Fernando Henrique Cardoso, sociólogo.
Andou na moda falar de decoupling para dizer, em simples português, descolamento entre a economia brasileira e a internacional. Os efeitos da crise em nossa economia fizeram o termo sair de moda. Foi substituído por termo mais terno, "marolinha". Com o bicho-papão corroendo o mercado financeiro lá fora (na verdade, o sistema financeiro central quebrou) há certo aturdimento.
Não se sabe com que palavras qualificar o que anda pelo mundo: recessão prolongada, depressão, fim do unilateralismo americano na política, multipolaridade, não-polaridade, etc. Por aqui o governo prefere passar em marcha batida sobre o que nos azucrina. Em vez de desenhar quadros sombrios ou róseos para o mercado, faz o decoupling à moda brasileira: descola a economia da política, precipita o debate eleitoral e, nele, vale o discurso vazio.
É verdade que não somos os únicos a encobrir as angústias apelando para gestos sem conotação, sequer alusiva, aos fatos e circunstâncias. Basta mencionar a campanha bolivariana pela reeleição perpétua, uma quase-caricatura da política. O significado da democracia se esboroou na "consulta popular". Se o povo quer o bem-amado para sempre, pois que o tenha e, como disse nosso presidente Lula, se a prática ainda não é boa para o Brasil, é questão de tempo. Quando a cidadania amadurecer, encontrará a fórmula de felicidade perpétua...
Assisti na TV, por acaso, ao último comício eleitoral do presidente Chávez em Caracas e, confesso, fascinei-me. Ele chegou, simpático como sempre, um pouco mais gordo que o habitual, vestindo camisa-de-meia vermelha, abraçando toda a gente, sorrindo, e foi direto ao ponto. "Hoje não falarei muito, vamos cantar!", disse. E entoou uma canção amorosa de melodia fácil, repetindo o refrão "amor, amor, amor..." Conversou com um ou outro no palanque, incitando-os a também cantar, falou familiarmente com a plateia e finalizou: amor é votar sim no domingo! Por mais que no plano pessoal possa sentir até estima pelo personagem, não pude deixar de reconhecer no estilo algo que nos é habitual: o modelo Chacrinha de animação de auditório. Funciona, e como!
O descolamento entre a política e a realidade das pessoas (não só a economia), a repetição simbólica de gestos que guardam pouca relação com um ambiente racional, mas "ligam" o ator com a plateia e com a "sociedade", está se tornando regra nas atuais democracias de massas. Há algo de encantatório no modo como a política do gesto sem palavras (ou em que as palavras contam menos do que a forma) funciona, substituindo o discurso tradicional.
Quando me recordo do "sangue, suor e lágrimas" dito por Churchill ao se tornar primeiro-ministro em plena guerra contra o nazismo, do discurso em Fulton, quando disse que uma "cortina de ferro descia sobre a Europa", ou de vários pronunciamentos de Roosevelt, como o de posse em plena Depressão, célebre pela frase "nada há a temer, exceto o próprio medo", ou ainda de Getúlio Vargas no estádio do Vasco da Gama apelando aos trabalhadores, e comparo com a retórica atual, há um abismo a separá-los.
E não se diga que é fenômeno de países de "democracia pouco amadurecida". A entronização de Obama como imperador de todos os americanos, na magnífica posse no Capitólio, assemelhava-se a uma grande cena romana. O cenário era tão expressivo, a fusão simbólica do recém-eleito com os founding fathers e com os valores fundamentais da democracia americana eram tão fortes que obscureceram o conteúdo do discurso inaugural. E isso no caso de alguém que, por sua cor e mesmo por sua campanha, trouxe um significado imenso de renovação.
Ainda na semana passada, na primeira visita presidencial ao Congresso, o que foi dito sobre a crise econômica e sobre o futuro foi menos importante do que o reafirmar o "yes, we can", num cenário da pátria unida para perpetuar sua glória. Mesmo que o castelo financeiro esteja desabando, a América vencerá, era a mensagem. No caso, nada que ver com Chacrinha, o símile é outro: a invocação do pastor, a reafirmação da fé, e não a troca simbólica de favores, do bacalhau, da Bolsa-Família ou da canção de amor.
