sexta-feira, 6 de outubro de 2006

O escândalo é o inventor

Apurados os votos, declarados os mesmos vencedores, nem sempre os de sempre, e o grande escândalo desse processo eleitoral acabará sendo a soberba de um presidente solitário, possivelmente reeleito, diante de uma nação econômica e regionalmente dividida quanto à importância de sua (falta de) ética para a sua política. O “rouba mas faz” que tatuava o populismo de direita em nosso país, do ademarismo ao malufismo, ganhou grife à esquerda, bastando pequenas revisões no conteúdo deste slogan implícito da campanha eleitoral de Lula: “rouba (mais) mas faz (mais) para os pobres”. O que importa é “a força do povo”. Ontem, ela elegia Collor; hoje elege Lula.
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A proximidade ou distância entre o discurso de campanha do candidato-presidente Lula e a retórica de outros líderes populistas de esquerda da América do Sul é, para todos os efeitos, uma quimera acadêmica, já que da mesma maneira com que, no debate da questão racial, Caetano e Gil anunciaram que o Haiti “é e não é aqui”, podemos dizer que a Venezuela de Chávez (ou a Bolívia de Morales) “é e não é aqui”. Pouco importa. São temas para os quais o “igualzinho” e o “totalmente diferente” são posições igualmente pueris.
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Pouco importa também se as pessoas que foram arremessadas por Lula no seu baú das responsabilidades eram amigos, companheiros ou apenas conhecidos. A reconstrução das estruturas elementares de parentesco ao redor do chefe do clã petista, diferenciando entre as tribos do PT (Articulação, Articulação de Esquerda, Democracia Socialista, e sei lá que mais) e suas respectivas responsabilidades nos escândalos, é problema político, sem dúvida, mas com conseqüências restritas àqueles que têm algum compromisso com o futuro político do PT. Isto é, o tema importa apenas à parcela dos filiados e simpatizantes do PT que, como “militantes”, está cada vez mais emaranhada na rede de cargos de confiança do governo federal, e mais exposta, portanto, aos vigilantes olhos do udenismo que dorme na ora cínica ora cética alma do conservadorismo brasileiro.
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Importa a todos, entretanto, compreender como Lula se descolou dos escândalos que ele mesmo arremessou no colo do PT, o partido que ele ajudou a fundar, e que o sustentou política e financeiramente desde que abandonou a profissão de torneiro mecânico e que deixou de ser sindicalista. Importa saber também como esses escândalos foram absorvidos e depois absolvidos por parcelas importantes de uma opinião pública atenta, a quem não faltou informação e que, em alguma medida, aderiu ao populismo neoliberal de Lula, apesar das defecções não terem sido em número desprezível. Elucidemos algo sobre esses dois pequenos pontos, e creio que teremos realizado uma pequena contribuição a um debate que teima em permanecer submerso na opinião pública de nosso país.
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Há algo de denso e poluído no ar, remanescente da campanha eleitoral de 2002. Há uma poeira que ainda não assentou. Quatro anos atrás, os marqueteiros baianos de Lula que trabalhavam para Maluf venderam um candidato de centro-esquerda, flexível em sua disposição para fazer alianças e concessões ao neoliberalismo em nome da governabilidade. Quem não entendeu essa mensagem em 2002, e se sentiu traído quando Lula virou presidente, não entendeu nem por que Lula se elegeu nem o significado do voto que nele depositou. Em 2006, outros marqueteiros baianos tiveram que vender Lula, já que os primeiros tinham sido arremessados no baú das responsabilidades. Os novos baianos venderam um Lula presidencial, pai dos mais pobres, e maior do que o PT e suas redes de corrupção. De novo, quem não entende esta mensagem, não entende hoje nem por que Lula se reelege(rá), apesar dos escândalos, nem o voto que nele é depositado por gente esclarecida.
Pior. Desentende a história de um dos maiores protagonistas da política brasileira na virada para o século XXI e não percebe que durante as últimas duas décadas, desde 1986, foi o PT quem garantiu, política e financeiramente, as condições para que o fenômeno Lula subsistisse, sobrevivesse, vingasse e protagonizasse os eventos inesquecíveis da história republicana brasileira de que participou, particularmente como candidato presidencial em cinco eleições consecutivas. Em 1989, Lula foi o candidato presidencial da esquerda, que tomou o lugar de Brizola em um segundo turno que Leonel teria vencido. O PT havia derrotado Brizola, mas a direita havia vencido. Em 1994 e 1998, Lula foi o candidato presidencial de uma socialdemocracia antitucana, que buscava ser uma alternativa “real” de poder orientada pelo nacional-desenvolvimentismo enquanto alternativa para a gestão “neoliberal” da economia no governo FHC.
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O PT perdeu novamente, mas consolidou-se como alter ego do PSDB de FHC. Em 2002, o candidato presidencial Lula convergiu definitivamente para o centro, angariou mais adesões no campo democrático que seu adversário, José Serra, e tornou-se uma alternativa tolerável para o campo de forças econômicas que “precisam apoiar todo presidente que não quer cair”.
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O PT chegava finalmente ao poder. Com Lula à frente, mas nunca só. Com ele, chegava uma comissão de frente a quem caberia, efetivamente, a responsabilidade de governar o Executivo Federal: José Dirceu, o secretário-geral do partido, Palocci, o suplente de Celso Daniel no “programa de governo”, Gushiken, o homem da inteligência, e o afinador das palavras, Luiz Dulci. Não faltou lugar para antigos amigos, como Clara Ant e Marco Aurélio Garcia. E, como sempre, apareceram os oportunistas de última hora, que arrombaram a festa para achar sua agenda perdida. Agora, pela quinta vez, buscando sua reeleição, o (pela última vez) candidato Lula continua sendo, desde sempre e antes de tudo, o vértice de uma estrutura de poder que reponde pelo nome de Partido dos Trabalhadores, sem a qual o pentacandidato Lula jamais seria sequer concebível.
