Já acreditei que o presidente Lula e o PT trariam mudanças positivas para o Brasil; depois, no auge do "mensalão" tive raiva; hoje sinto pena de nosso solerte líder. É patético vê-lo advogar por figuras do quilate de José Sarney e Mahmoud Ahmadinejad, para ficar em dois casos recentes de defesa do indefensável.
Olhando apenas para os resultados, a gestão de Lula pode ser considerada bastante boa. Enquanto o mundo amarga uma recessão sem precedentes, a crise por estas bandas veio suave. As projeções sugerem uma ligeira retração este ano seguida de recuperação já em 2010. Mais importante, foi sob Lula que o Brasil experimentou um surto de crescimento como não víamos desde os anos 70. E não foi um crescimento qualquer, mas acompanhado de significativa distribuição de renda. Ao final de 2007, o presidente comemorava o fato de mais de 14 milhões de brasileiros terem saltado das classes D e E para a C (renda mensal familiar entre R$ 1.115 e R$ 4.807). Tais mudanças não passaram despercebidas aos brasileiros, que dão a Lula índices generosos de aprovação popular (69% segundo o último Datafolha).
É claro que as políticas do governo petista têm algo a ver com esses êxitos, mas não são as únicas responsáveis. O aumento da classe média, por exemplo, não é um fato isolado do Brasil, mas faz parte de um movimento mais geral também observado na China e na Índia e que pode ser explicado pelo forte crescimento da demanda global (em especial pelas commodities) até o ano passado.
Outro fator frequentemente esquecido é o chamado bônus demográfico. A redução das taxas de natalidade e de mortalidade combinada com a forte entrada das mulheres no mercado de trabalho tende a concentrar o número de pessoas economicamente ativas nas famílias. O resultado é mais renda que precisa ser distribuída por menos pessoas --nos últimos 40 anos, a fecundidade caiu de seis filhos por mulher para menos de dois. Fica o lembrete de que, dentro de mais algumas décadas, os efeitos positivos da mudança no perfil populacional se atenuarão e enfrentaremos o problema do excesso de aposentados para uma PEA (população economicamente ativa) declinante.
Longe de mim, entretanto, roubar os méritos da administração. Além de programas como o bolsa família e o forte aumento do salário mínimo (que, desde 2003, foi reajustado em 46% acima da inflação), o governo teve a sabedoria de não pôr tudo a perder. Sei que não é o tipo de elogio com o qual os petistas se regozijam, mas isso não o torna menos real ou importante. É só ver o que acontece na vizinha Argentina, onde o desenfreado populismo econômico do casal Kirchner está levando o país, senão à ruína, pelo menos a uma série de dificuldades que teriam sido desnecessárias com uma administração mais sóbria.
Diante desse esboço de avaliação do governo Lula (que está mais para positiva do que para negativa), o leitor deve estar se perguntando por que raios sinto pena do presidente. Ele, afinal, é aplaudido por sete de cada dez brasileiros, goza de forte prestígio internacional e tem reais chances de eleger Dilma Rousseff como sucessora. Se isso não é sucesso, fica até difícil imaginar o que possa sê-lo.
Bem, receio que haja, sim, outros aspectos a considerar. Vale lembrar o Fausto, personagem da literatura alemã que logrou acumular riquezas e até conquistar a imortalidade. Mas o fez ao preço de vender a alma para o Diabo. Lula também sacrificou uma parte importante de sua "anima politica" para chegar aonde está: não há mais traço de coerência em sua trajetória.
Aqui é preciso muito cuidado. O conceito de coerência, que já é insidioso para o homem comum, torna-se especialmente traiçoeiro quando aplicado a políticos, gente que converteu em ganha pão a arte de compor com o adversário. A pior definição possível de "coerência política" é aquela reduz o termo à repetição, ao longo de toda a vida, dos mesmos slogans e palavras de ordem. Felizmente, é apenas uma minoria dos seres humanos que recai nesse comportamento mal adaptado. Pobre do Brasil se o Lula eleito em 2002 tivesse colocado em prática as ideias que defendia em 1989.
É bom que as pessoas estejam aptas a aprender e modificar suas ideias, seja porque o mundo mudou seja porque o próprio sujeito já não é mais o mesmo. Evidentemente, não há nenhuma garantia de que as teses defendidas na maturidade são melhores do que as da juventude. Elas apenas tendem a ser mais moderadas. E, na maioria das vezes, a moderação é boa conselheira, mas este não é em absoluto um teste de veracidade.
