07/09/2006
O voto nulo
A pedido de leitores, faço hoje algumas considerações sobre o voto nulo. Ao contrário do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que desestimula até onde pode essa prática, não vejo nenhum problema em invalidar o voto, se essa for a vontade do sufragante. Não faz nenhum sentido dar ao eleitor o poder de decidir quais serão nossos governantes e, ao mesmo tempo, querer dizer como ele deve votar. Ou ele é um cidadão pleno, capaz de tomar suas próprias decisões, inclusive a de não participar do processo político --direito, aliás, que lhe é constitucionalmente negado--, ou deveríamos desistir da democracia. Receio, entretanto, que já esteja me perdendo. Não pretendo discutir a obrigatoriedade do voto, o que já fiz numa coluna antiga, mas apenas sua anulação. Embora as pessoas estejam desistindo de invalidar seus sufrágios na corrida presidencial --segundo o Datafolha, a propensão a escolher o nulo ou o branco caiu de 10% em agosto de 2005 para 5% agora--, porção bastante expressiva dos eleitores pretende fazê-lo nas proporcionais. A pesquisa que foi a campo nos dias 21 e 22 de agosto mostrou que 18% dos eleitores pretendem anular seu voto para deputado federal. Em relação aos legisladores estaduais, essa proporção é de 16%. São cifras impressionantes quando contrastadas com a taxa de votos nulos verificada em 2002, que foi de 2,9% em cada um desses pleitos. Tal comparação, é preciso dizê-lo, coloca um problema metodológico. Não existem pesquisas semelhantes relativas a eleições anteriores. Não se sabe, portanto, se essa intenção de votar nulo para cargos do Legislativo ocorreu em outros pleitos nesta fase da campanha. De resto, ignora-se também quanto da disposição para anular o voto de fato se materializa. A urna eletrônica não tem a tecla "nulo", e o TSE jamais explica ao eleitor como ele deve proceder para invalidar seu sufrágio. (Precisa digitar um número que não corresponda a nenhum candidato, como 99, e apertar o botão "confirma").Embora a pesquisa não o demonstre, parece claro que tamanho desalento em relação ao Legislativo está relacionado à sucessão de escândalos envolvendo parlamentares a que assistimos nos últimos anos: anões do Orçamento, compra de votos para a reeleição, mensalão, sanguessugas, para mencionar apenas os grandes. A situação é de fato exasperante e reforça a vontade de mandar todas as "suas excelências" a um lugar cujo nome não convém escrever numa página nobre como esta. Não creio, entretanto, que o destempero verbal e a invalidação sejam a melhor forma de insurgir-se contra o "statu quo". Já se foram os tempos em que eu defendia o voto nulo "pela anulação do Estado".Outro ponto que exige esclarecimento é o que acontece na remotíssima possibilidade de os nulos excederem os 50%. A questão é polêmica. O que o Código Eleitoral (lei nº 4.737/65) afirma em seu artigo 224 é que "se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias".A primeira dificuldade é tentar compreender o que significa "nulidade". Em minha modesta interpretação "nulidade" e "votos nulos" não são exatamente sinônimos. Como sabe qualquer criança que já tenha aberto um vade-mécum, nulidade é a ineficácia de um ato jurídico. No caso do voto, precisa ser pronunciada por um juiz eleitoral, como dá a entender o artigo 219 do mesmo Código Eleitoral. Ela ocorre em hipóteses como irregularidadades na mesa, no material e no horário da votação, entre outras previstas nos artigos 220 a 223 do diploma. Minha interpretação, entretanto, não tem a menor importância. Quem manda em eleições é o TSE, que tem jurisprudência firmada sobre o assunto. O problema é que há precedentes para os dois lados. O acórdão nº 3.005/2001 não só equipara nulidades a votos nulos como ainda manda que os dois sejam somados para efeitos de anulação de pleito. Já o julgamento do mandado de segurança nº 3.438, de 2006, mandou distinguir as nulidades proferidas por juiz das "manifestações apolíticas" do eleitor só considerar as primeiras. Caberia ao TSE esclarecer o quanto antes qual a regra que vale. O eleitor tem o direito de conhecer todas as implicações de seu voto antes de digitá-lo na urna eletrônica.Seja como