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Lula é, portanto, uma invenção política. Uma invenção no sentido positivo do termo, já que o político Lula, isto é, como ele aparece para o público e o que ele diz ou deixa de dizer frente às câmaras de televisão, é uma criação inteligente, útil, ainda que não completamente eficaz; um invento, portanto, cuja autoria só pode ser atribuída coletivamente àqueles que dirigiram e dirigem o partido que o sustenta desde que ele se profissionalizou em política. O próprio cidadão e militante do PT é sem dúvida um dos autores da obra, mas muitos outros colaboraram com ele para criar e recriar o “candidato” Lula e, finalmente, o “presidente” Lula. É concebível até que alguns tenham colaborado mais do que o próprio cidadão Luiz Inácio Lula da Silva na sua invenção política.
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É assustador perceber como parcelas informadas da sociedade civil organizada ignoram, depois de quatro anos, que quase todos esses colaboradores de criação foram arremessados por Lula no baú das responsabilidades. É acintoso perceber como não percebem que testemunhamos mais um caso da criatura se voltando contra seu criador, pois o PT sempre foi maior que Lula, ainda que este sempre tivesse sido a maior “criação” do partido.
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Este Lula de 2006, supostamente “maior que o PT”, que os novos baianos logram vender (não sem a pena amiga de alguns intelectuais mais inteligentes que suas escolhas), nunca tomou contornos reais durante o seu primeiro mandato presidencial. O tamanho da crise política que perdurou durante os últimos quatro anos sempre foi do tamanho da crise do PT, o partido que inventou o “presidente” Lula.
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E agora se opera a olhos nus uma nova reinvenção de Lula: o estadista acima de todos os partidos (não só do PT), homem acima de todas as instituições (não só do Executivo Federal), de valores éticos acima da lei (e não só da polêmica e do debate público) e de vida moral sempre acima dos escândalos que acometem a (quase) todos que participaram de sua invenção.
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Para esta reinvenção que transcorrerá ao longo do segundo mandato, o cidadão Lula se desonera da condição de militante do PT, abandona e diversifica palanques e aliados conforme conveniências, e chama para a empreitada cidadãos em quem identifica a capacidade de contribuir para aquilo que parece ser sua “última missão” política. Tudo leva a crer que Lula quer, nesse segundo mandato, alcançar certa forma de sacralização junto às camadas menos favorecidas da população. A experiência de receber agradecimentos por esmolas federais ao invés de ter que pedir votos parece tê-lo emocionado, e agora considera-se imperialmente destinado a entrar para a história como o melhor presidente que o país já teve.
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São emoções e ambições que cabem a qualquer cidadão que ganhou o direito de dirigir o país por oito anos e que hoje pensa a política sob uma ótica personalista, cristã e instrumental. Mas nunca é tarde para lembrar que os homens são medidos pelo tamanho de suas ambições, e quem perde concurso tão disputado em busca do pódio máximo deve estar alerta para a altura da queda. Nunca é demais lembrar que a alternativa que resta para quem perde o posto do “melhor que já existiu” é continuar na disputa pelo título do “pior que jamais haverá”.
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O Presidente Lula pode continuar arremessando companheiros de partido no baú das responsabilidades ao longo dos próximos quatro anos; Mercadante que se cuide. O problema dos escândalos no entorno da presidência e de sua campanha à reeleição não reside na mais nova lista de petistas destinados ao corredor polonês do partido. O problema dos escândalos é que, como quase todos os companheiros da comissão de frente foram jogados por Lula no baú das responsabilidades – o homem-forte, o homem da banca, o homem da inteligência, o churrasqueiro, e por aí vai – temos um presidente cada vez mais solitário, insulado em seu mundo, buscando interlocutores políticos entre o que é essencialmente um grupo novo de “colegas de trabalho”.
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É provável que, em algum momento, a combinação deste insulamento, do tom imperial repleto de auto-referências e comparações históricas lisonjeiras, e da própria dificuldade em engajar com a “nova turma” e suas idiossincrasias leve o presidente reeleito a algum gesto criativo que demarque sua reinvenção. A reinvenção talvez seja obra coletiva, mas ninguém sabe quem será convidado pra esta festa nobre. Sabemos que o cidadão Lula estará lá, e que desta vez, livre do partido que o pariu, será o principal protagonista da criação, mais do que nunca inventor de um “presidente reeleito” que, mais do que nunca, dialogará somente para cima, bem para cima, com os que garantem que ele não caia, e bem para baixo, com a parcela mais desfavorecida da camada dos menos favorecidos, que lhe dá apoio hoje e não sem razões.
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Durante o primeiro mandato, o escândalo foi o PT, inventor do Lula presidente. Desejo toda a sorte ao presidente em seu segundo mandato. Vai precisar dela. Hoje, Lula se reinventa praticamente sozinho, e a criatura que ele inventar não terá como se voltar contra seu criador maior, o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. O grande escândalo será ele, ali, só.
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José Eisenberg é professor do Iuperj e pesquisador do Cedes (Centro de Estudos Direito e Sociedade) desta instituição. Entre outros, escreveu A democracia depois do liberalismo (Relume-Dumará, 2003).

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