Autor: José Murilo de Carvalho
Publicado: Folha de São Paulo
Data: 03/06/2007
Em janeiro de 2006, escrevi, referindo-me ao tsunami do mensalão e refletindo, sem dúvida, uma suspeita geral, que um forte cheiro de pizza impregnava os ares da República.
Os acontecimentos posteriores demonstraram que se tratava de uma pizza gigantesca em cuja fabricação se empenharam políticos, juízes e parte do eleitorado. Muitos deputados mensaleiros tiveram a absolvição de seus pares e do eleitorado, que os devolveu ao Congresso. E quase ninguém foi condenado pela Justiça. Não previ, no entanto, que o tsunami se tornaria rotina.
Onda após onda de escândalos, numa sucessão aparentemente infindável, têm invadido o palco da política nacional.
Hannah Arendt falou da banalização do mal pelo nazismo. Nós banalizamos o assalto ao dinheiro do contribuinte. Ao cinismo dos assaltantes, seguiu-se o fatalismo dos assaltados.
Uma das perguntas que têm sido insistentemente feitas é se haveria mais corrupção hoje do que em outros períodos de nossa história e, em caso de resposta positiva, por que razão.
Uma resposta comum tem sido que não há mais corrupção, haveria é mais investigação. Em vez de um mal, teríamos um bem.
As repetidas operações da Polícia Federal e ações do Ministério Público desvendando novas roubalheiras mostrariam que o sistema está sendo eficaz na punição dos culpados.
É uma resposta interessada em absolver o governo e as instituições. Pode ser consoladora para quem a oferece, mas não é satisfatória.
É verdade que mais investigação revela mais crime, mas o que está acontecendo não tem paralelo na história republicana em seus momentos de liberdade de imprensa e funcionamento regular das instituições, como nos anos 1950 e 1960, até 1964.
Lama no Catete
Getulio Vargas foi virulentamente acusado pela imprensa de acobertar um mar de lama no Catete [no RJ, sede do governo então]. Mas quem viveu o período haverá de reconhecer que as acusações tinham por alvo o presidente e as pessoas ao seu redor. As denúncias não atingiam todos os poderes da República, não eram tão generalizadas como as de hoje. Não havia metástase. E, por causa das acusações, um presidente saiu da vida, mas entrou para a história.
Os militares, em 1964, assumiram o poder em nome do combate ao comunismo e à corrupção.
Mas as investigações dos IPMs [inquéritos policiais militares], feitas "manu militari", descobriram poucas provas da segunda (a primeira era mais fácil de comprovar, dada a elasticidade conferida à palavra subversão).
Metástase
Hoje, pelo contrário, uma imprensa livre revela semanalmente evidências de comportamento inadequado, antiético ou criminoso de representantes dos três Poderes. Há aumento de quantidade e alteração de qualidade da corrupção. Há mais gente, mais exemplos e maiores valores envolvidos. O próprio governo calculou em R$ 40 bilhões o rombo anual nos cofres públicos.
Pelo lado qualitativo, há mais sistema na roubalheira, a corrupção hoje funciona em redes, é mais organizada, mais profissional. Deu metástase.
Quais as razões de tal mutação? Corrupção tem a ver com valores e práticas, com oportunidades e com facilidades. Em tudo isso houve mudança.
Desde a ditadura, nossos valores e práticas se afastaram muito de padrões republicanos. Não concordo com os que jogam a culpa de tudo sobre o regime militar. Mas a geração que está no poder se formou à sua sombra, mesmo que fosse na oposição.
Uma das maiores perversidades do regime foi manter em funcionamento as instituições próprias da democracia. Sem liberdade, elas se tornavam uma farsa, e os que as operavam ou com elas se relacionavam lhes perderam todo o respeito. Além disso, 60 milhões de brasileiros começaram a votar no período da ditadura. Para esses milhões também o voto não constituía um instrumento de construção da representação, mas mera obrigação ou moeda de barganha.
As oportunidades de corrupção, por seu lado, multiplicaram-se. Elas variam na razão direta do tamanho do Estado, isto é, do volume dos bens públicos, empregos, compras, obras, regulamentos, disponível para manipulação, que cresceu exponencialmente. Com isso cresceu também o predomínio do Executivo sobre o Legislativo, seu poder de pressão e de cooptação.
Quase todos os escândalos revelados têm a ver com esses fatores: nepotismo, fraude em licitações e concorrências, compra de apoio parlamentar.
As facilidades, se não aumentaram, também não diminuíram. Elas têm a ver, sobretudo, com a impunidade. A afirmação parece contradizer o que se disse a propósito da ação da Polícia Federal e do Ministério Público.
Da história para a vida
Mas tais ações têm muito de espetáculo, não redundam em condenações. Um ou outro condenado o foi apenas em primeira instância. Ainda tem pela frente a rósea perspectiva de recursos, apelos, protelações, anulações, que fazem com que no Brasil ninguém com recursos para pagar bons advogados vá para a cadeia. Que temor têm da Justiça pessoas que cometem seus crimes dentro dos próprios palácios dos três Poderes?
Hoje, como disse muito bem Chico Alencar [deputado federal pelo RJ e líder da bancada do PSOL na Câmara], graças à corrupção, os políticos saem da história para entrar na vida.
José Bonifácio definiu a escravidão como um câncer que corroía as entranhas do país. A corrupção é o câncer que corrói hoje as entranhas da República.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO - historiador, autor de "D. Pedro 2o - Ser ou Não Ser" (Cia. das Letras) e "A Construção da Ordem e Teatro de Sombras" (ed. Civilização Brasileira).
