Pesquisadora analisa trajetória da Organização das Nações Unidas, seus dilemas e desafios
Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Ela está completando 60 anos e chegando à terceira idade. Sua carta de criação, assinada por 51 países, afirma que suas missões principais seriam “garantir a paz e a segurança internacionais, o progresso social coletivo e os direitos humanos, devendo respeitar o princípio da auto-determinação dos povos”. Naquele momento, a humanidade, traumatizada pelas atrocidades cometidas pelo nazi-fascismo e pelos cerca de 50 milhões de mortos durante a II Guerra Mundial, procurava idealizar e colocar em prática mecanismos e instituições que fossem capazes de garantir a prevalência das idéias e da negociação sobre qualquer tipo de força bruta. De certa forma, o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU), em 24 de outubro de 1945, durante a Conferência de São Francisco, foi uma resposta da civilização contra a barbárie.
“Havia um consenso sobre a necessidade de construção de uma ordem internacional baseada na idéia da cooperação”, explica Denilde Oliveira Holzhacker, pesquisadora do Núcleo de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). “Depois do fracasso da Liga das Nações, nascida depois da I Guerra, e que não conseguiu evitar a II Guerra Mundial, os Estados Unidos e a Europa perceberam que era preciso criar um organismo que tivesse instrumentos de ação mais bem definidos para gerenciar a paz mundial”, completa a especialista, também professora do curso de Relações Internacionais da Universidade São Marcos.
60 anos depois
Passados 60 anos, é possível afirmar que a ONU conseguiu alcançar seus objetivos? Qual o balanço que podemos fazer sobre sua atuação? “Sua existência é de fato imprescindível, apesar de ser marcada por derrotas e vitórias. E um dos grandes dilemas contemporâneos que está colocado é até onde a ONU pode agir no sistema internacional sem entrar em choque com os interesses das grandes potências, principalmente dos Estados Unidos”, responde Denilde.
Esse choque ficou evidente – e chegou inclusive a questionar a própria razão de existir da entidade – quando os Estados Unidos decidiram invadir o Iraque, em 2003, apesar do veto do Conselho de Segurança da ONU e das tentativas de uma saída mediada e negociada para o conflito.
Ameaçada e enfraquecida, conseguiu superar a crise, e atualmente cumpre um papel fundamental no pós-guerra a na reconstrução do Iraque. “A ONU é a responsável por estabelecer a ligação entre a população e as novas instituições do país”, afirma Denilde. Ela usa esse exemplo para contestar um argumento que é freqüentemente utilizado para desqualificar a atuação da entidade – aquele que entende a ONU como um simples reflexo e instrumento de legitimação dos interesses das grandes potências internacionais.
Para a especialista, o caso do Iraque demonstra o quanto ela foi obstáculo para a ação unilateral norte-americana. “Acho uma visão muito maniqueísta e simplista imaginar que ela é apenas marionete nas mãos dos mais fortes. Na Assembléia Geral, que reúne atualmente 191 países, todos têm direito a voz e a voto e acabam tendo peso nas decisões”.
Muitas outras funções
Denilde afirma que, nestes últimos 60 anos, a ONU acabou acumulando diversas funções, e atualmente não se dedica apenas a atuar para garantir a paz, a cooperação e a segurança. Desenvolve também projetos importantes em áreas como educação, saúde, cultura, atenção à infância, combate à pobreza, ações humanitárias.
Essa nova lista de responsabilidades exigiria, segundo a pesquisadora, uma outra estrutura administrativa e de organização, que conferisse mais agilidade e transparência de decisões à entidade. Além disso, seria preciso pensar em estratégias para superar o sistema estatal e incorporar outros atores internacionais, como as Organizações Não-Governamentais. Na opinião de Denilde, um dos grandes fracassos da ONU durante sua trajetória foi a incapacidade de lidar com as diferentes culturas e com os contextos étnicos muito diversos. “Na África, por exemplo, apesar de inúmeras ações, não foi possível modificar um cenário que é extremamente grave”.