Voltando à coerência, parece-me mais útil compreendê-la como uma linearidade nas atitudes morais. Se a pessoa julga que a igualdade de direitos, por exemplo, é um valor elevado a preservar, não pode esquecê-la em troca de uma vantagem pessoal ou política. Poderia, evidentemente, mudar de opinião acerca do próprio conceito, mas apenas como resultado de novas reflexões e ponderações, para cuja reelaboração tenha havido a intervenção de outros valores morais. Redefinir princípios ao sabor de circunstâncias mais terrenas leva o nome de "oportunismo".
E eu receio que Lula em particular e o PT em geral tenham sucumbido aos encantos do poder e sacrificado os valores morais por monetários (caso do "mensalão") e por jogadas de cálculo político.
Infelizmente, é o que Lula está fazendo quando defende José Sarney e minimiza as barbaridades cometidas no Senado Federal. Neste caso, um pouco para facilitar a vida congressual do governo, um pouco para justificar retrospectivamente os descalabros de sua própria administração, Lula deixa de prestar reverência aos princípios mais elementares da democracia, que afastam como absurda a possibilidade de reger a vida pública por atos secretos institucionalizados.
Alguns políticos, é verdade, já nascem sem espinha dorsal e sem intuições morais. Este, entretanto, não parecia ser o caso de Luiz Inácio Lula da Silva. Na campanha de 1989, Lula oferecia um diagnóstico bastante diverso de José Sarney, o então presidente da República: "Nós sabemos que antigamente --os mais jovens não conhecem--, mas antigamente se dizia que o Adhemar de Barros era ladrão, que o Maluf era ladrão. Pois bem, Adhemar de Barros e Maluf poderiam ser ladrão (sic), mas eles são trombadinhas perto do grande ladrão que é o governante da Nova República, perto dos assaltos que se faz''. Bem, Lula se aliou a Sarney e Maluf. Aparentemente, só não juntou forças com Adhemar porque ele está morto.
Há quem afirme que a política que se erige em absolutos converte-se em fanatismo --como o governo conduzido pelo incorrigível Mahmoud Ahmadinejad, outro dos "protegés" de Lula. Pode ser, mas eu pelo menos não falei em absoluto nenhum. O que afirmei é que a mudanças em atitudes morais podem ocorrer, mas precisam ser racionalmente justificáveis no plano dos conceitos. Lula precisaria explicar por que deixou de considerar importante a transparência no trato da coisa pública, por exemplo.
Quando o presidente e o PT se comportam exatamente como os Sarneys, Renans e Malufs, dão um tiro de misericórdia no respeito a princípios que um dia, já longe no passado, parecia ser o diferencial e talvez até a essência do Partido dos Trabalhadores. Lula tornou-se um espectro do que já foi. E é isso que me entristece.
Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
Olhando apenas para os resultados, a gestão de Lula pode ser considerada bastante boa. Enquanto o mundo amarga uma recessão sem precedentes, a crise por estas bandas veio suave. As projeções sugerem uma ligeira retração este ano seguida de recuperação já em 2010. Mais importante, foi sob Lula que o Brasil experimentou um surto de crescimento como não víamos desde os anos 70. E não foi um crescimento qualquer, mas acompanhado de significativa distribuição de renda. Ao final de 2007, o presidente comemorava o fato de mais de 14 milhões de brasileiros terem saltado das classes D e E para a C (renda mensal familiar entre R$ 1.115 e R$ 4.807). Tais mudanças não passaram despercebidas aos brasileiros, que dão a Lula índices generosos de aprovação popular (69% segundo o último Datafolha).
É claro que as políticas do governo petista têm algo a ver com esses êxitos, mas não são as únicas responsáveis. O aumento da classe média, por exemplo, não é um fato isolado do Brasil, mas faz parte de um movimento mais geral também observado na China e na Índia e que pode ser explicado pelo forte crescimento da demanda global (em especial pelas commodities) até o ano passado.
Outro fator frequentemente esquecido é o chamado bônus demográfico. A redução das taxas de natalidade e de mortalidade combinada com a forte entrada das mulheres no mercado de trabalho tende a concentrar o número de pessoas economicamente ativas nas famílias. O resultado é mais renda que precisa ser distribuída por menos pessoas --nos últimos 40 anos, a fecundidade caiu de seis filhos por mulher para menos de dois. Fica o lembrete de que, dentro de mais algumas décadas, os efeitos positivos da mudança no perfil populacional se atenuarão e enfrentaremos o problema do excesso de aposentados para uma PEA (população economicamente ativa) declinante.
Longe de mim, entretanto, roubar os méritos da administração. Além de programas como o bolsa família e o forte aumento do salário mínimo (que, desde 2003, foi reajustado em 46% acima da inflação), o governo teve a sabedoria de não pôr tudo a perder. Sei que não é o tipo de elogio com o qual os petistas se regozijam, mas isso não o torna menos real ou importante. É só ver o que acontece na vizinha Argentina, onde o desenfreado populismo econômico do casal Kirchner está levando o país, senão à ruína, pelo menos a uma série de dificuldades que teriam sido desnecessárias com uma administração mais sóbria.
