimo, Jabor e Jô. Sou invejoso, ressentido e ciumento. Quero distância desses ícones da classe média auto-satisfeita.
Outro dia, alguém tentou me dar a obra completa do Chico Buarque em DVD. Que horror! O que eu ia fazer com um troço desses? O cara é um cantor. Eu ia passar as noites no sofá olhando para ele na telinha com ar apaixonado de balzaquiana saudosa de 1968? Definitivamente, Chico Buarque é o Felipe Dylon das quarentonas. Todos os dias, encontro uma mulher chique que diz com ar de profunda originalidade: 'O Chico é um charme'. Ou um marmanjo metido a intelectual que exclama: 'Como esse Gordo é inteligente!' Não posso mais tomar café em paz. Sempre tem alguém para me perguntar: 'Leste o Jabor?' Não, eu não leio o Jabor.
Sou um cara original, autêntico, único, com estilo e atitude: ouço Gildo de Freitas, José Mendes, Leonard Cohen, Joss Stone, Jorge Drexler, Franz Ferdinand, Gaúcho da Fronteira e Cachorro Grande. Leio Michel Houellebecq, Paul Auster, Maurice Dantec, o Diário Gaúcho, Veja, o escambau. Fujo como o diabo da cruz da literatice de Jô Soares, Chico Buarque, Arnaldo Jabor e cia. Chamo isso de evasão de divisas, transferência de capital simbólico indevidamente de uma rubrica para outra. Mas não tem jeito. Eles me perseguem. Não passo uma semana sem ouvir um 'Chico é Chico', 'Caetano falou', 'sabe a última do Verissimo?', 'ah, esse Gordo!' ou 'o Jabor disse uma ótima...'.
Pior que isso só ouvir elogios aos irmãos Caruso. Sou contra os ídolos. Queria estar no lugar deles. Ganhar R$ 100 mil de cachê literário em Passo Fundo. Morro de raiva do sucesso que fazem. Pronto. Admiti. Agora, por favor, me deixem em paz. Não tentem me presentear com nada disso. Prefiro não ganhar presente. Se for obrigatório, aceito uma gravata. Não uso gravatas. Mas não é um mau presente. Neutro. Sem conteúdo. Até parece livro mais vendido na Feira de Porto Alegre. Uma beleza. A imaginação dos brasileiros mais inconformistas e intelectualizados nunca vai além dessas cinco celebridades. No Rio Grande do Sul, as variações são ainda mais assustadoras. Incluem Vitor Ramil e Jorge Furtado. Já não sei onde me esconder para escapar do brilho intenso dos nossos ídolos refulgentes.
A perseguição é tanta que, numa dessas, resolvi me trancar em casa. Fechei tudo. Desliguei a televisão. Mergulhei na minha biblioteca selecionada, à prova de ídolos brasileiros da classe média fashion. Detesto tudo o que é considerado fashion. Acho brega. Sou do contra. Adoro o trash. Só vejo a novela das oito, a Marília Gabriela, o Faustão e o Inter.
Encerrado, experimentei algumas horas de sossego. Fiz do meu apartamento um bunker. Não deixo entrar ninguém que me fale de Chico, Jô, Verissimo, Caetano e Jabor. Estou obcecado. Não agüento mais a perseguição. Mas, como estava dizendo, barriquei a minha porta. Que alívio!
Depois de três horas, porém, senti fome. Não havia o que comer na geladeira. Pedi uma pizza por telefone. Fiquei lendo Schopenhauer e Finnegans Wake enquanto esperava. E ouvindo o Porca Véia. Uma hora após, tocou o interfone. Mandei subir. O motoboy me alcançou a pizza. Fui buscar o dinheiro em cima da mesinha. Aí ele falou assim: 'Pô, tio, tô precisando ganhar algum a mais, a coisa tá feia. Não quer comprar um CD pirata? Tenho todinhos os do Chico...'.
E-mail: juremir@correiodopovo.com.br
Correio do Povo Porto Alegre - RS - Brasil

Um comentário:

Anônimo disse...

Apesar de ser uma pessoa brilhante, discordo de suas colocações, uma vez que admiro muito Chico, Jabor, etc.