domingo, 8 de março de 2009

Ditaduras

Há alguns dias a Folha de São Paulo publicou um editorial classificando o regime militar brasileiro como uma "ditabranda" em comparação com os demais governos autoritários da América Latina, que teriam sido, esses sim, "ditaduras". Embora o argumento seja utilizado há muito pela direita brasileira, a reação foi bastante intensa, tanto por parte da comunidade acadêmica quanto dos colegas blogueiros, e você pode ler balanços detalhados e apaixonados sobre a discussão nos sítios do Pedro Doria, do Idelber Avelar e do Sergio Leo, com foco na questão da responsabilidade da imprensa. Minha participação no debate vai por outro lado, justamente o da perspectiva latino-americana.

Passei boa parte dos últimos cinco anos viajando pelo Cone Sul em trabalhos de cooperação entre os movimentos sociais da região. O contraste entre a força das manifestações pró democracia e direitos humanos na Argentina, Chile e Uruguai é intenso com relação ao Brasil. Nos países vizinhos a rejeição às ditaduras é bem mais presente do que por aqui, onde ocasionalmente até políticos de esquerda fazem comentários nostálgicos sobre os grandes projetos de desenvolvimento econômico dos militares.

Evidentemente, as ditaduras da Argentina (sobretudo a de 1976-1983), do Chile e do Uruguai se defrontaram com movimentos de esquerda, armada ou não, bem mais fortes do que os que existiam no Brasil da década de 1960. O conflito político em geral foi bem mais violento lá do que cá, sendo que na Argentina foram utilizados métodos que mais se assemelham ao Holocausto nazista, ao ponto dos massacres do período serem classificados como genocídio. Contudo, a realidade da tortura, do arbítrio, das perseguições foi notavelmente semelhante na região inteira. Todas as ditaduras se parecem, ainda que a contagem dos cadáveres possa variar.

A melhor análise que ouvi sobre o assunto veio - de todos os lugares - de um coronel do Exército brasileiro. Aliás, um oficial brilhante, como muitas vezes costumo encontrar nas Forças Armadas. Conversando sobre o tema da ditadura, ele utilizou de início argumentos parecidos ao editorial da Folha, para concluir de maneira surpreendente: "A questão é que, para uma mãe que perdeu o filho, ou alguém que ficou sem um ente querido, não importa se os mortos foram 500, 5 mil ou 50 mil. A perda emocional é insubstituível e essa é a questão fundamental sobre os conflitos do governo militar."

A ditadura brasileira foi tão cruel como a dos vizinhos, apenas foi mais habilidosa politicamente, oferecendo à classe média diversas válvulas de escape, em particular pela prosperidade material, como no setor público em expansão, com empregos bem remunerados nas empresas estatais. Um quadro que contrasta com a catástrofe dos militares argentinos, ou o instável ritmo stop and go do regime de Pinochet no Chile (pelo menos até a crise de 1982 e a guinada para uma política menos ideológica e mais pragmática).

Torço para que a consciência brasileira com respeito às ditaduras da região se aprimore e nesse ponto temos muito o que aprender com os vizinhos. Confesso minha vergonha diante do debate atual, enquanto meu amigo Patricio escreve da Argentina contando as novidades sobre a inauguração de centros da memória sobre o período autoritário. Será que um dia teremos algo semelhante para expor?

Mauricio Santoro

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