Felizmente o tema do socialismo volta à discussão! É claro que há grupos que, mesmo após a derrocada do bloco socialista, não deixaram de pregar, anunciar e discutir - muitas vezes de modo dogmático - o socialismo como a única saída possível para a "barbárie capitalista". Mas, muitos se afastaram dessa discussão, até como uma forma de se preservar da dor da frustração frente às esperanças depositadas nesse sistema econômico-social que se sucumbiu (ou parecer ter sucumbido) frente ao capitalismo. Com isso, muitas das propostas de alternativas passaram a ser formuladas em termos muito abstratos, marcados quase que exclusivamente por valores éticos e ecológicos, sem muita preocupação com o "desenho institucional e econômico-político". E sem diretrizes que mostrem ou indiquem o formato institucional da política e economia, essas propostas genéricas não oferecem critérios para orientar as nossas lutas e ações sociais e políticas.
Afirmações do tipo "a nova sociedade será espiritual e viverá em harmonia com todos os seres vivos e com o Planeta" são importantes para manter o horizonte de desejo, mas não oferecem direções e critérios para lutas concretas. Com isso, surge uma distância grande entre esses discursos cheios de desejos bons e as lutas e ações locais concretas. Por isso, eu afirmei que felizmente o tema do socialismo está voltando a ser discutido em setores comprometidos com a causa da vida dos pobres e dos dominados. Um exemplo disso é a publicação nos últimos dias, no Adital, de dois artigos que merecem ser lidos e discutidos ("Estatismo é a alternativa?", de Manfredo A. Oliveira e "Socialismo, contradições e perspectivas", de Frei Betto).
Eu penso que não poderemos construir um novo projeto de sociedade e de civilização sem retomarmos as discussões sobre o socialismo, os seus erros e acertos, suas semelhanças e diferenças com o capitalismo, seus potenciais e limites. Dessa discussão podemos reafirmar o socialismo como uma alternativa ao capitalismo ou "inventar" outro projeto, mas não podemos evitar essa discussão. E espaços como Adital pode ser um lugar para esse tipo de debate.
E a importância desse debate se mostra mais claro se levarmos em consideração que até Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, escreveu nos últimos dias que a atual crise econômica deixará como um dos legados "uma batalha de alcance global em torno de idéias [...] em torno de que tipo de sistema econômico será capaz de trazer o máximo de benefício para maior quantidade de pessoas". E que "em boa parte do mundo, [...], a batalha entre capitalismo e socialismo - ou ao menos entre o que muitos estadunidenses consideram socialismo - segue na ordem do dia" ("As mensagens tóxicas de Wall Street").
Uma primeira pergunta que pode aparecer na discussão sobre a alternativa ao capitalismo é: qual é a diferença fundamental entre o capitalismo e socialismo? Uma das idéias bastante difundida sobre esse assunto - entre "a esquerda pós-moderna e/ou ecológica" e até mesmo nos setores da "esquerda cristã" - é que não haveria muita diferença entre esses dois sistemas econômico-social-político. Os dois seriam "filhos da modernidade" e que, por isso, eles teriam o mesmo objetivo de aumento da produção (com a conseqüente destruição da natureza). A principal e talvez a única diferença seria que a propriedade dos meios de produção está na mão das empresas privadas no capitalismo e na mão do Estado no socialismo. Para alguns, o socialismo teria caído no "engodo do capitalismo" ou teria preservado as principais características do capitalismo e substituído somente a propriedade privada pela estatal.
Eu penso que essas críticas têm uma boa parte da razão, mas não capta um ponto essencial. Apesar das semelhanças, há uma diferença fundamental entre os dois sistemas sociais. No capitalismo, toda o sistema de produção, distribuição e consumo está guiado pela lógica da mercadoria ou pelo "valor de troca". Isto é, as empresas produzem bens, não em função da sua utilidade na reprodução da vida na sociedade ("valor de uso"), mas em função do seu valor de troca, isto é, para atender os desejos dos consumidores. Nas palavras de um dos economistas mais influentes no séc. XX, Paul Samuelson, "as mercadorias vão para onde há maior número de votos ou de dólares. O cachorro pertencente a John D. Rockfeller pode receber o leite de que uma criança pobre necessita para evitar o raquitismo". Criança pobre necessita do leite, mas como ela não é consumidora não faz parte do mercado, para onde os bens são produzidos. É assim que o sistema funciona, e o empresário não tem opção: no sistema capitalista ele tem que obedecer às leis do mercado (ou "as leis do valor").
O socialismo é um sistema pensado para "dominar" essa lei do valor e pensar a produção e a distribuição dos bens em função da reprodução da vida social. Por isso, por ex., em Cuba antes da crise pós-derrocada do bloco socialista havia escolas e hospitais para toda população, mas poucos restaurantes e quase nenhuma loja de bens de consumo considerados pelo Estado como supérfluos. O Estado apropriou-se de (quase) todos os meios de produção para poder planejar a economia em função do "valor de uso" e das necessidades da população e do regime.
O problema é que os modelos de socialismo implantados nos mais diversas partes do mundo geram também totalitarismo e ineficiência produtiva, gerando uma sociedade submetida ao Estado (que aparece por ex. na ausência da sociedade civil organizada) e a escassez de bens de consumo e de serviços necessários para a reprodução da vida corporal de forma digna e prazerosa.
