quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

COMO ERA VIVER DEBAIXO DAS BOTAS?

COMO ERA VIVER DEBAIXO DAS BOTAS?

Celso Lungaretti (*)



Lembrar o que realmente aconteceu nos "anos de chumbo" é muito relevante neste momento em que a desmoralização da esquerda pelo PT encheu a bola da direita. Nas comunidades políticas do Orkut e em sites como o Terrorismo Nunca Mais e o Usina de Letras, constata-se que essa gente está bem organizada, tem muitos recursos e vem fazendo intenso proselitismo. É a serpente se engendrando no ovo. Aproveitando o esquecimento dos idosos e a desinformação dos que vieram depois, eles tentam reabilitar a imagem da ditadura, na base do "naquele tempo era tudo melhor".

Eu tinha 13 anos quando os militares deram o golpe. Depois, como militante estudantil a partir dos 16 anos, li e absorvi muita informação sobre esse assunto. E, ao ingressar na Vanguarda Popular Revolucionária, passei a conviver com pessoas que tiveram participação importante nos eventos de 1964. Curioso (já tinha espírito de jornalista), conversei muito com elas sobre o que haviam vivido e presenciado.

Depois, em 1989, atuando na imprensa, fui incumbido pela Agência Estado de preparar uma série de matérias históricas sobre a quartelada, que estava completando 25 anos. Pesquisei, revirei arquivos, li brazilianistas, entrevistei personagens.

De tudo isso extraí algumas conclusões, que exponho como tópicos:

* há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo;

* mas, é incontestável que militares vinham tentando tomar o poder sob pretextos anticomunistas desde fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de JK, com a revolta de Jacareacanga. Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de 1959, com a também fracassada revolta de Aragarças. E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart, só voltando atrás diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil;

* apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos "grupos dos 11" brizolistas, não havia em 1964 uma possibilidade real de conquista do poder pela esquerda. Não existiu o tal "contragolpe preventivo", mas, pura e simplesmente, um golpe para usurpar o poder, derrubando um governo eleito, fechando o Congresso, cassando mandatos legítimos e extinguindo entidades da sociedade civil;

* a esquerda só voltou para valer às ruas em 1968, mas as manifestações de massa foram respondidas pelo uso cada vez mais brutal da força, por parte de instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios de nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações. Até que, com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou inviável. Foi quando a vanguarda armada, insignificante até então, ascendeu ao primeiro plano, acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos movimentos de massa;

* as organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de oficiais estadunidenses;

* em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político, aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe média;

* nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas partiram para o extermínio sistemático dos militantes, que eram capturados com vida e depois executados;

* o "milagre brasileiro", fruto da reorganização econômica empreendida pelos ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970 (quando aqui entraram tantos dólares quanto nos 10 anos anteriores somados), teve vida curta e em 1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes pagarem;

* corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais malograram);

* a arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou muitas vítimas inocentes, cujas famílias nem sequer obtinham o reconhecimento da culpa do Estado e respectiva indenização. E integrantes dos efetivos policiais chegavam a acumpliciar-se com traficantes, executando seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões da Morte);

* o aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam dos empresários fascistas vultosas recompensas por cada revolucionário preso ou morto, como se apossavam de tudo que encontravam de valor com eles. Acostumaram-se a um padrão de vida muito superior ao que o soldo lhes proporcionaria;

* daí terem resistido encarniçadamente à disposição do presidente Geisel de desmontar essa engrenagem de terrorismo de estado, no momento em que ela se tornou desnecessária. Mataram pessoas inofensivas como Vladimir Herzog, promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do Riocentro, que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga escala) e chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o próprio ministro do Exército.

Em suma: é o último filme do mundo a merecer reprise. Com todos os seus defeitos e mares de lama, a democracia ainda é menos pior. Deve ser preservada, custe o que custar. E, claro, moralizada e aperfeiçoada.

* Celso Lungaretti é jornalista, ex-preso político e autor do livro "Náufrago da Utopia".

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