Rudá Ricci
Desde o início da gestão Lula, vários cientistas sociais travaram um debate acadêmico a respeito do seu estilo de governar. A despeito das inconfessas divergências de natureza partidária, uma das polêmicas iniciais foi a característica carismática explorada por Lula desde a campanha eleitoral. Esta foi a proposta do sociólogo José de Souza Martins. Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, em novembro de 2002, Martins analisou o discurso de Lula como sedutor, porque a aparência do líder carismático é de alguém igual a todos, mas que carrega um dever social. É igual e diferente, ao mesmo tempo. E é diferente porque foi escolhido, quase um sacrifício. Sugeriu que Lula possui tal característica carismática, construída historicamente pela Igreja Católica progressista. Inicialmente, elaborada por padres progressistas do ABC paulista, mas que se espraiou pelo país através das Comunidades Eclesiais de Base.
A proposição analítica de José de Souza Martins parece promissora, mas revela-se insuficiente para a dinâmica e composição efetiva da gestão Lula. Na verdade, confunde criatura com criação. Lula possui traços carismáticos desenvolvidos desde sua época de líder sindical. Este perfil foi trabalhado nos anos 80. É possível recuperar fotos de assembléias de metalúrgicos no estádio da Vila Euclides em que faixas imensas eram ladeadas pela figura de Jesus Cristo e o perfil de Lula. Nunca houve ingenuidade em relação à produção simbólica da liderança de Lula. Contudo, o governo Lula (e, conseqüentemente, o lulismo) não se resume a este estilo pessoal. A composição básica do governo Lula atualiza alguns elementos centrais do ideário da esquerda latino-americana (que, aliás, lança mão, de tempos em tempos, do discurso carismático). O profissionalismo e o etapismo político (que define a política de alianças táticas e estratégicas, para utilizar o jargão histórico das correntes marxistas) constituem a pauta que orientou a ação do PCB, em especial, ao longo de seus primeiros cinqüenta anos de existência. Também compõe este ideário o projeto desenvolvimentista-progressista. No caso do lulismo, o projeto desenvolvimentista se subordinou á lógica de alianças, ao projeto etapista, embora mantenha a articulação pluriclassista que geraria a governabilidade necessária para que o Estado promova as reformas historicamente necessárias. O Estado, assim, permanece no lulismo como protagonista da ação pública. Como se percebe, ocorre uma ruptura significativa com o ideário original do PT, onde a sociedade civil organizada era protagonista das mudanças sociais e políticas.
O carisma de Lula, portanto, compõe uma estratégia racional de gestão. Não possui os elementos clássicos do messianismo, a oposição aos limites impostos pela tradição ou legalidade. Ao contrário, os traços carismáticos são empregados como mediação e não como fim. O arco de alianças é forjado a partir da capacidade de Lula em atrair e seduzir amplas massas sociais e, de outro lado, pela segurança que pode garantir aos agentes econômicos. Esta dupla face possibilita uma avaliação, por parte das forças políticas que integram o arco de alianças governistas, sobre os riscos e vantagens da composição. O carisma é um recurso utilizado à exaustão como um diferencial do lulismo, um ganho para a estabilidade do país. Não deixa de potencializar o vanguardismo de esquerda, na medida em que personaliza esta capacidade de governo ou é veladamente trabalhada como instrumento essencial para a estabilidade do país, até que a pauta reformista se complete. Assim, fica evidente que as reformas que garantirão a segurança para o mercado geram um custo social e político que outro líder não teria condições de conduzir. O apelo carismático possui este lugar e papel.
Este ingrediente especial do lulismo, fundado na oratória carismática-cristã, somado à prática organizativa clássica da esquerda e projeto econômico de caráter liberal, cria um poderoso repertório político, embora insuficiente para desenhar um programa estratégico. Aliás, justamente porque é insuficiente que o carisma é empregado à exaustão, trabalhando elementos simbólicos do futebol, em especial. Lula distancia-se mais e mais da figura paternal, localizada acima das disputas partidárias, explicitada ao longo da campanha e início de sua gestão, e incrementa a oratória carismática para se diferenciar dos adversários a partir do segundo ano de gestão. Trata-se, portanto, de um instrumento racional de condução política, ao contrário do irracionalismo da dominação carismática clássica.