A explosão de conflitos, no pós-Guerra Fria, também preocupa. “Ela não consegue evitar guerras, e, quando o conflito acaba, muitas de suas missões humanitárias encontram dificuldades em gerenciar a paz”, lamenta. A ausência da ONU é também sentida na mediação do conflito árabe-israelense, onde as tentativas de paz são lideradas fundamentalmente pelos Estados Unidos. “A forte presença e coalizão dos países árabes na Assembléia Geral, rechaçada por Israel e seus aliados, impede a adoção de uma posição mais isenta na disputa”, explica.
Conselho de Segurança
O debate contemporâneo mais acalorado, no entanto, parece ser o que diz respeito a possíveis mudanças na estrutura do Conselho de Segurança. Um dos principais órgãos da entidade e instância responsável pelas decisões finais, quando o assunto é a paz mundial, o Conselho é formado por dez membros rotativos (eleitos para mandatos de dois anos) e por cinco membros permanentes (EUA, Rússia, França, Inglaterra e China). Estes últimos têm poder de veto – no limite, podem impedir qualquer decisão, mesmo que os outros quatro a apóiem. O G4 (Brasil, Índia, Alemanha e Japão) reivindica a ampliação do número de membros permanentes. Argumenta que essa estrutura de poder corresponde a uma fotografia antiga, do pós-II Guerra. O mundo mudou, dizem, há uma série de outras potências com funções regionais muito importantes, e a ONU deve acompanhar essa evolução e democratizar suas estruturas de funcionamento. O mais difícil talvez seja encontrar o consenso sobre quem participaria dessa nova correlação de poder, caso a ampliação fosse aceita. Argentina e México questionam a vaga brasileira; a China veta o Japão; o Paquistão não aceita a Índia; a Alemanha é vista com desconfiança por outros países europeus; e, na África, países como a Nigéria, o Egito e a África do Sul disputam o direito de representar o continente.
Atentos às disputas, os Estados Unidos já anunciaram: são contra a ampliação do Conselho de Segurança, pois acreditam que um número maior de países exigiria um esforço maior de negociações, e poderia dificultar ainda mais a tomada de decisões. A proposta de reforma norte-americana segue outra lógica e pretende redimensionar a atuação da entidade e limitá-la a algumas áreas específicas – o pós-conflito, por exemplo. Uma alternativa, chamada de terceira via, seria promover a ampliação do Conselho, tirando dos novos membros o direito de veto. Em linhas gerais, essa tese se resumiria a transformar as atuais cadeiras rotativas em permanentes. “Seria uma estratégia cosmética e não mudaria a correlação de forças”, alerta Denilde. Ela acha, no entanto, que a tese da reforma limitada é a mais provável de ser colocada em prática. “EUA e Europa não parecem realmente dispostos a promover mudanças drásticas”.
Quando comenta as vitórias obtidas pela ONU, a pesquisadora faz questão de ressaltar os avanços obtidos na área de direitos humanos. “A ONU trouxe para o cenário internacional a agenda dos temas sociais”, comemora. Ela lembra que essa é uma luta que começa em 1948, com a publicação da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Na década de 1960, consolida-se a convicção – contra a vontade dos EUA – de que os direitos não são apenas políticos e civis, mas econômicos, sociais e culturais. Em 1994, a Conferência de Viena institui o conceito de “direitos indivisíveis” – o Estado deve garanti-los de forma global e articulada, e não isolada ou fragmentada.
Reforça-se a idéia não apenas do direito à vida, mas à vida com dignidade. “É uma evolução importante, até porque passou a ser concretamente incorporada às legislações de diversos países. No Brasil, por exemplo, a legislação sobre infância e adolescência e os direitos do consumidor são reflexos diretos dessa nova concepção”, completa. Ela não tem dúvidas: a consolidação da cultura dos direitos humanos como um valor universal aconteceu em grande parte graças à atuação da ONU. “É uma vitória extraordinária”, conclui.