for, parece-me que as chances de os nulos atingirem 50% dos votos no plano nacional ou mesmo nos Estados são mais ou menos as mesmas de o candidato presidencial do PSTU --contra burguês, vote 16-- sair vitorioso. Com o advento das urnas eletrônicas, é cadente a proporção dos votos inválidos. Em pleitos passados, o nulo chegou a representar 12% do universo; hoje está na casa dos 2%. Mesmo que generosas camadas da classe média insatisfeitas com "tudo que aí está" decidam anular seu voto, dificilmente teríamos 10% de sufrágios inválidos. Cada ponto percentual representa, no Brasil, cerca de 1,2 milhão de eleitores.Como já disse, cada um é dono de seu voto, e o nulo é tão legítimo como escolher representantes ou votar em branco ou mesmo faltar ao pleito e pagar a multa prevista em lei. Quem, entretanto, fizer alguns cálculos mentais rapidamente perceberá que votar nulo é a pior resposta que podem dar aqueles que estão interessados em melhorar a qualidade da representação. Se, por temer eleger picaretas, justamente os que estão mais preocupados com a ética no Congresso deixassem de votar, teríamos uma legislatura ainda menos selecionada no que diz respeito a esse critério. Em suma, como diz o adágio popular, se ficar o bicho come, se correr o bicho pega.Infelizmente, não existem soluções mágicas para mudar o triste panorama político do Brasil. O caminho é penoso. Precisamos insistir na democracia, cujos resultados são mesmo lentos e ainda dependem de outras iniciativas, como a punição das pessoas envolvidas nos vários escândalos a que assistimos. É bobagem falar em reforma política e outras panacéias. Embora ganhos incrementais sejam possíveis --eu não pestanejaria em acabar com o voto obrigatório, por exemplo--, não são novas leis que vão mudar a natureza de nossos governantes e parlamentares. Eles se tornarão melhores à medida que o eleitor os escolha melhor, o que dá trabalho e exige um longo aprendizado. Até podemos nos revoltar e anular o voto, mas isso, tampouco, resolve nada.
Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
O voto nulo
A pedido de leitores, faço hoje algumas considerações sobre o voto nulo. Ao contrário do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que desestimula até onde pode essa prática, não vejo nenhum problema em invalidar o voto, se essa for a vontade do sufragante. Não faz nenhum sentido dar ao eleitor o poder de decidir quais serão nossos governantes e, ao mesmo tempo, querer dizer como ele deve votar. Ou ele é um cidadão pleno, capaz de tomar suas próprias decisões, inclusive a de não participar do processo político --direito, aliás, que lhe é constitucionalmente negado--, ou deveríamos desistir da democracia. Receio, entretanto, que já esteja me perdendo. Não pretendo discutir a obrigatoriedade do voto, o que já fiz numa coluna antiga, mas apenas sua anulação. Embora as pessoas estejam desistindo de invalidar seus sufrágios na corrida presidencial --segundo o Datafolha, a propensão a escolher o nulo ou o branco caiu de 10% em agosto de 2005 para 5% agora--, porção bastante expressiva dos eleitores pretende fazê-lo nas proporcionais. A pesquisa que foi a campo nos dias 21 e 22 de agosto mostrou que 18% dos eleitores pretendem anular seu voto para deputado federal. Em relação aos legisladores estaduais, essa proporção é de 16%. São cifras impressionantes quando contrastadas com a taxa de votos nulos verificada em 2002, que foi de 2,9% em cada um desses pleitos. Tal comparação, é preciso dizê-lo, coloca um problema metodológico. Não existem pesquisas semelhantes relativas a eleições anteriores. Não se sabe, portanto, se essa intenção de votar nulo para cargos do Legislativo ocorreu em outros pleitos nesta fase da campanha. De resto, ignora-se também quanto da disposição para anular o voto de fato se materializa. A urna eletrônica não tem a tecla "nulo", e o TSE jamais explica ao eleitor como ele deve proceder para invalidar seu sufrágio. (Precisa digitar um número que não corresponda a nenhum candidato, como 99, e apertar o botão "confirma").Embora a pesquisa não o demonstre, parece claro que tamanho desalento em relação ao Legislativo está relacionado à sucessão