Lula intui corretamente sobre este estilo pessoal. É um estilo que dialoga com a cultura política ambivalente do país, verificada em recente pesquisa dirigida pelo cientista político Guillermo O´Donnell e patrocinada pelo Programa Nações Unidas para o Desenvolvimento. A ambivalência da cultura política brasileira sugere resquícios de uma organização social de tipo estamental. Assim, o estilo pessoal de Lula compõe a engenharia política operada pelo lulismo.
O lulismo reporta-se, assim, à uma leitura específica da esquerda brasileira, caudatária da crença do papel protagonista do Estado como ator privilegiado das transformações sócias e políticas do país. Uma leitura peculiar que se relaciona com o conceito de capitalismo tardio. Em virtude do ingresso do país na divisão internacional do trabalho sem que tivesse passado por um processo de acumulação primitiva clássica, teria debilitado nosso mercado interno, a qualificação de nossa força de trabalho e criado uma elite econômica que adotaria hábitos de consumo equivocados, induzindo à má utilização da poupança e consumo irracional. O Estado assumiria o papel de demiurgo de nosso desenvolvimento e ordenamento social. Daí decorreria uma profunda desconfiança à participação efetiva da sociedade no processo decisório das políticas públicas, redundando no que Claus Offe denominou de “estatalização da sociedade”, ou controle exacerbado das ações sociais pelas agências estatais.
Os traços de nossa cultura política ambivalente reforçariam ainda mais a crença no protagonismo do Estado. O lulismo dá continuidade à esta leitura tradicional da esquerda brasileira e rompe com o que havia de mais inovador no petismo. Neste sentido, reaproxima a prática das esquerdas às práticas das elites políticas do país. Assume, assim, contornos conservadores em relação à prática política. E torna-se refém da busca permanente de popularidade, justamente porque os canais de contato direto do governo com a base social do país são obstruídos pela gestão altamente centralizada. O ciclo vicioso se completa e explica esta convergência peculiar entre discurso carismático, pragmatismo sindical e vanguardismo esquerdista.
O lulismo revela-se uma importante novidade sociológica e política para o Brasil. E é ainda uma novidade mais significativa para a trajetória do Partido dos Trabalhadores e a construção de um ideário democrático-popular em nosso país.
O lulismo, como prática de esquerda, é uma volta para o futuro.
Desde o início da gestão Lula, vários cientistas sociais travaram um debate acadêmico a respeito do seu estilo de governar. A despeito das inconfessas divergências de natureza partidária, uma das polêmicas iniciais foi a característica carismática explorada por Lula desde a campanha eleitoral. Esta foi a proposta do sociólogo José de Souza Martins. Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, em novembro de 2002, Martins analisou o discurso de Lula como sedutor, porque a aparência do líder carismático é de alguém igual a todos, mas que carrega um dever social. É igual e diferente, ao mesmo tempo. E é diferente porque foi escolhido, quase um sacrifício. Sugeriu que Lula possui tal característica carismática, construída historicamente pela Igreja Católica progressista. Inicialmente, elaborada por padres progressistas do ABC paulista, mas que se espraiou pelo país através das Comunidades Eclesiais de Base.
A proposição analítica de José de Souza Martins parece promissora, mas revela-se insuficiente para a dinâmica e composição efetiva da gestão Lula. Na verdade, confunde criatura com criação. Lula possui traços carismáticos desenvolvidos desde sua época de líder sindical. Este perfil foi trabalhado nos anos 80. É possível recuperar fotos de assembléias de metalúrgicos no estádio da Vila Euclides em que faixas imensas eram ladeadas pela figura de Jesus Cristo e o perfil de Lula. Nunca houve ingenuidade em relação à produção simbólica da liderança de Lula. Contudo, o governo Lula (e, conseqüentemente, o lulismo) não se resume a este estilo pessoal. A composição básica do governo Lula atualiza alguns elementos centrais do ideário da esquerda latino-americana (que, aliás, lança mão, de tempos em tempos, do discurso carismático). O profissionalismo e o etapismo político (que define a política de alianças táticas e estratégicas, para utilizar o jargão histórico das correntes marxistas) constituem a pauta que orientou a ação do PCB, em especial, ao longo de seus primeiros cinqüenta anos de existência. Também compõe este ideário o projeto desenvolvimentista-progressista. No caso do lulismo, o projeto desenvolvimentista se subordinou á lógica de alianças, ao projeto etapista, embora mantenha a articulação pluriclassista que geraria a governabilidade necessária para que o Estado promova as reformas historicamente necessárias. O Estado, assim, permanece no lulismo como protagonista da ação pública. Como se percebe, ocorre uma ruptura significativa com o ideário original do PT, onde a sociedade civil organizada era protagonista das mudanças sociais e políticas.