Texto publicado no site do SINPRO-SP (www.sinprosp.org.br)
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Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Ela está completando 60 anos e chegando à terceira idade. Sua carta de criação, assinada por 51 países, afirma que suas missões principais seriam “garantir a paz e a segurança internacionais, o progresso social coletivo e os direitos humanos, devendo respeitar o princípio da auto-determinação dos povos”. Naquele momento, a humanidade, traumatizada pelas atrocidades cometidas pelo nazi-fascismo e pelos cerca de 50 milhões de mortos durante a II Guerra Mundial, procurava idealizar e colocar em prática mecanismos e instituições que fossem capazes de garantir a prevalência das idéias e da negociação sobre qualquer tipo de força bruta. De certa forma, o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU), em 24 de outubro de 1945, durante a Conferência de São Francisco, foi uma resposta da civilização contra a barbárie.
“Havia um consenso sobre a necessidade de construção de uma ordem internacional baseada na idéia da cooperação”, explica Denilde Oliveira Holzhacker, pesquisadora do Núcleo de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). “Depois do fracasso da Liga das Nações, nascida depois da I Guerra, e que não conseguiu evitar a II Guerra Mundial, os Estados Unidos e a Europa perceberam que era preciso criar um organismo que tivesse instrumentos de ação mais bem definidos para gerenciar a paz mundial”, completa a especialista, também professora do curso de Relações Internacionais da Universidade São Marcos.
60 anos depois
Passados 60 anos, é possível afirmar que a ONU conseguiu alcançar seus objetivos? Qual o balanço que podemos fazer sobre sua atuação? “Sua existência é de fato imprescindível, apesar de ser marcada por derrotas e vitórias. E um dos grandes dilemas contemporâneos que está colocado é até onde a ONU pode agir no sistema internacional sem entrar em choque com os interesses das grandes potências, principalmente dos Estados Unidos”, responde Denilde.
Esse choque ficou evidente – e chegou inclusive a questionar a própria razão de existir da entidade – quando os Estados Unidos decidiram invadir o Iraque, em 2003, apesar do veto do Conselho de Segurança da ONU e das tentativas de uma saída mediada e negociada para o conflito.
Ameaçada e enfraquecida, conseguiu superar a crise, e atualmente cumpre um papel fundamental no pós-guerra a na reconstrução do Iraque. “A ONU é a responsável por estabelecer a ligação entre a população e as novas instituições do país”, afirma Denilde. Ela usa esse exemplo para contestar um argumento que é freqüentemente utilizado para desqualificar a atuação da entidade – aquele que entende a ONU como um simples reflexo e instrumento de legitimação dos interesses das grandes potências internacionais.
Para a especialista, o caso do Iraque demonstra o quanto ela foi obstáculo para a ação unilateral norte-americana. “Acho uma visão muito maniqueísta e simplista imaginar que ela é apenas marionete nas mãos dos mais fortes. Na Assembléia Geral, que reúne atualmente 191 países, todos têm direito a voz e a voto e acabam tendo peso nas decisões”.
Muitas outras funções
Denilde afirma que, nestes últimos 60 anos, a ONU acabou acumulando diversas funções, e atualmente não se dedica apenas a atuar para garantir a paz, a cooperação e a segurança. Desenvolve também projetos importantes em áreas como educação, saúde, cultura, atenção à infância, combate à pobreza, ações humanitárias.
Essa nova lista de responsabilidades exigiria, segundo a pesquisadora, uma outra estrutura administrativa e de organização, que conferisse mais agilidade e transparência de decisões à entidade. Além disso, seria preciso pensar em estratégias para superar o sistema estatal e incorporar outros atores internacionais, como as Organizações Não-Governamentais. Na opinião de Denilde, um dos grandes fracassos da ONU durante sua trajetória foi a incapacidade de lidar com as diferentes culturas e com os contextos étnicos muito diversos. “Na África, por exemplo, apesar de inúmeras ações, não foi possível modificar um cenário que é extremamente grave”.