Os erros e problemas dos sistemas socialistas que existiram ou ainda existem no mundo devem ser assumidos para aprendermos com a história, mas não podemos ignorar a diferença fundamental (pelo menos em termos teóricos e de valores que nortearam os principais teóricos e revolucionários socialistas) entre a lógica capitalista e a lógica de um sistema (qualquer que seja o nome que venha a ter) que procura colocar a reprodução da vida de todas as pessoas como o princípio norteador da organização econômica, social e política.
Jung Mo Sung é professor de pós-graduação em Ciências da Religião e autor de "Cristianismo de libertação: espiritualidade e luta social", Ed. Paulus.
Afirmações do tipo "a nova sociedade será espiritual e viverá em harmonia com todos os seres vivos e com o Planeta" são importantes para manter o horizonte de desejo, mas não oferecem direções e critérios para lutas concretas. Com isso, surge uma distância grande entre esses discursos cheios de desejos bons e as lutas e ações locais concretas. Por isso, eu afirmei que felizmente o tema do socialismo está voltando a ser discutido em setores comprometidos com a causa da vida dos pobres e dos dominados. Um exemplo disso é a publicação nos últimos dias, no Adital, de dois artigos que merecem ser lidos e discutidos ("Estatismo é a alternativa?", de Manfredo A. Oliveira e "Socialismo, contradições e perspectivas", de Frei Betto).
Eu penso que não poderemos construir um novo projeto de sociedade e de civilização sem retomarmos as discussões sobre o socialismo, os seus erros e acertos, suas semelhanças e diferenças com o capitalismo, seus potenciais e limites. Dessa discussão podemos reafirmar o socialismo como uma alternativa ao capitalismo ou "inventar" outro projeto, mas não podemos evitar essa discussão. E espaços como Adital pode ser um lugar para esse tipo de debate.
E a importância desse debate se mostra mais claro se levarmos em consideração que até Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, escreveu nos últimos dias que a atual crise econômica deixará como um dos legados "uma batalha de alcance global em torno de idéias [...] em torno de que tipo de sistema econômico será capaz de trazer o máximo de benefício para maior quantidade de pessoas". E que "em boa parte do mundo, [...], a batalha entre capitalismo e socialismo - ou ao menos entre o que muitos estadunidenses consideram socialismo - segue na ordem do dia" ("As mensagens tóxicas de Wall Street").
Uma primeira pergunta que pode aparecer na discussão sobre a alternativa ao capitalismo é: qual é a diferença fundamental entre o capitalismo e socialismo? Uma das idéias bastante difundida sobre esse assunto - entre "a esquerda pós-moderna e/ou ecológica" e até mesmo nos setores da "esquerda cristã" - é que não haveria muita diferença entre esses dois sistemas econômico-social-político. Os dois seriam "filhos da modernidade" e que, por isso, eles teriam o mesmo objetivo de aumento da produção (com a conseqüente destruição da natureza). A principal e talvez a única diferença seria que a propriedade dos meios de produção está na mão das empresas privadas no capitalismo e na mão do Estado no socialismo. Para alguns, o socialismo teria caído no "engodo do capitalismo" ou teria preservado as principais características do capitalismo e substituído somente a propriedade privada pela estatal.
Eu penso que essas críticas têm uma boa parte da razão, mas não capta um ponto essencial. Apesar das semelhanças, há uma diferença fundamental entre os dois sistemas sociais. No capitalismo, toda o sistema de produção, distribuição e consumo está guiado pela lógica da mercadoria ou pelo "valor de troca". Isto é, as empresas produzem bens, não em função da sua utilidade na reprodução da vida na sociedade ("valor de uso"), mas em função do seu valor de troca, isto é, para atender os desejos dos consumidores. Nas palavras de um dos economistas mais influentes no séc. XX, Paul Samuelson, "as mercadorias vão para onde há maior número de votos ou de dólares. O cachorro pertencente a John D. Rockfeller pode receber o leite de que uma criança pobre necessita para evitar o raquitismo". Criança pobre necessita do leite, mas como ela não é consumidora não faz parte do mercado, para onde os bens são produzidos. É assim que o sistema funciona, e o empresário não tem opção: no sistema capitalista ele tem que obedecer às leis do mercado (ou "as leis do valor").
O socialismo é um sistema pensado para "dominar" essa lei do valor e pensar a produção e a distribuição dos bens em função da reprodução da vida social. Por isso, por ex., em Cuba antes da crise pós-derrocada do bloco socialista havia escolas e hospitais para toda população, mas poucos restaurantes e quase nenhuma loja de bens de consumo considerados pelo Estado como supérfluos. O Estado apropriou-se de (quase) todos os meios de produção para poder planejar a economia em função do "valor de uso" e das necessidades da população e do regime.
O problema é que os modelos de socialismo implantados nos mais diversas partes do mundo geram também totalitarismo e ineficiência produtiva, gerando uma sociedade submetida ao Estado (que aparece por ex. na ausência da sociedade civil organizada) e a escassez de bens de consumo e de serviços necessários para a reprodução da vida corporal de forma digna e prazerosa.
Os erros e problemas dos sistemas socialistas que existiram ou ainda existem no mundo devem ser assumidos para aprendermos com a história, mas não podemos ignorar a diferença fundamental (pelo menos em termos teóricos e de valores que nortearam os principais teóricos e revolucionários socialistas) entre a lógica capitalista e a lógica de um sistema (qualquer que seja o nome que venha a ter) que procura colocar a reprodução da vida de todas as pessoas como o princípio norteador da organização econômica, social e política.
Jung Mo Sung é professor de pós-graduação em Ciências da Religião e autor de "Cristianismo de libertação: espiritualidade e luta social", Ed. Paulus.
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