O carisma de Lula, portanto, compõe uma estratégia racional de gestão. Não possui os elementos clássicos do messianismo, a oposição aos limites impostos pela tradição ou legalidade. Ao contrário, os traços carismáticos são empregados como mediação e não como fim. O arco de alianças é forjado a partir da capacidade de Lula em atrair e seduzir amplas massas sociais e, de outro lado, pela segurança que pode garantir aos agentes econômicos. Esta dupla face possibilita uma avaliação, por parte das forças políticas que integram o arco de alianças governistas, sobre os riscos e vantagens da composição. O carisma é um recurso utilizado à exaustão como um diferencial do lulismo, um ganho para a estabilidade do país. Não deixa de potencializar o vanguardismo de esquerda, na medida em que personaliza esta capacidade de governo ou é veladamente trabalhada como instrumento essencial para a estabilidade do país, até que a pauta reformista se complete. Assim, fica evidente que as reformas que garantirão a segurança para o mercado geram um custo social e político que outro líder não teria condições de conduzir. O apelo carismático possui este lugar e papel.
Este ingrediente especial do lulismo, fundado na oratória carismática-cristã, somado à prática organizativa clássica da esquerda e projeto econômico de caráter liberal, cria um poderoso repertório político, embora insuficiente para desenhar um programa estratégico. Aliás, justamente porque é insuficiente que o carisma é empregado à exaustão, trabalhando elementos simbólicos do futebol, em especial. Lula distancia-se mais e mais da figura paternal, localizada acima das disputas partidárias, explicitada ao longo da campanha e início de sua gestão, e incrementa a oratória carismática para se diferenciar dos adversários a partir do segundo ano de gestão. Trata-se, portanto, de um instrumento racional de condução política, ao contrário do irracionalismo da dominação carismática clássica.
Lula intui corretamente sobre este estilo pessoal. É um estilo que dialoga com a cultura política ambivalente do país, verificada em recente pesquisa dirigida pelo cientista político Guillermo O´Donnell e patrocinada pelo Programa Nações Unidas para o Desenvolvimento. A ambivalência da cultura política brasileira sugere resquícios de uma organização social de tipo estamental. Assim, o estilo pessoal de Lula compõe a engenharia política operada pelo lulismo.
O lulismo reporta-se, assim, à uma leitura específica da esquerda brasileira, caudatária da crença do papel protagonista do Estado como ator privilegiado das transformações sócias e políticas do país. Uma leitura peculiar que se relaciona com o conceito de capitalismo tardio. Em virtude do ingresso do país na divisão internacional do trabalho sem que tivesse passado por um processo de acumulação primitiva clássica, teria debilitado nosso mercado interno, a qualificação de nossa força de trabalho e criado uma elite econômica que adotaria hábitos de consumo equivocados, induzindo à má utilização da poupança e consumo irracional. O Estado assumiria o papel de demiurgo de nosso desenvolvimento e ordenamento social. Daí decorreria uma profunda desconfiança à participação efetiva da sociedade no processo decisório das políticas públicas, redundando no que Claus Offe denominou de “estatalização da sociedade”, ou controle exacerbado das ações sociais pelas agências estatais.
Os traços de nossa cultura política ambivalente reforçariam ainda mais a crença no protagonismo do Estado. O lulismo dá continuidade à esta leitura tradicional da esquerda brasileira e rompe com o que havia de mais inovador no petismo. Neste sentido, reaproxima a prática das esquerdas às práticas das elites políticas do país. Assume, assim, contornos conservadores em relação à prática política. E torna-se refém da busca permanente de popularidade, justamente porque os canais de contato direto do governo com a base social do país são obstruídos pela gestão altamente centralizada. O ciclo vicioso se completa e explica esta convergência peculiar entre discurso carismático, pragmatismo sindical e vanguardismo esquerdista.
O lulismo revela-se uma importante novidade sociológica e política para o Brasil. E é ainda uma novidade mais significativa para a trajetória do Partido dos Trabalhadores e a construção de um ideário democrático-popular em nosso país.
O lulismo, como prática de esquerda, é uma volta para o futuro.
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