Publicado: Folha de São Paulo
Data: 03/06/2007
Em janeiro de 2006, escrevi, referindo-me ao tsunami do mensalão e refletindo, sem dúvida, uma suspeita geral, que um forte cheiro de pizza impregnava os ares da República.
Os acontecimentos posteriores demonstraram que se tratava de uma pizza gigantesca em cuja fabricação se empenharam políticos, juízes e parte do eleitorado. Muitos deputados mensaleiros tiveram a absolvição de seus pares e do eleitorado, que os devolveu ao Congresso. E quase ninguém foi condenado pela Justiça. Não previ, no entanto, que o tsunami se tornaria rotina.
Onda após onda de escândalos, numa sucessão aparentemente infindável, têm invadido o palco da política nacional.
Hannah Arendt falou da banalização do mal pelo nazismo. Nós banalizamos o assalto ao dinheiro do contribuinte. Ao cinismo dos assaltantes, seguiu-se o fatalismo dos assaltados.
Uma das perguntas que têm sido insistentemente feitas é se haveria mais corrupção hoje do que em outros períodos de nossa história e, em caso de resposta positiva, por que razão.
Uma resposta comum tem sido que não há mais corrupção, haveria é mais investigação. Em vez de um mal, teríamos um bem.
As repetidas operações da Polícia Federal e ações do Ministério Público desvendando novas roubalheiras mostrariam que o sistema está sendo eficaz na punição dos culpados.
É uma resposta interessada em absolver o governo e as instituições. Pode ser consoladora para quem a oferece, mas não é satisfatória.
É verdade que mais investigação revela mais crime, mas o que está acontecendo não tem paralelo na história republicana em seus momentos de liberdade de imprensa e funcionamento regular das instituições, como nos anos 1950 e 1960, até 1964.
Lama no Catete
Getulio Vargas foi virulentamente acusado pela imprensa de acobertar um mar de lama no Catete [no RJ, sede do governo então]. Mas quem viveu o período haverá de reconhecer que as acusações tinham por alvo o presidente e as pessoas ao seu redor. As denúncias não atingiam todos os poderes da República, não eram tão generalizadas como as de hoje. Não havia metástase. E, por causa das acusações, um presidente saiu da vida, mas entrou para a história.
Os militares, em 1964, assumiram o poder em nome do combate ao comunismo e à corrupção.
Mas as investigações dos IPMs [inquéritos policiais militares], feitas "manu militari", descobriram poucas provas da segunda (a primeira era mais fácil de comprovar, dada a elasticidade conferida à palavra subversão).
Metástase
Hoje, pelo contrário, uma imprensa livre revela semanalmente evidências de comportamento inadequado, antiético ou criminoso de representantes dos três Poderes. Há aumento de quantidade e alteração de qualidade da corrupção. Há mais gente, mais exemplos e maiores valores envolvidos. O próprio governo calculou em R$ 40 bilhões o rombo anual nos cofres públicos.
Pelo lado qualitativo, há mais sistema na roubalheira, a corrupção hoje funciona em redes, é mais organizada, mais profissional. Deu metástase.
Quais as razões de tal mutação? Corrupção tem a ver com valores e práticas, com oportunidades e com facilidades. Em tudo isso houve mudança.
Desde a ditadura, nossos valores e práticas se afastaram muito de padrões republicanos. Não concordo com os que jogam a culpa de tudo sobre o regime militar. Mas a geração que está no poder se formou à sua sombra, mesmo que fosse na oposição.
Uma das maiores perversidades do regime foi manter em funcionamento as instituições próprias da democracia. Sem liberdade, elas se tornavam uma farsa, e os que as operavam ou com elas se relacionavam lhes perderam todo o respeito. Além disso, 60 milhões de brasileiros começaram a votar no período da ditadura. Para esses milhões também o voto não constituía um instrumento de construção da representação, mas mera obrigação ou moeda de barganha.
As oportunidades de corrupção, por seu lado, multiplicaram-se. Elas variam na razão direta do tamanho do Estado, isto é, do volume dos bens públicos, empregos, compras, obras, regulamentos, disponível para manipulação, que cresceu exponencialmente. Com isso cresceu também o predomínio do Executivo sobre o Legislativo, seu poder de pressão e de cooptação.
Quase todos os escândalos revelados têm a ver com esses fatores: nepotismo, fraude em licitações e concorrências, compra de apoio parlamentar.
As facilidades, se não aumentaram, também não diminuíram. Elas têm a ver, sobretudo, com a impunidade. A afirmação parece contradizer o que se disse a propósito da ação da Polícia Federal e do Ministério Público.
Da história para a vida
Mas tais ações têm muito de espetáculo, não redundam em condenações. Um ou outro condenado o foi apenas em primeira instância. Ainda tem pela frente a rósea perspectiva de recursos, apelos, protelações, anulações, que fazem com que no Brasil ninguém com recursos para pagar bons advogados vá para a cadeia. Que temor têm da Justiça pessoas que cometem seus crimes dentro dos próprios palácios dos três Poderes?
Hoje, como disse muito bem Chico Alencar [deputado federal pelo RJ e líder da bancada do PSOL na Câmara], graças à corrupção, os políticos saem da história para entrar na vida.
José Bonifácio definiu a escravidão como um câncer que corroía as entranhas do país. A corrupção é o câncer que corrói hoje as entranhas da República.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO - historiador, autor de "D. Pedro 2o - Ser ou Não Ser" (Cia. das Letras) e "A Construção da Ordem e Teatro de Sombras" (ed. Civilização Brasileira).
Nenhum comentário:
Postar um comentário