Diante desse esboço de avaliação do governo Lula (que está mais para positiva do que para negativa), o leitor deve estar se perguntando por que raios sinto pena do presidente. Ele, afinal, é aplaudido por sete de cada dez brasileiros, goza de forte prestígio internacional e tem reais chances de eleger Dilma Rousseff como sucessora. Se isso não é sucesso, fica até difícil imaginar o que possa sê-lo.
Bem, receio que haja, sim, outros aspectos a considerar. Vale lembrar o Fausto, personagem da literatura alemã que logrou acumular riquezas e até conquistar a imortalidade. Mas o fez ao preço de vender a alma para o Diabo. Lula também sacrificou uma parte importante de sua "anima politica" para chegar aonde está: não há mais traço de coerência em sua trajetória.
Aqui é preciso muito cuidado. O conceito de coerência, que já é insidioso para o homem comum, torna-se especialmente traiçoeiro quando aplicado a políticos, gente que converteu em ganha pão a arte de compor com o adversário. A pior definição possível de "coerência política" é aquela reduz o termo à repetição, ao longo de toda a vida, dos mesmos slogans e palavras de ordem. Felizmente, é apenas uma minoria dos seres humanos que recai nesse comportamento mal adaptado. Pobre do Brasil se o Lula eleito em 2002 tivesse colocado em prática as ideias que defendia em 1989.
É bom que as pessoas estejam aptas a aprender e modificar suas ideias, seja porque o mundo mudou seja porque o próprio sujeito já não é mais o mesmo. Evidentemente, não há nenhuma garantia de que as teses defendidas na maturidade são melhores do que as da juventude. Elas apenas tendem a ser mais moderadas. E, na maioria das vezes, a moderação é boa conselheira, mas este não é em absoluto um teste de veracidade.
Voltando à coerência, parece-me mais útil compreendê-la como uma linearidade nas atitudes morais. Se a pessoa julga que a igualdade de direitos, por exemplo, é um valor elevado a preservar, não pode esquecê-la em troca de uma vantagem pessoal ou política. Poderia, evidentemente, mudar de opinião acerca do próprio conceito, mas apenas como resultado de novas reflexões e ponderações, para cuja reelaboração tenha havido a intervenção de outros valores morais. Redefinir princípios ao sabor de circunstâncias mais terrenas leva o nome de "oportunismo".
E eu receio que Lula em particular e o PT em geral tenham sucumbido aos encantos do poder e sacrificado os valores morais por monetários (caso do "mensalão") e por jogadas de cálculo político.
Infelizmente, é o que Lula está fazendo quando defende José Sarney e minimiza as barbaridades cometidas no Senado Federal. Neste caso, um pouco para facilitar a vida congressual do governo, um pouco para justificar retrospectivamente os descalabros de sua própria administração, Lula deixa de prestar reverência aos princípios mais elementares da democracia, que afastam como absurda a possibilidade de reger a vida pública por atos secretos institucionalizados.
Alguns políticos, é verdade, já nascem sem espinha dorsal e sem intuições morais. Este, entretanto, não parecia ser o caso de Luiz Inácio Lula da Silva. Na campanha de 1989, Lula oferecia um diagnóstico bastante diverso de José Sarney, o então presidente da República: "Nós sabemos que antigamente --os mais jovens não conhecem--, mas antigamente se dizia que o Adhemar de Barros era ladrão, que o Maluf era ladrão. Pois bem, Adhemar de Barros e Maluf poderiam ser ladrão (sic), mas eles são trombadinhas perto do grande ladrão que é o governante da Nova República, perto dos assaltos que se faz''. Bem, Lula se aliou a Sarney e Maluf. Aparentemente, só não juntou forças com Adhemar porque ele está morto.
Há quem afirme que a política que se erige em absolutos converte-se em fanatismo --como o governo conduzido pelo incorrigível Mahmoud Ahmadinejad, outro dos "protegés" de Lula. Pode ser, mas eu pelo menos não falei em absoluto nenhum. O que afirmei é que a mudanças em atitudes morais podem ocorrer, mas precisam ser racionalmente justificáveis no plano dos conceitos. Lula precisaria explicar por que deixou de considerar importante a transparência no trato da coisa pública, por exemplo.
Quando o presidente e o PT se comportam exatamente como os Sarneys, Renans e Malufs, dão um tiro de misericórdia no respeito a princípios que um dia, já longe no passado, parecia ser o diferencial e talvez até a essência do Partido dos Trabalhadores. Lula tornou-se um espectro do que já foi. E é isso que me entristece.
Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
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