Ruy Fabiano
A sucessão de escândalos que pipocam na Câmara e no Senado – sobretudo neste – não configuram exceção na cultura do serviço público brasileiro. Antes, são regra. Remontam à formação colonial do país, período em que, entre cidadania e Corte, havia, mais que um oceano físico, um mar de interesses conflitivos.
Não é casual que o herói máximo da história do Brasil, Tiradentes, tenha protagonizado um conflito tributário.
Daí a dicotomia entre sociedade e Estado, ainda hoje presente, que resulta numa relação anômala, em que aquela não se vê representada naquele. Ao contrário, o cidadão brasileiro vê o Estado como oponente, e sente-se legitimado em espoliá-lo (pois assim se vê em relação a ele, não importa o governo).
Quando um médico (ou dentista, ou advogado) cobra seus honorários e pergunta se o cliente quer o preço com ou sem recibo; ou quando, num restaurante, o garçom apresenta a conta, mas não a nota fiscal (a menos que solicitada), tem-se a mesma relação de trapaça e sonegação, embora a percepção da maioria não seja essa.
No fundo, o Estado (a “viúva”) é um adversário, do qual se deve extrair o máximo possível. Candidatos a deputado e senador fazem campanha prometendo empregos. Eleitores prometem votar mediante tal moeda, numa cumplicidade explícita.
A mudança de monarquia para República não alterou esse quadro, retratado com fidelidade nos romances de Machado de Assis e Lima Barreto: o primeiro, o romancista do Segundo Reinado; o outro, o da República Velha.
Nomeações por compadrio político, nepotismo, funcionários-fantasmas, no centro das denúncias de hoje, vêm de longe. Quem conhece a famosa marchinha de carnaval “Maria Candelária”, sucesso dos anos 50, na voz de Blecaute? A letra dizia, no trecho inicial: “Maria Candelária/é alta funcionária/saltou de paraquedas/Caiu na letra Ó/começa ao meio-dia/coitada da Maria/ trabalha, trabalha/trabalha de fazer dó”.
E a seguir descrevia sua rotina funcional: “À uma vai ao dentista/às duas vai ao café/às três vai à modista/às quatro assina o ponto e dá no pé./ Que grande vigarista que ela é”. Qualquer semelhança com as denúncias que estão há semanas nos jornais não é mera coincidência. É cultura política, com raízes fincadas no passado profundo do país.
Atribui-se a Getúlio Vargas a máxima de que “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. Manuel Bandeira sonhava com uma Pasárgada imaginária, em que, como amigo do rei, teria “a mulher que quero/na cama que escolherei”. A lógica é invariável: estar no poder ou ao lado de quem lá esteja, para se dar bem. O general Golbery resumiu-a na frase que se tornou uma espécie lema entre os políticos brasileiros: “Fora do poder, não há salvação”.
A grande novidade de uns tempos para cá, efeito talvez da urbanização acelerada do país, é que, se a sociedade era cúmplice dos agentes públicos na espoliação do Estado, está deixando de ser. A partir da redemocratização, algo começou a mudar. A liberdade de imprensa – e, mais que isso, a multiplicação dos veículos de comunicação de massa, que hoje inclui a internet – começou a mostrar como funciona por dentro o poder, sua intimidade, seu custo, sua moral (ou falta de).
O cidadão tornou-se mais informado e mais consciente de que é desvantajoso o jogo fisiológico, senão por princípios éticos, ao menos pela constatação de que não pode atender a todos. O PT, enquanto oposição, exerceu papel fundamental nesse processo, denunciando obsessivamente todos os governantes e o jogo sujo dos bastidores, ainda que cometendo leviandades e injustiças pela generalização.
Se era apenas estratégia para chegar ao poder, não importa: pôs a cidadania em alerta – e o processo mostra-se irreversível. O problema é que a classe política, incluindo os setores ditos progressistas, não acompanhou – nem sequer percebeu – essa mudança. Ao chegar ao poder, o PT nivelou-se à prática histórica, aparelhando a administração pública com sindicalistas e amigos e selando alianças com lideranças que, no passado, classificava de corruptas. Deu, assim, concretude à blague do Barão de Itararé, segundo quem “negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados”, variação, por sua vez, de outra, dele mesmo: “Ou todos nos locupletamos ou restaure-se a moralidade”.
Mas a sociedade brasileira já não é a mesma. Não sendo possível socializar os frutos da trapaça, insiste em restaurar (ou melhor, em enfim adotar) a moralidade como princípio. E isso está na raiz do desgaste galopante a que está sendo exposto o Legislativo. A classe política ficou como a Carolina de Chico Buarque: não viu o tempo passar na janela. Não percebeu que algo estava (e está) mudando no país. Age na presunção de que o país ainda vive os tempos da Maria Candelária. Mas não vive. Mudou.
Não se pense que o que ocorre no Legislativo federal é uma anomalia localizada. Nada disso. Se a investigação se estender aos legislativos estaduais e municipais e aos outros poderes, Judiciário e Executivo, o quadro não será diferente. O diagnóstico é de metástase generalizada. O que explica que o Palácio do Planalto tenha quase o dobro de funcionários da Casa Branca? No governo FHC, havia 2.123 servidores lá lotados. Hoje, há 3.346, 57% a mais.
Em ambos os casos, um claro exagero: a Casa Branca, que centraliza bem mais poderes e lida com questões geopolíticas que alcançam todo o planeta, dispõe de 1.800 funcionários.
Nesse ambiente, é natural que o escândalo constitua hoje a matéria-prima do jornalismo político brasileiro, em que a Polícia Federal e o Ministério Público exercem o protagonismo, substituindo deputados, senadores, governadores e prefeitos.
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