Faço estes comentários despretensiosos porque me preocupa o que possa vir a ocorrer no Brasil. A mídia e a sociedade cobram um discurso de oposição. Diz-se, e é certo, que ela deve unir-se se quiser vencer. Mas que discurso fazer? O racional, da crítica ao desmanche das instituições, do enlameamento cotidiano da política, deveria ganhar mais vigor, dizem. O grito de Jarbas Vasconcelos estava parado no ar e sua entrevista na Veja deu-lhe um sopro de vida. Mas foi o próprio senador quem mostrou os limites desse tipo de protesto: o governo e o próprio presidente banalizaram o dá-cá-toma-lá. É como nos computadores, quando se envia um e-mail e surge o aviso: a caixa está cheia. A caixa da revolta dos brasileiros contra o mau uso da política parece estar cheia. Temo que qualquer discurso "político" seja logo desqualificado pelos ouvintes.
Quer isso dizer que as oposições devem silenciar sobre a perda de substância das instituições, sobre o clientelismo e a corrupção larvar, tudo com a leniência de quem manda? Não. Mas precisam inventar uma maneira de comunicar a indignação e as críticas que toque na alma das pessoas. Este é o enigma da mensagem política, de governo ou de oposição. Tanto o modelo Chacrinha como o do discurso de pregador chegam à alma das pessoas. Não estou dizendo que a comunicação política se resolve pela supressão do discurso analítico. Isso seria rendermo-nos à ideia da política como mistificação (o que, aliás, não é o caso de Obama). Mas quando se dispõe de um ícone, como o Plano Real, por exemplo, ou quando o próprio candidato é um ícone, tudo fica mais fácil.
Em nosso caso, as oposições, além de articularem um discurso programático, condição necessária para quem se respeita e acredita nas instituições, deverão expressá-lo de forma a sensibilizar o eleitorado. Para tal não bastam a crítica convencional e a discussão da política, tal como ela ocorre no Congresso, nos partidos e na mídia. É preciso buscar os temas da vida que interessem ao povo. Ademais, a comunicação emotiva requer "fulanizar" a disputa para atribuir ao candidato virtudes que despertem o entusiasmo e a crença. Sem eles, a "caixa de entrada" das mensagens da sociedade continuará a dar o sinal de estar cheia e os ouvidos continuarão moucos aos conteúdos, por melhores que sejam. Pior ainda se não os tivermos. Mas só eles não bastam. Programa político só mobiliza a sociedade quando é vivido por intermédio do desempenho de personagens que tratam como próprias as questões sentidas pelo povo.
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República
Não se sabe com que palavras qualificar o que anda pelo mundo: recessão prolongada, depressão, fim do unilateralismo americano na política, multipolaridade, não-polaridade, etc. Por aqui o governo prefere passar em marcha batida sobre o que nos azucrina. Em vez de desenhar quadros sombrios ou róseos para o mercado, faz o decoupling à moda brasileira: descola a economia da política, precipita o debate eleitoral e, nele, vale o discurso vazio.
É verdade que não somos os únicos a encobrir as angústias apelando para gestos sem conotação, sequer alusiva, aos fatos e circunstâncias. Basta mencionar a campanha bolivariana pela reeleição perpétua, uma quase-caricatura da política. O significado da democracia se esboroou na "consulta popular". Se o povo quer o bem-amado para sempre, pois que o tenha e, como disse nosso presidente Lula, se a prática ainda não é boa para o Brasil, é questão de tempo. Quando a cidadania amadurecer, encontrará a fórmula de felicidade perpétua...
Assisti na TV, por acaso, ao último comício eleitoral do presidente Chávez em Caracas e, confesso, fascinei-me. Ele chegou, simpático como sempre, um pouco mais gordo que o habitual, vestindo camisa-de-meia vermelha, abraçando toda a gente, sorrindo, e foi direto ao ponto. "Hoje não falarei muito, vamos cantar!", disse. E entoou uma canção amorosa de melodia fácil, repetindo o refrão "amor, amor, amor..." Conversou com um ou outro no palanque, incitando-os a também cantar, falou familiarmente com a plateia e finalizou: amor é votar sim no domingo! Por mais que no plano pessoal possa sentir até estima pelo personagem, não pude deixar de reconhecer no estilo algo que nos é habitual: o modelo Chacrinha de animação de auditório. Funciona, e como!
O descolamento entre a política e a realidade das pessoas (não só a economia), a repetição simbólica de gestos que guardam pouca relação com um ambiente racional, mas "ligam" o ator com a plateia e com a "sociedade", está se tornando regra nas atuais democracias de massas. Há algo de encantatório no modo como a política do gesto sem palavras (ou em que as palavras contam menos do que a forma) funciona, substituindo o discurso tradicional.