de escândalos envolvendo parlamentares a que assistimos nos últimos anos: anões do Orçamento, compra de votos para a reeleição, mensalão, sanguessugas, para mencionar apenas os grandes. A situação é de fato exasperante e reforça a vontade de mandar todas as "suas excelências" a um lugar cujo nome não convém escrever numa página nobre como esta. Não creio, entretanto, que o destempero verbal e a invalidação sejam a melhor forma de insurgir-se contra o "statu quo". Já se foram os tempos em que eu defendia o voto nulo "pela anulação do Estado".Outro ponto que exige esclarecimento é o que acontece na remotíssima possibilidade de os nulos excederem os 50%. A questão é polêmica. O que o Código Eleitoral (lei nº 4.737/65) afirma em seu artigo 224 é que "se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias".A primeira dificuldade é tentar compreender o que significa "nulidade". Em minha modesta interpretação "nulidade" e "votos nulos" não são exatamente sinônimos. Como sabe qualquer criança que já tenha aberto um vade-mécum, nulidade é a ineficácia de um ato jurídico. No caso do voto, precisa ser pronunciada por um juiz eleitoral, como dá a entender o artigo 219 do mesmo Código Eleitoral. Ela ocorre em hipóteses como irregularidadades na mesa, no material e no horário da votação, entre outras previstas nos artigos 220 a 223 do diploma. Minha interpretação, entretanto, não tem a menor importância. Quem manda em eleições é o TSE, que tem jurisprudência firmada sobre o assunto. O problema é que há precedentes para os dois lados. O acórdão nº 3.005/2001 não só equipara nulidades a votos nulos como ainda manda que os dois sejam somados para efeitos de anulação de pleito. Já o julgamento do mandado de segurança nº 3.438, de 2006, mandou distinguir as nulidades proferidas por juiz das "manifestações apolíticas" do eleitor só considerar as primeiras. Caberia ao TSE esclarecer o quanto antes qual a regra que vale. O eleitor tem o direito de conhecer todas as implicações de seu voto antes de digitá-lo na urna eletrônica.Seja como for, parece-me que as chances de os nulos atingirem 50% dos votos no plano nacional ou mesmo nos Estados são mais ou menos as mesmas de o candidato presidencial do PSTU --contra burguês, vote 16-- sair vitorioso. Com o advento das urnas eletrônicas, é cadente a proporção dos votos inválidos. Em pleitos passados, o nulo chegou a representar 12% do universo; hoje está na casa dos 2%. Mesmo que generosas camadas da classe média insatisfeitas com "tudo que aí está" decidam anular seu voto, dificilmente teríamos 10% de sufrágios inválidos. Cada ponto percentual representa, no Brasil, cerca de 1,2 milhão de eleitores.Como já disse, cada um é dono de seu voto, e o nulo é tão legítimo como escolher representantes ou votar em branco ou mesmo faltar ao pleito e pagar a multa prevista em lei. Quem, entretanto, fizer alguns cálculos mentais rapidamente perceberá que votar nulo é a pior resposta que podem dar aqueles que estão interessados em melhorar a qualidade da representação. Se, por temer eleger picaretas, justamente os que estão mais preocupados com a ética no Congresso deixassem de votar, teríamos uma legislatura ainda menos selecionada no que diz respeito a esse critério. Em suma, como diz o adágio popular, se ficar o bicho come, se correr o bicho pega.Infelizmente, não existem soluções mágicas para mudar o triste panorama político do Brasil. O caminho é penoso. Precisamos insistir na democracia, cujos resultados são mesmo lentos e ainda dependem de outras iniciativas, como a punição das pessoas envolvidas nos vários escândalos a que assistimos. É bobagem falar em reforma política e outras panacéias. Embora ganhos incrementais sejam possíveis --eu não pestanejaria em acabar com o voto obrigatório, por exemplo--, não são novas leis que vão mudar a natureza de nossos governantes e parlamentares. Eles se tornarão melhores à medida que o eleitor os escolha melhor, o que dá trabalho e exige um longo aprendizado. Até podemos nos revoltar e anular o voto, mas isso, tampouco, resolve nada.
Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
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