A explosão de conflitos, no pós-Guerra Fria, também preocupa. “Ela não consegue evitar guerras, e, quando o conflito acaba, muitas de suas missões humanitárias encontram dificuldades em gerenciar a paz”, lamenta. A ausência da ONU é também sentida na mediação do conflito árabe-israelense, onde as tentativas de paz são lideradas fundamentalmente pelos Estados Unidos. “A forte presença e coalizão dos países árabes na Assembléia Geral, rechaçada por Israel e seus aliados, impede a adoção de uma posição mais isenta na disputa”, explica.
Conselho de Segurança
O debate contemporâneo mais acalorado, no entanto, parece ser o que diz respeito a possíveis mudanças na estrutura do Conselho de Segurança. Um dos principais órgãos da entidade e instância responsável pelas decisões finais, quando o assunto é a paz mundial, o Conselho é formado por dez membros rotativos (eleitos para mandatos de dois anos) e por cinco membros permanentes (EUA, Rússia, França, Inglaterra e China). Estes últimos têm poder de veto – no limite, podem impedir qualquer decisão, mesmo que os outros quatro a apóiem. O G4 (Brasil, Índia, Alemanha e Japão) reivindica a ampliação do número de membros permanentes. Argumenta que essa estrutura de poder corresponde a uma fotografia antiga, do pós-II Guerra. O mundo mudou, dizem, há uma série de outras potências com funções regionais muito importantes, e a ONU deve acompanhar essa evolução e democratizar suas estruturas de funcionamento. O mais difícil talvez seja encontrar o consenso sobre quem participaria dessa nova correlação de poder, caso a ampliação fosse aceita. Argentina e México questionam a vaga brasileira; a China veta o Japão; o Paquistão não aceita a Índia; a Alemanha é vista com desconfiança por outros países europeus; e, na África, países como a Nigéria, o Egito e a África do Sul disputam o direito de representar o continente.
Atentos às disputas, os Estados Unidos já anunciaram: são contra a ampliação do Conselho de Segurança, pois acreditam que um número maior de países exigiria um esforço maior de negociações, e poderia dificultar ainda mais a tomada de decisões. A proposta de reforma norte-americana segue outra lógica e pretende redimensionar a atuação da entidade e limitá-la a algumas áreas específicas – o pós-conflito, por exemplo. Uma alternativa, chamada de terceira via, seria promover a ampliação do Conselho, tirando dos novos membros o direito de veto. Em linhas gerais, essa tese se resumiria a transformar as atuais cadeiras rotativas em permanentes. “Seria uma estratégia cosmética e não mudaria a correlação de forças”, alerta Denilde. Ela acha, no entanto, que a tese da reforma limitada é a mais provável de ser colocada em prática. “EUA e Europa não parecem realmente dispostos a promover mudanças drásticas”.
Quando comenta as vitórias obtidas pela ONU, a pesquisadora faz questão de ressaltar os avanços obtidos na área de direitos humanos. “A ONU trouxe para o cenário internacional a agenda dos temas sociais”, comemora. Ela lembra que essa é uma luta que começa em 1948, com a publicação da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Na década de 1960, consolida-se a convicção – contra a vontade dos EUA – de que os direitos não são apenas políticos e civis, mas econômicos, sociais e culturais. Em 1994, a Conferência de Viena institui o conceito de “direitos indivisíveis” – o Estado deve garanti-los de forma global e articulada, e não isolada ou fragmentada.
Reforça-se a idéia não apenas do direito à vida, mas à vida com dignidade. “É uma evolução importante, até porque passou a ser concretamente incorporada às legislações de diversos países. No Brasil, por exemplo, a legislação sobre infância e adolescência e os direitos do consumidor são reflexos diretos dessa nova concepção”, completa. Ela não tem dúvidas: a consolidação da cultura dos direitos humanos como um valor universal aconteceu em grande parte graças à atuação da ONU. “É uma vitória extraordinária”, conclui.
Texto publicado no site do SINPRO-SP (www.sinprosp.org.br)
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