Quando me recordo do "sangue, suor e lágrimas" dito por Churchill ao se tornar primeiro-ministro em plena guerra contra o nazismo, do discurso em Fulton, quando disse que uma "cortina de ferro descia sobre a Europa", ou de vários pronunciamentos de Roosevelt, como o de posse em plena Depressão, célebre pela frase "nada há a temer, exceto o próprio medo", ou ainda de Getúlio Vargas no estádio do Vasco da Gama apelando aos trabalhadores, e comparo com a retórica atual, há um abismo a separá-los.
E não se diga que é fenômeno de países de "democracia pouco amadurecida". A entronização de Obama como imperador de todos os americanos, na magnífica posse no Capitólio, assemelhava-se a uma grande cena romana. O cenário era tão expressivo, a fusão simbólica do recém-eleito com os founding fathers e com os valores fundamentais da democracia americana eram tão fortes que obscureceram o conteúdo do discurso inaugural. E isso no caso de alguém que, por sua cor e mesmo por sua campanha, trouxe um significado imenso de renovação.
Ainda na semana passada, na primeira visita presidencial ao Congresso, o que foi dito sobre a crise econômica e sobre o futuro foi menos importante do que o reafirmar o "yes, we can", num cenário da pátria unida para perpetuar sua glória. Mesmo que o castelo financeiro esteja desabando, a América vencerá, era a mensagem. No caso, nada que ver com Chacrinha, o símile é outro: a invocação do pastor, a reafirmação da fé, e não a troca simbólica de favores, do bacalhau, da Bolsa-Família ou da canção de amor.
Faço estes comentários despretensiosos porque me preocupa o que possa vir a ocorrer no Brasil. A mídia e a sociedade cobram um discurso de oposição. Diz-se, e é certo, que ela deve unir-se se quiser vencer. Mas que discurso fazer? O racional, da crítica ao desmanche das instituições, do enlameamento cotidiano da política, deveria ganhar mais vigor, dizem. O grito de Jarbas Vasconcelos estava parado no ar e sua entrevista na Veja deu-lhe um sopro de vida. Mas foi o próprio senador quem mostrou os limites desse tipo de protesto: o governo e o próprio presidente banalizaram o dá-cá-toma-lá. É como nos computadores, quando se envia um e-mail e surge o aviso: a caixa está cheia. A caixa da revolta dos brasileiros contra o mau uso da política parece estar cheia. Temo que qualquer discurso "político" seja logo desqualificado pelos ouvintes.
Quer isso dizer que as oposições devem silenciar sobre a perda de substância das instituições, sobre o clientelismo e a corrupção larvar, tudo com a leniência de quem manda? Não. Mas precisam inventar uma maneira de comunicar a indignação e as críticas que toque na alma das pessoas. Este é o enigma da mensagem política, de governo ou de oposição. Tanto o modelo Chacrinha como o do discurso de pregador chegam à alma das pessoas. Não estou dizendo que a comunicação política se resolve pela supressão do discurso analítico. Isso seria rendermo-nos à ideia da política como mistificação (o que, aliás, não é o caso de Obama). Mas quando se dispõe de um ícone, como o Plano Real, por exemplo, ou quando o próprio candidato é um ícone, tudo fica mais fácil.
Em nosso caso, as oposições, além de articularem um discurso programático, condição necessária para quem se respeita e acredita nas instituições, deverão expressá-lo de forma a sensibilizar o eleitorado. Para tal não bastam a crítica convencional e a discussão da política, tal como ela ocorre no Congresso, nos partidos e na mídia. É preciso buscar os temas da vida que interessem ao povo. Ademais, a comunicação emotiva requer "fulanizar" a disputa para atribuir ao candidato virtudes que despertem o entusiasmo e a crença. Sem eles, a "caixa de entrada" das mensagens da sociedade continuará a dar o sinal de estar cheia e os ouvidos continuarão moucos aos conteúdos, por melhores que sejam. Pior ainda se não os tivermos. Mas só eles não bastam. Programa político só mobiliza a sociedade quando é vivido por intermédio do desempenho de personagens que tratam como próprias as questões sentidas pelo povo.
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República
Um comentário:
E quem da oposição conhece os temas que interessa ao povo?
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